Uma jornada de desafios e esperanças desde 2015

PorSheilla Ribeiro,1 out 2023 8:26

Em Outubro de 2015, após meticulosos dois anos de preparação, o curso de Medicina da Uni-CV foi oficialmente inaugurado. Sob a supervisão da Universidade de Coimbra, esse curso “Sandwich” tem moldado futuros médicos em Cabo Verde. No entanto, enfrenta desafios desde a selecção dos estudantes até à empregabilidade pós-graduação. Alunos como Hillary Duarte e Silvana Veiga partilham as suas experiências e preocupações, destacando a necessidade de investimento, especialização e reconhecimento internacional para o sucesso contínuo do curso de Medicina no país.

Ao Expresso das Ilhas, a coordenadora do curso, Antonieta Martins, assegura que o curso é alinhado com a Universidade de Coimbra porque tem uma característica muito peculiar.

“É um curso idêntico ao que acontece na Universidade dos Açores, que também é supervisionado pela Universidade de Coimbra. Os alunos passam três anos da formação básica em Cabo Verde, depois vão para Coimbra para completar os dois últimos anos”, explica.

Para ingressar no curso de Medicina, os alunos devem cumprir os pré-requisitos académicos universais, que incluem completar o 12.º ano nas áreas científicas com ênfase em Biologia e Química, juntamente com uma média mínima de 16 valores. Os candidatos também devem passar por uma prova de seriação baseada em Biologia ou Química, que é uma parte importante do processo de selecção.

Embora a procura pelo curso seja alta, ultrapassando 150 candidatos, a Uni-CV só pode acomodar um número limitado de estudantes, actualmente com 20 vagas disponíveis por ano. Antonieta Martins lamenta a falta de espaço para mais.

“É uma pena que não possamos abrir uma segunda turma imediatamente devido às limitações em Coimbra, onde os nossos estudantes completam parte do curso”, explica.

Durante o curso, os alunos têm a oportunidade de se envolverem em estágios nas instalações de saúde para ganhar experiência prática, e o estágio final é feito no formato da Universidade de Coimbra, preparando os estudantes para a práctica médica. No entanto, esses estágios são restritos a um número limitado de alunos devido à natureza intensiva do treinamento.

Antonieta Martins refere que muito foi investido no curso a nível dos laboratórios, bibliotecas e tecnologia.

“O curso foi muito bem organizado e estruturado desde o início, uma vez que o parceiro que nós tínhamos também era um parceiro de uma certa exigência e que não permitiria envolver-se em algo que, pedagogicamente, não desse respostas”, enfatiza.

Ampliar parcerias e superar desafios

De acordo com Antonieta Martins, o curso recebe estudantes de outros países, nomeadamente da Universidade Nova, da Universidade de São Paulo, de outras escolas com interesse em conhecer Cabo Verde, como é o caso dos EUA, por exemplo.

Embora haja um interesse crescente em parcerias e intercâmbios, a falta de recursos limita a capacidade dos estudantes de Medicina da Uni-CV de viajar para o exterior.

“Até agora, tendo em conta os recursos limitados da Universidade e até do próprio país, ainda não temos condições organizada para os estudantes se deslocarem ao exterior”, esclarece Antonieta Martins.

No entanto, a Uni-CV mantém uma colaboração sólida com a Universidade de La Laguna, nas Ilhas Canárias, onde os alunos fazem intercâmbios regulares no Campus África.

Outro desafio enfrentado pelo curso de Medicina é a capacidade de formar o número pretendido de estudantes a cada ano.

“Deveríamos formar 20 por ano. Nós não temos, neste momento, a média de 20 por ano, este ano vamos ter 18, no ano passado tivemos 20, no primeiro ano tivemos 18”, destaca Antonieta Martins.

Questões como problemas de bolsas de estudo e dificuldades financeiras dos alunos contribuem para essa variação.

Conforme a coordenadora, neste momento, de os todos os estudantes que já se formaram até agora, apenas seis estão num programa de pós-graduação por decisão pessoal e sem bolsa de estudo.

“Entre os estudantes que se formaram na Uni-CV, temos três alunos estrangeiros que, apesar de se terem formado na nossa escola, não contamos com eles no mercado do trabalho, ou para continuidade ou reforçar o sistema porque vieram em regime de cooperação”, precisa.

No entanto, com o grupo, cuja cerimónia de outorga de grau se realiza no próximo dia 29, serão 59 formados, dos quais, conforme esta responsável, apenas sete estão a trabalhar num emprego temporário, uma vez que ainda não estão enquadrados no sistema nacional de saúde, embora estejam a trabalhar na área. “Terão que passar por um concurso para serem contratados”, frisa.

Até agora, afirma Martins, o curso funcionou com muitos sacrifícios dos pais e do sistema educativo que sustenta a maior dos estudantes. Ou seja, a maior parte das propinas são de alunos bolseiros, porque normalmente são pessoas de mérito e é o Estado que sustenta a formação académica.

“A FICASE é que paga, alguns são bolseiros do município e há um número reduzido de estudantes que são bolseiros do Instituto Camões. O maior desafio é essa questão financeira dos alunos e das famílias para se manterem no curso de uma forma tranquila. Porque é claro que quase todos irão para Coimbra e precisam sustentar essa situação e sobreviver. Temos a vantagem de todos eles terem acesso à residência universitária, o que já é uma grande ajuda, mas nem todos conseguem porque os que não são bolseiros têm mais dificuldade”, aponta.

O curso de Medicina da Uni-CV também enfrenta desafios relacionados com o corpo docente local, uma vez que não há um regime específico para docentes na área da medicina. Isso resulta numa sobrecarga para os professores locais, que têm de equilibrar o seu trabalho no sistema de saúde com o ensino.

Nesse sentido, Antonieta Martins ressalta a importância de criar melhores condições para que os docentes possam apoiar os alunos durante o horário normal de trabalho.

No entanto, prossegue, apesar desses desafios, o curso de Medicina da Uni-CV está a produzir graduados de alta qualidade que são preparados para contribuir para o sistema de saúde em Cabo Verde.

“Todos os estudantes são obrigados a apresentar uma dissertação no final do curso, que já é uma introdução à investigação. É uma forma de abrir o espírito dos estudantes para a investigação”, explica Antonieta Martins, enfatizando a importância de apoiar a pesquisa e a carreira de investigação no país.

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A Uni-CV continua a colaborar com entidades como o Ministério da Saúde e o Hospital Agostinho Neto para fortalecer o programa e melhorar a qualidade dos cuidados de saúde em Cabo Verde.

“Essa cooperação merece, neste momento, um reforço para podermos ter mais produtos do que aquilo que tivemos, como é o caso da questão da investigação, para identificarmos os nichos das oportunidades de uma investigação transacional que vai permitir a melhoria da qualidade dos cuidados no Hospital. Ter estudantes no Hospital, ter docentes no Hospital, sem dúvida que é um elemento fundamental para a melhoria da qualidade daquilo que temos”, acredita.

Emprego é principal preocupação dos estudantes de medicina

A paixão pela medicina muitas vezes nasce de um único momento de inspiração e, no caso de Hillary Duarte, foi durante o ensino secundário quando teve a oportunidade de estudar Ciências Naturais.

O interesse cresceu ainda mais quando escolheu a área de Ciências e Tecnologias no 11.º ano, já com a ideia de seguir uma carreira na área da saúde, especificamente, na biologia. No entanto, foi a influência dos professores e a forma apaixonada como transmitiam o conhecimento que a levou a se apaixonar profundamente pela medicina. Para Hillary, a medicina deixou de ser apenas uma profissão, tornou-se uma paixão.

O percurso académico de Hillary levou-a a estudar tanto em Cabo Verde quanto em Coimbra, uma jornada que foi marcada por desafios e aprendizados significativos.

“A experiência de estudar tanto em Cabo Verde quanto em Coimbra foi um processo de muita adaptação e aprendizagem”, partilha com entusiasmo. “No primeiro ano na Uni-CV, entramos no curso com a mentalidade do ensino secundário. Foi um choque e exigiu muita adaptação, algo partilhado com os meus colegas. Depois, em Portugal, tive de me adaptar a um país diferente, conhecer novas pessoas, encontrar professores pessoalmente e lidar com um sistema de aulas um pouco diferente. Aqui somos um grupo pequeno, enquanto lá, éramos mais de 200 alunos em algumas aulas teóricas”, descreve.

Falando sobre a qualidade do curso, Hillary elogia a sua experiência, mas também reconhece que sempre há espaço para melhorias. Nessa senda, sugere que o tempo dedicado a certas matérias poderia ser ajustado para reduzir a pressão sobre os alunos, especialmente durante as semanas intensivas.

“Nos primeiros três anos na Uni-CV, tínhamos uma semana intensiva, na qual um professor vinha e apresentava uma grande quantidade de teoria. Isso poderia ser melhorado para tornar o estudo mais acessível e menos stressante. Em Coimbra, o ensino é distribuído de forma mais espaçada, o que permite uma abordagem mais gradual”, exemplifica.

Sobre o futuro, Hillary indica que a falta de emprego para médicos é uma preocupação partilhada entre os seus colegas, destacando a necessidade de buscar especialização para aumentar as chances de emprego.

“Há uma sensação de insegurança, pois nos últimos anos percebemos que a formação em medicina não é sinónimo de emprego garantido. Alguns médicos formados estão desempregados, incluindo especialistas e a especialização é a minha última esperança”, declara.

Assim, confidencia que precisa decidir em que área fazer a especialização: Pediatria, Dermatologia ou Otorrinolaringologia. Isso, após apresentar a tese e concluir o estágio profissional, onde poderá ganhar mais experiência prática e entrar em contacto com a realidade e a população do país.

“O curso de medicina tem as suas dificuldades e particularidades que precisam ser melhoradas, mas a nossa população deveria acreditar mais no curso de medicina no país. Foi uma experiência incrível para mim, apesar dos desafios que enfrentei ao longo do caminho. Existem condições e estrutura para formar médicos, mas é necessário mais investimento, mais financiamento na área da saúde e mais incentivo aos jovens para se formarem na área. Devemos garantir que eles tenham chances de trabalhar na área e contribuir para a nossa comunidade”, apela.

Por sua vez, ao reflectir sobre a qualidade do curso de medicina em Cabo Verde, Silvana Veiga, que faz parte da terceira turma deste último curso, expressa a sua satisfação geral. “Relativamente à qualidade do curso, considero-o muito bom, apesar de ser um curso recente e apresentar alguns défices a nível estrutural,” afirma Silvana.

A estudante observa que a Universidade de Cabo Verde tem sempre soluccionado esses problemas e destaca que a qualidade técnica e científica do curso não é uma dificuldade.

Silvana acredita que os anos que os estudantes passam em Coimbra é um teste da qualidade do curso, pois todos os estudantes que vão a Coimbra retornam a Cabo Verde, indicando que estão bem preparados e no mesmo nível dos estudantes de Coimbra.

Prestes a se formar, Veiga elogia os professores locais, sendo médicos com experiência que se dedicam a colmatar as dificuldades dos estudantes, refutando a ideia de que um curso de Medicina ministrado em Cabo Verde seja de qualidade inferior. Entretanto, a maior preocupação de Silvana, assim como de Hillary e os seus colegas é a empregabilidade após a conclusão do curso. Como exemplo, cita que os colegas que se formaram antes deles ainda não conseguiram emprego.

“Com 19 novos formandos neste ano, somados aos 40 formados anteriormente, e outros estudantes formados no exterior, todos enfrentam a mesma situação de desemprego”, diz, ressaltando a falta de direccionamento para especializações e a ausência de concursos abertos para essas vagas, o que gera incerteza e preocupação entre os formandos.

“Penso em iniciar a minha especialização, embora ainda não tenha certeza da área, mas provavelmente será em Gastroenterologia. Planeio sair do país para buscar essa especialização e, em seguida, voltar. Mas apelo aos órgãos nacionais, especialmente ao Ministério da Educação e da Saúde, para buscarem acordos com universidades estrangeiras que facilitem o processo de reconhecimento do curso e das especializações, visto que o curso de medicina de Cabo Verde ainda não possui reconhecimento internacional”, apela.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1139 de 27 de Setembro de 2023.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,1 out 2023 8:26

Editado porDulcina Mendes  em  2 out 2023 7:53

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