Neste momento, quais considera serem os maiores desafios das universidades de Cabo Verde e, em particular, da Universidade do Mindelo?
O principal desafio das universidades em Cabo Verde tem a ver com a sua sustentabilidade financeira. Este é o grande desafio do ensino superior. E, para que haja sustentabilidade, é preciso que sejam definidas medidas de políticas claras para que as universidades possam saber como se situarem no panorama do ensino superior em Cabo Verde. Quando falo de medidas de políticas para a sustentabilidade, falo, essencialmente, de três aspectos fundamentais. Primeiro, é o não incentivo à saída de estudantes para fazer a sua formação superior fora nos cursos que há em Cabo Verde. Não faz sentido o que está a acontecer neste momento: quer o poder central, quer as autarquias locais, incentivam os estudantes a saírem para estudar fora, quando podem estudar aqui, com menos custo para as famílias. Nós estamos a acompanhar o que está a acontecer em Portugal, os estudantes estão com problemas financeiros sérios. Salvaguardando que cada família é livre de escolher onde quer que se o seu filho estude, o que não é “normal” é serem os poderes públicos a incentivarem os estudantes a saírem para estudar fora. Portanto, esta é a primeira medida: parar com esse incentivo para os estudantes irem estudar fora.
Uma segunda medida tem a ver com a criação de condições. Estou a falar de condições de residência e de condições de alimentação, ou seja, residência universitária e cantinas universitárias, para que os estudantes das outras ilhas que queiram estudar nos dois principais centros do ensino superior em Cabo Verde - a Ilha de Santiago e a Ilha de São Vicente - possam fazê-lo em boas condições. Ou seja, o incentivo à criação de cantinas escolares e residências escolares…
Mas a criação de residências e cantinas não é da responsabilidade das próprias universidades?
Mas tem que haver políticas de incentivo nessa área. O poder público não pode lavar as suas mãos nessa matéria, porque as universidades contribuem para o desenvolvimento do país. A terceira medida tem a ver com as bolsas de estudo, que precisam de um aumento tanto na quantidade atribuída quanto no montante concedido. Um estudante que sai da Brava para estudar na Ilha de Santiago, um estudante que sai de Boa Vista para estudar em São Vicente, não precisa só do dinheiro da propina. Precisa de dinheiro para comer, para viver. E daí também que, se o Estado e as autarquias não conseguem aumentar os montantes das bolsas de estudo, devem incentivar o surgimento de cantinas e residências. Penso que essas três medidas são fundamentais para que o sector esteja organizado de forma clara, para que cada instituição de ensino superior possa saber posicionar-se para o seu papel no desenvolvimento do país. É fundamental.
Tem-se verificado um decréscimo da procura, da demanda, de alunos pela Universidade?
Isto é geral em todo o Cabo Verde. Já ouvimos Universidades a dizerem que estão com problemas no número de estudantes, cursos com poucos inscritos, porque, por um lado, há esse incentivo à saída para o exterior, por outro lado, não há incentivo financeiro, nas condições que já expliquei, para que os estudantes se possam deslocar a Santiago ou a São Vicente para continuarem os seus estudos. Portanto, essa redução de número de estudantes é visível e é uma realidade em todas as Universidades.
E o abandono das Universidades?
O abandono das Universidades tem a ver com as mesmas questões. O que nós observamos todos os anos aqui na Universidade do Mindelo, e acredito que aconteça também em outras Universidades, é que há muitos estudantes que se candidatam na esperança de que conseguem uma bolsa de estudos, ou do Estado - da FICASE - , ou de alguma Câmara Municipal. A partir do momento que saem as listas e esse estudante não consta das mesmas, acaba por abandonar, por falta de condições financeiras, não por outras.
Os empréstimos bancários não funcionam?
Isso poderia estar dentro das tais medidas políticas que eu digo. Neste momento, não funciona. O banco faz o empréstimo, mas tem que haver alguma instituição que sirva de suporte às famílias na procura desse empréstimo bancário. Salvo um ou outro caso, regra geral não tem funcionado.
Assistimos em todo o mundo, e também aqui, que muitas vezes os licenciados, ou mesmo os mestres, acabam a formação e não encontram emprego no mercado de trabalho. O factor da empregabilidade tem influência nesse abandono?
Eu não acredito. As universidades formam para o mercado, mas o conceito de mercado alterou-se. Hoje as universidades têm a obrigação de formar para o mercado global. Portanto, aquele estudante que terminou o curso e não encontrou trabalho aqui no mercado cabo-verdiano, pode procurar trabalho no mercado africano, no mercado lá fora, porque esses estudantes têm condições. Nós temos pedido de quatro formados portugueses para vir a leccionar aqui na Universidade. Ou seja, se os outros procuram o nosso mercado, os nossos também devem estar em condições de procurar outros mercados. Além disso, dou-lhe outro exemplo, concreto. Temos na Universidade do Mindelo um curso que tem 100% de empregabilidade, que é o curso de Ortóptica e Ciências da Visão. É a única universidade que tem este curso em Cabo Verde. Todos os estudantes que fazem este curso entram directamente para o mercado. O mercado cabo-verdiano, o mercado angolano, em Portugal... O curioso é que esse curso não tem tido procuram porque é um curso que implica, além de pagar a propina, ter alguns recursos e os estudantes não têm incentivo para o frequentar. Então, essa questão do mercado de trabalho é muito relativa.
E em relação à qualidade do ensino, sabemos que a vertente da investigação é dispendiosa e um problema para todas as universidades. Como é que vê essa questão da investigação?
Esse é um outro problema que precisa de medidas de política. A actual Secretária de Estado de Ensino Superior entrou com uma missão clara, que ela disse que era um desafio: criar a Fundação para a Ciência e Tecnologia. Mas que até agora não aconteceu, e a SE já disse publicamente que não há dinheiro. Há dinheiro para tudo em Cabo Verde menos para a investigação. Se se for procurar no Orçamento do Estado (para 2024) que está a ser apresentado, qual é a verba que está inscrita para incentivar a investigação científica? Zero, assim como tem sido em todos os Orçamentos do Estado até agora. Portanto, nós não podemos exigir qualidade às universidades, não podemos exigir investigação científica quando não há incentivos. Estamos sempre a comparar-nos com Portugal. Ora, No Orçamento do Estado de Portugal, são alocadas verbas para a investigação científica. Nós temos que dar este passo. Podem dizer que o país é pobre, há prioridades, mas o Ensino Superior é desenvolvimento, e se queremos desenvolvimento, então temos que investir para podermos deixar de fazer esse discurso de desconfiança da qualidade do Ensino Superior em Cabo Verde. A qualidade exige esse passo que falta da investigação, e este passo não é possível sem verbas.
Outra questão que tem sido levantada, que se enquadra dentro da qualidade do Ensino Superior, tem a ver com o corpo do docente. Muitas vezes não existem doutores suficientes, por exemplo. Como é que têm lidado com essa situação?
Não temos esse problema, salvo uma ou outra excepção, uma ou outra área. A Universidade do Mindelo, desde que existe, já realizou vários mestrados, já realizamos um doutoramento que terminou no ano passado com 23 novos doutores, estamos neste momento na segunda edição desse doutoramento em Ciências Sociais com várias saídas de especialização. Neste momento, temos a decorrer um doutoramento em ciências da saúde, remos uma escola superior de saúde com vários cursos na área de saúde, e temos melhorado significativamente essa questão. E garantir que, neste momento, em qualquer um dos cursos acreditados na Universidade, temos o número de doutores que é exigido.
São todos os nacionais ou têm que importar algum?
A maioria são nacionais, mas também temos doutores, dentro de acordos de cooperação que temos com Portugal e com Espanha.
Como é que estão essas parcerias com as outras Universidades? Recentemente o Presidente ARES falou da importância dessas parcerias internacionais para conseguir uma melhor qualidade…
São muito importantes para a mobilidade académica. Neste momento temos protocolos de mobilidade académica com várias Universidades, de Espanha, Portugal, mas também outros países e essas mobilidades são muito importantes. Agora, o maior problema que temos com as mobilidades é o problema dos vistos. Temos perdido programas de mobilidade por causa dos vistos, mas isto já é algo que se sabe, já não há quase mais nada a dizer. Também podem entrar nesta questão medidas de política. Dou um exemplo: o reitor de uma Universidade do Mindelo não tem um passaporte de serviço. E quem diz o reitor, diz o seu conselho científico e directivo e os seus investigadores, que poderiam ter este passaporte, poderiam participar deste tipo de visto. Solicitamos há muito tempo a autorização do Ministério de Administração Interna para que sejam emitidos passaportes de serviço para o Corpo Directivo da Universidade do Mindelo e para os seus investigadores para facilitar a saída. Não temos. Aqui está uma medida de política que não depende do Centro Comum de Vistos, que não depende de outro país terceiro, que depende de nós. São pequenas coisas que podem ser feitas, do ponto de vista de medidas, que podem facilitar imensamente esta questão da mobilidade, o desenvolvimento das Universidades e o aumento da qualidade. Este é só um exemplo…
A nível destas parcerias, que mais destacaria?
A mobilidade é de docentes e estudantes. E recebemos também. Neste momento, temos aqui estudantes de Enfermagem da Universidade do Porto, que vêm fazer as suas práticas, e pela primeira vez temos estudantes que vão assistir a unidades curriculares. Até agora tinham vindo só para as práticas, agora temos estudantes que vêm fazer o semestre, e isto é reconhecimento da qualidade da nossa Universidade. É uma nova era em que estamos a entrar, porque são próprias as Universidades lá fora que reconhecem que aquilo que fazemos, que a Universidade do Mindelo tem qualidade.
Voltando à questão dos professores, como é que está a carreira dos professores?
Estamos a falar de sustentabilidade, que é preciso fazer políticas… As Universidades privadas trabalham com o dinheiro das propinas dos estudantes. Não há muita margem financeira para grandes aventuras, do ponto de vista da carreira docente. Na Universidade, neste momento, temos uma carreira docente, com a introdução do PCCS, para um grupo de professores que trabalham como quadros da Universidade. Somos obrigados a recorrer a professores convidados, que não são quadros da Universidade, para suprir as nossas necessidades, mas há uma carreira docente aqui na Universidade do Mindelo, que foi introduzida no ano passado - a Universidade também é relativamente jovem- , e a Universidade está a organizar essa carreira do docente de acordo com as suas condições financeiras, sem entrar em aventuras financeiras, para que se possa continuar a cumprir com as obrigações com os docentes. Não há um docente aqui na Universidade que reclame. A Universidade não deve a ninguém porque fazemos uma gestão financeira da Universidade de acordo com a nossa realidade, as nossas condições e as nossas disponibilidades.
Vemos, pelo menos no público, na docência em geral e também ao nível universitário, muitos professores a saírem da profissão. Alguns em comissão de serviço, outros em licença sem vencimento, outros preferirem ir para outras áreas. Como é o cenário na Universidade do Mindelo?
O núcleo de professores que trabalha como quadro na Universidade é pequeno, não temos tido esse problema até agora. Um ou outro quadro que tenha saído é, essencialmente, para carreira lá fora, ou para fazer mestrado e doutorado, mas não é uma realidade que se vive aqui na Universidade do Mindelo.
E em relação à implementação de sistemas internos de garantia de qualidade, Com está esse processo?
Estamos neste processo já há algum tempo. Temos um gabinete de conselho de avaliação de qualidade que segue o desenvolvimento da Universidade, que faz a avaliação interna. Já fomos submetidos a três processos de avaliação externa e até agora temo-nos saído bem. O plano não está 100% implementado, mas está a ser implementado e com resultados.
Uma última pergunta. Quando chegam à Universidade, os alunos já vêm de vários ciclos de estudos. Como é que avalia o nível com que chegam à Universidade?
Este é um problema: o nível é baixo. Os estudantes chegam cada vez menos preparados ao ensino superior. Há algo que tem que ser feito a nível do secundário, a nível da organização, a nível da maioria do corpo docente, a nível da disponibilidade e melhoria dos manuais. Não se entende como, praticamente, não há manuais. Não conseguimos imaginar um ensino secundário com o professor a ditar apontamentos. Então, respondendo directamente à questão, o estudante que nos chega na Universidade é um estudante muito imaturo do ponto de vista cultural. E quando falo de cultura, falo num visão mais lata de cultura. É um estudante que tem um pensamento muito fraco, muito imaturo, muito superficial, com um déficit de concentração enorme e com uma cultura do que nós chamamos do QB (quanto baste). Um estudante que estuda para passar e não estuda para ser um estudante de excelência - regra geral, temos boas excepções. É um estudante que precisamos de melhorar rapidamente, precisamos de reagir, porque há 10 anos não era assim, o estudante há 12, há 15 anos era melhor. Portanto, a cada ano que passa recebemos estudantes mais fracos. Estamos convencidos de que este ano não será melhor, pelo contrário, porque vamos receber os estudantes que viveram a pandemia da COVID na fase final da sua formação secundária. Portanto, acredito que este será um dos grandes desafios deste ano: receber os estudantes e provocar uma mudança de mentalidade, uma mudança de costumes, uma mudança de cultura, para que tenham sucesso no ensino superior. Estamos preparados para fazer isso, já fizemos isso, e estamos preparados e atentos.
Mas isso terá a ver com o ensino em si ou com toda a cultura envolvente? A nível cultural alargado há falhas?
Sim, claramente. Com a revolução das tecnologias, as novas formas de estar na vida, estamos a assistir a um momento de transição geracional, de uma geração que era mais concentrada nos estudos, para uma que hoje tem várias outras opções. O sistema e as famílias têm dificuldades em se adaptar e se não se adaptarem não reagirem, poderemos ter problemas no futuro. Estamos numa fase muito confusa em que ainda nem as instituições, nem as famílias - a família é uma instituição - sabem muito bem como lidar com as mudanças. E, é claro, que a ponta final deste processo, que é a Universidade, acaba por levar com todos esses problemas.