“Quanto mais forte for a Universidade de Cabo Verde, melhor será o país e mais forte será a nossa cooperação”

PorJorge Montezinho,17 mar 2024 9:16

Emídio Gomes, Reitor da UTAD
Emídio Gomes, Reitor da UTAD

Entre 16 e 20 de Março, uma comitiva da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) – uma das mais jovens universidade públicas portuguesas, situada em Vila Real, no Norte do país – vai deslocar-se a Cabo Verde para firmar parcerias com a Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

Em curso, está já o apoio na formação de docentes nas áreas das Ciências Agrárias e da Enologia e, em breve, serão lançadas as bases para a formação noutras áreas estratégicas para Cabo Verde, como as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) ou a Engenharia Civil.

O Expresso das Ilhas falou com o reitor da UTAD sobre a estratégia da internacionalização da universidade, mas também da missão de contribuir para o desenvolvimento e progresso muito mais solidário.

Começava exactamente por esta visita a Cabo Verde. Porquê Cabo Verde? Quais os objetivos desta visita?

Porquê Cabo Verde? Porque dentro do nosso plano estratégico e nas prioridades estabelecidas para a internacionalização, Cabo Verde é um dos países com quem pretendemos aprofundar essa cooperação. Temos outros também, mesmo no domínio da língua portuguesa, Brasil, Angola, Moçambique, Timor, temos aqui uma enorme comunidade, mas Cabo Verde está na nossa agenda. E entendemos que é o momento de ir a Cabo Verde. Temos a nossa estratégia em fase de consolidação e nada como ir ao local. Aquilo que nos foi pedido, e que nós fazemos, é uma relação institucional. A nossa relação com Cabo Verde, que está em curso, é uma relação com o Governo de Cabo Verde e com as instituições públicas de Cabo Verde, ao nível do ensino superior. É por esta via que vamos, com tranquilidade, de forma paulatina, mas é assim que vemos a cooperação com um país de língua portuguesa, um país irmão com uma longa história comum. Toda a nossa estratégia, toda a nossa presença, tem esta matriz: Governo de Cabo Verde, Universidade de Cabo Verde.

Dentro dessa parceria com a Universidade de Cabo Verde, que medidas serão anunciadas?

Estamos a trabalhar com a Universidade de Cabo Verde na implementação do ensino superior no domínio das Ciências Agrárias e Veterinárias. Somos a melhor universidade de Portugal no domínio de Ciências Agrárias e Veterinárias e estamos no melhor que existe na Europa em muitas áreas. Somos, de longe, a universidade mais distintiva, por exemplo, na área da Viticultura e da Enologia. Por isso, o presidente da Escola de Ciências Agrárias e Veterinárias está integrado na comitiva. Portanto, estamos em pleno processo de cooperação com a Universidade de Cabo Verde para o desenvolvimento das Ciências Agrárias no arquipélago. E, para além disso, na própria ajuda à formação de docentes.

Quando a Secretária de Estado do Ensino Superior esteve em Vila Real, há cerca de um ano, falou da possibilidade da UTAD ajudar na criação do polo do Fogo. Há também o Instituto de Ciências e Tecnologia Agrária, em Santo Antão. Estas questões estarão em cima da mesa?

Essas componentes mais concretas vamos discuti-las com o governo. Estamos num processo de ajuda e de partilha de docentes. E, agora, seremos cooperantes também com as decisões políticas do próprio governo de Cabo Verde. Mas, o que lhe posso garantir é que a evolução do ensino superior em Cabo Verde, no domínio das Ciências Agrárias e Veterinárias, será feita em parceria com a UTAD. E será um caminho que percorreremos juntos, nesta lógica de, muito mais do que apenas receber alunos de Cabo Verde, ajudar à consolidação da formação do ensino superior no próprio país.

Dentro do projecto de internacionalização da UTAD, há algum plano de actividades direccionado para os alunos cabo-verdianos?

O nosso plano é receber todos por igual e bem. Não temos um número muito elevado, são menos de 40, no total, e não temos nenhum problema. Os alunos estão, efectivamente, cá. Estão cá a estudar. A nossa internacionalização é para receber alunos que venham frequentar a UTAD. E apenas e só para isto. E os alunos que nós recebemos, os cerca de 1.100 alunos internacionais que temos, são alunos que estão matriculados, a pagar propinas e a estudar na UTAD. É a nossa forma de estar, é o nosso foco, é a nossa afirmação. Isso para nós é muito importante. Ou seja, não olhamos para a UTAD como um destino apenas de recepção de alunos de Cabo Verde. Olhamos muito mais numa perspectiva de cooperação efectiva e de desenvolvimento conjunto de modelos de ensino superior e investigação nos dois países. E por isso é que partilhamos docentes que irão a Cabo Verde nos próximos anos, durante algum tempo, fazer docência. Para nós é muito importante que a Universidade de Cabo Verde cresça e se afirme. Quanto mais forte for a Universidade de Cabo Verde, melhor será o país e mais forte será a nossa cooperação. Porque não vemos isto numa lógica de número de alunos, até porque preenchemos 98%, 99% das nossas vagas pelos concursos nacionais de acesso, com classificações bastante elevadas. Olhamos muito mais numa forma biunívoca de consolidação, ao nível dos cursos de mestrado e de doutoramento e de projectos de investigação. Estamos numa perspectiva muito mais de médio e longo prazo do que no imediato.

Disse que são alunos que estão na UTAD para estudar. Quando esteve cá a Secretária de Estado e Ensino Superior, o Vice-Reitor da UTAD para a internacionalização falou do critério de selecção dos alunos para evitar taxas de abandono. Esse não é um problema que tenham na UTAD?

Zero, zero por cento. Na UTAD temos zero por cento de abandono destes alunos.

Porque há muitos alunos que vêm para cá, mas depois preferem ficar a trabalhar do que acabar os estudos.

Eu falo da UTAD. Na UTAD, seguimos esta política. É uma política aberta, recebemos todos muito bem, mas é, efectivamente, para este fim. E temos uma taxa de abandono de zero por cento. Acompanhamos os alunos, não deixamos ficar ninguém para trás. Temos planos de integração, temos vários actores a liderar. Criamos salas de estudo dentro do próprio campus. Estamos a ponderar termos um espaço próprio para estudantes internacionais. Portanto, não temos esse problema. Quem cá está, está para estudar. Pagando as mesmas propinas dos estudantes nacionais. Fomos a primeira instituição de ensino superior em Portugal a estabelecer o princípio da língua. Quem tem origem num país com matriz de língua portuguesa, paga as mesmas propinas de um estudante português [a propina internacional é cerca do dobro da propina de um estudante português].

Quais são as estratégias de internacionalização da UTAD? E onde é que Cabo Verde se insere?

Não vemos a estratégia de internacionalização só no número de alunos. Vemos nas questões da dimensão de uma Universidade como espaço de conhecimento, ao nível da investigação e da inovação. Para lhe dar ideia, a UTAD nos últimos três anos teve um maior número de projectos europeus em regime competitivo do que nos outros quase 40 anos da sua história. Nestes três anos, os milhões de euros captados em financiamento competitivo em Bruxelas pela UTAD, é superior aos outros 35 anos da sua história. Isto é uma primeira afirmação da internacionalização. Depois, vemos o espaço da lusofonia como uma prioridade. E a lusofonia não é só Brasil, África e Ásia. É também um espaço natural, que está a crescer muito, que é a terceira geração da emigração portuguesa para a Europa. Começou nos anos 60, em condições muito difíceis, a segunda geração vinha cá de férias à terra dos pais, mas a terceira geração, os netos da primeira geração de emigrantes, tem hoje uma enorme curiosidade em regressar a Portugal para estudar. Temos esta dupla dimensão: uma universidade com uma afirmação internacional à escala europeia, em que temos áreas de conhecimento onde queremos estar ao mais alto nível, e depois o espaço natural da lusofonia, constituída, sobretudo, pelos países de língua portuguesa. E depois temos uma outra dimensão, que é a dimensão da América Latina, de matriz hispânica, onde estamos agora a dar passos suaves, mas seguros. Mas, sobretudo, sempre nesta postura de não olhar para a internacionalização apenas para formas de captar alunos.

Seremos cooperantes com as decisões políticas do próprio governo de Cabo Verde

Essencialmente fazer parte de redes globais de produção de conhecimento.

É isso. Porque isso é a afirmação de uma universidade. Recrutamos e aceitamos quem vem estudar para a UTAD, recusamo-nos a ser entreposto. Somos destino de estudo e de vivência. É claro que se há estudantes que vêm para estudar e resolvem ficar por cá com as suas famílias, são muito bem-vindos. Portugal é um país de liberdade, é um país que tem um problema de demografia sério. E as pessoas que por cá querem ficar, por bem, são muito bem-vindas. Mas essa não é a missão da universidade, no imediato. A nossa missão é acolher bem as pessoas que querem mesmo fazer parte da nossa família durante algum tempo das suas vidas.

Para além de promover a criatividade e a inovação, e de atrair talentos, que mais vantagens tem a UTAD com a internacionalização?

Tem a enorme vantagem da sua afirmação à escala global e de reconhecimento. A UTAD não é a Universidade de Vila Real. É muito mais do que isso. E a UTAD tem na sua matriz identitária a afirmação do território como algo fundamental. Até porque se projectar a UTAD em 2030 e fizer um corte geográfico pelo Marão [Serra do Marão, situa-se na região de transição do Douro Litoral para Trás-os-Montes e Alto Douro], aqui ao lado, o que está para cá do Marão, na totalidade dos cursos, não garante mais do que 600 ou 800 alunos. Em 2030, a região norte de Portugal terá menos 35% de jovens com 18 anos. O interior terá menos 54%. E construir um destino universitário tem que ter esta matriz global. E nesta matriz global de uma universidade desenhada para 8 mil, 9 mil alunos, a componente da internacionalização é obrigatória. Para nós é muito importante estar presente neste campeonato global. A internacionalização é a afirmação da marca e da consolidação da estratégia de um destino universitário. E a UTAD tem tudo para ser o destino universitário mais atractivo em Portugal.

Porquê?

Por múltiplas razões. Porque pode ser um destino atractivo pela qualidade da formação e da investigação que oferece. O Porto e Lisboa também oferecem coisas de muitíssimo alto nível, mas depois têm outro tipo de problemas, que tem uma cidade [grandes] como o Porto ou Lisboa têm e que Vila Real não tem. Se tivermos o melhor campus, as melhores residências, um destino amigável, estando a 50 minutos de um aeroporto internacional considerado um dos melhores da Europa e do mundo [Aeroporto Francisco Sá-Carneiro, no Porto] estamos num local fantástico para se viver e trabalhar. E é a afirmação deste espaço territorial, económico e desenvolvimento social, com a UTAD como um dos seus pilares fundamentais. Não é algo que saia da cabeça do reitor: “agora vamos captar alunos internacionais”. Não, não é assim. É olhar para a marca e para a afirmação do destino universitário de uma forma global.

Ao mesmo tempo pode ajudar países terceiros, como é o caso de Cabo Verde. A exportação do conhecimento é importante para a universidade?

Por isso, disse no início que a nossa estratégia não é uma estratégia de ter alunos de Cabo Verde. É uma estratégia de cooperação com Cabo Verde, ajudar Cabo Verde a consolidar-se como um país desenvolvido no futuro. Quanto melhor e mais desenvolvido for Cabo Verde, quanto melhor for o ensino superior em investigação e inovação em Cabo Verde, melhor será a UTAD. Sempre tive essa visão. O território é o que me move. O território na região, o território no país, o território nas nossas ligações ao exterior. Cabo Verde fará parte do nosso território de cooperação, no bom sentido.

No seu discurso de tomada de posse, falou de instabilidade, mas também de sustentabilidade. Como é que é liderar uma universidade nestes tempos de incerteza?

No imediato é fácil. A universidade está muito bem, tem o maior número de alunos de sempre, uma situação financeira muito estável, recuperou capacidade de investimento. Quando se olha a um ano ou dois à frente, percebe-se como se vai conduzir as coisas. Quando se olha seis ou oito anos à frente, só se vê vazio. Vê-se vazio no sentido de como é que se vai lidar com este problema da demografia, de jovens com 18 anos, quando as políticas públicas, para o país, são de um grau de incerteza completa. Para mim, a maior dificuldade é pensar a universidade para além do ano presente e dos dois próximos anos, onde consigo perceber minimamente o que vai acontecer, como corrigir, os riscos a correr e como amortecer. Somos uma universidade que vai receber, em 2024, 40 milhões de euros de apoio público, do orçamento de Estado, e que gasta 44 milhões de euros em salários, e que vai ter um orçamento real de 84 milhões, portanto, o orçamento de Estado já é menos de metade do orçamento real da universidade. Projectar a universidade a médio prazo é tentar perceber como é que posso garantir esta margem de solvabilidade da universidade para sustentar a sua estratégia. Porque no dia que a universidade for orçamento de Estado e propinas, não precisa de um reitor. Hoje o grande desafio é como é que se projecta uma universidade para além daquilo que é o apoio público do orçamento de Estado, para que ela seja uma entidade viva. Uma universidade que não investe é uma universidade que morre. O investimento é o oxigénio de uma universidade. E isso também é uma mensagem que eu tentarei levar aos responsáveis de Cabo Verde. O investimento na qualificação, de pessoas e condições de ensino e investigação é o oxigénio de uma universidade. Isto é o dia-a-dia da universidade. Investir, investir, investir, investir, investir. Para isso, não podemos estar dependentes só do Orçamento de Estado.

África é o continente onde toda a gente quer estar – todas as universidades inglesas já estão no continente, por exemplo – mas poucos percebem exactamente como se conseguem integrar. Cabo Verde pode ser a porta de entrada para algo maior, no continente, para a UTAD?

Essa é a minha grande dúvida, e, quando digo dúvida, não é pela negativa. É o grande desafio, ou seja, até pelas características dos alunos que recebemos, e o facto da maioria dos alunos que estão na UTAD, oriundos de Cabos Verde, serem de segundo e terceiro ciclo [mestrados e doutoramentos], com um grau de maturidade elevado, torna aquele país fascinante e muito apetecível. Porque é que um país que está ali, ao lado, por exemplo, da Guiné-Bissau, que tem outro tipo de características, tem aquela qualidade de massa humana? Cabo Verde, efectivamente, dá-nos aquela luzinha de esperança de poder ser um grande laboratório experimental para países que depois, do ponto de vista territorial, têm outra dimensão, como é o caso de Angola e de Moçambique. Cabo Verde tem este enorme fascínio, o fascínio de percebermos uma população jovem, activa, sem medo. Esse é o maior fascínio, o gigantesco potencial que se adivinha nesta cooperação. Tudo faremos para motivar o Governo de Cabo Verde e a Universidade de Cabo Verde a aprofundar esta cooperação. Gostaríamos muito que daqui a 5, 10, 15, 20 anos, quando Cabo Verde olhar para o seu desenvolvimento, possa dizer: a UTAD deixou uma marca no nosso território. A cooperação com o UTAD está presente em Cabo Verde. É o nosso sonho.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024. 

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Autoria:Jorge Montezinho,17 mar 2024 9:16

Editado porFretson Rocha  em  22 nov 2024 23:26

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