Cheira a mundo no Kitchen Lab da UTAD. No ar, aromas de mufete, de Angola, de tadjine lahlou, da Argélia, de pão de queijo, do Brasil, de chicken biryani, da Índia, de baklava, da Turquia, de badjias, matapa e frango à Zambeziana, do ‘país anfitrião’ Moçambique, de Parmigiana di Melanzane, de Itália. E há também o odor de uma cachupa.
Mas também se ouve o mundo, no laboratório culinário da UTAD, os estudantes moçambicanos e angolanos dançam e cantam enquanto cozinham, um “caos total, mas um caos pacífico, tranquilo, uma animação”, dizia um divertido reitor Emídio Gomes ao Expresso das Ilhas.
No total, foram mais de quatro dezenas de entradas, pratos principais e sobremesas, confecionadas por estudantes de 23 países e degustados (num ápice), no restaurante Panorâmico da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, no norte de Portugal.
A cachupa foi cozinhada pela Cátia – Catarina Fernandes – e a Iza – Luzileide Almeida (também houve gelado de Camoca, para completar o menu insular). “Levou milho, feijão, carne – frango, vitela, entrecosto – enchidos, batata, cenoura, repolho e os condimentos”, enumera a Cátia. “Quando experimentarem a cachupa e o gelado vão logo a correr para Cabo Verde”, continua a aluna de mestrado de Engenharia Biomédica, que usa um vestido com as cores da bandeira cabo-verdiana.
Sabores e saberes
Está um dia cinzento e frio em Vila Real. De vez em quando caem umas chuvas ligeiras. Ao entrar no campus da universidade, o verde do ambiente parece mais vivo por causa da cor parda que o rodeia. O lago, à direita da subida para a zona dos edifícios, reflecte as montanhas em redor. Do lado esquerdo, dois cavalos pastam, tranquilos.
É um cenário que encanta quem não o conhece, como o cônsul-geral de Moçambique, Pedro Alucuamala, que se mostra surpreendido com cada canto e recanto de flora que envolve o campus da universidade transmontana.
O diplomata é um dos convidados do “International Day”, que vai na terceira edição, e teve, pela primeira vez, um país convidado. Cabo Verde será o segundo em destaque.
O programa começa ao início da tarde com “Ligações para a Vida numa Tela de Todos”, uma actividade artística dinamizada por Carlos Ortega García e integrada na exposição “Apilarnos”, onde, recorrendo a suportes e materiais não convencionais, o pintor colombiano – que é doutorando em Ciências da Cultura na UTAD – desafia os participantes a usufruir “da liberdade de interpretar, de comunicar ou simplesmente de fazer parte de algo”.
Mais chuva e as actividades previstas para o largo dos alunos tem de ser transferida, mais cedo, para o restaurante Panorâmico. Enquanto na cozinha se dão os últimos toques, na sala ouvem-se os acordes das Marrabentas. Estudantes moçambicanos, de capulanas coloridas, dançam. O cônsul, contagiado pelo ritmo, também. No final de cada música, Mateus Machanguana, aluno de mestrado em Engenharia do Ambiente, traduz para português o que foi cantado em changana.
O International Day pretende fomentar o conhecimento e a troca de experiências entre estudantes de 55 nacionalidades que frequentam a UTAD. Um sinal de cosmopolitismo, numa sociedade que está a atravessar uma fase cada vez mais fechada em si própria.
“Nós somos a família de acolhimento destes estudantes”, diz o reitor da UTAD. “E daí a importância do International Day e de outras iniciativas ao longo do ano, em que queremos fazer ver a esta comunidade e a quem nos visita e a quem também tem responsabilidades na gestão destes fluxos migratórios, que os nossos alunos estão na sua família de acolhimento, que é a própria instituição. E daí que seja até um pouco tocante este ambiente de alegria que vivemos hoje”.
“A afirmação da UTAD no mundo, para mim, passa por isto: uma universidade é um local que forma melhor as pessoas em todas as suas dimensões e não apenas na dimensão do conhecimento académico e científico”, reforça Emídio Gomes.
International Day e internacionalização
“Isto começou com a entrada do professor Luís Ramos na equipa [vice-reitor para a internacionalização] e com a experiência que tem nesta matéria”, explica Emídio Gomes, reitor da UTAD. “Foi quando começámos a pensar como crescer na internacionalização, mas de uma forma estruturada. Ou seja, a nossa ambição não é ter um número X de estudantes, é: qual é a nossa estratégia? E desde logo a nossa estratégia teve uma primeira matriz forte que é a língua portuguesa. Mais do que olhar para o êxodo de jovens de Cabo Verde, ou da Guiné, e das motivações desse êxodo, nós pensámos ao contrário, como é que ajudamos os países que partilham connosco a língua – sobretudo os países dos PALOP e Timor – a serem melhores países e melhor capacitados? E foi a partir daí que construímos este modelo”.
Mas este modelo olha também para os falantes de português, na Europa, principalmente para a terceira geração de emigrantes portugueses. “Nos anos 60, os portugueses saíram do país em condições muito difíceis. Muitos já não têm memória da vida desses portugueses, nesses anos, nos arredores de Paris e isso tem de ser lembrado quando hoje assistimos a este debate enviesado sobre a imigração. Devíamos lembrar-nos disto. Quando fomos um país de emigrantes, éramos imigrantes no país que nos recebia”, refere o reitor da UTAD.
“As pessoas partiram em condições difíceis, mas hoje Portugal é um país diferente e os netos dessa geração querem vir para Portugal. Muitos luso-descendentes de emigrantes em França, na Suíça, na Alemanha, querem vir estudar para Portugal. E esse é o segundo ponto da nossa internacionalização. O terceiro é a dinâmica da investigação. Quais são as redes com quem temos conhecimento e como é que integramos essas redes na universidade. A partir daí, construímos o nosso modelo”, explica Emídio Gomes.
A UTAD foi recentemente considerada uma das 250 melhores universidades do mundo fundadas há menos de 50 anos, de acordo com o Times Higher Education Young University Rankings. A UTAD está no grupo das 201-250 melhores instituições, de um total de 673 universidades avaliadas segundo diversos critérios, incluindo reputação e produtividade da investigação, qualidade de ensino, perspetiva internacional e transferência de conhecimentos.
O reitor da UTAD diz que este reconhecimento vai ter também peso na internacionalização da universidade. “Isto obriga-nos a duas coisas: a trabalhar mais para melhorar – alcançar o sucesso é difícil, mas por vezes mais difícil ainda é gerir o sucesso – mas também isto anima-nos a continuar e percebemos o impacto que temos que junto destes países”.
Cabo Verde na UTAD
Ainda não são muitos, mas vêm de quase todas as ilhas. A Cátia e a Isa são de Santiago – de Assomada a Catarina, do Tarrafal a Luzileide.
A Isa está a frequentar o mestrado em ciências da comunicação e chegou a Vila Real em Agosto do ano passado. “Não estou cá há muito tempo, mas é o suficiente para conhecer Vila Real e para já estar um pouco adaptada”, diz ao Expresso das Ilhas.
O início não foi fácil. “Foi uma mudança radical”. Do calor de Cabo Verde veio para o frio de Trás-os-Montes [Muitos alunos, principalmente os que chegam de destinos mais quentes, não estão preparados para as temperaturas que vão enfrentar, por isso, a UTAD tem roupa de inverno que qualquer aluno pode usar sem qualquer custo].
“A minha adaptação agora está boa, mas no início não foi nada fácil”, conta Isa. “Quando cheguei a Vila Real não conhecia ninguém. Os colegas não eram muito inclusivos, mas já estou mais enturmada”.
A Cátia, de Assomada, está há mais tempo em Portugal. Fez licenciatura em tecnologia biomédica no Instituto Politécnico de Bragança e veio fazer o mestrado, em Engenharia Biomédica, na UTAD. “Tive muitos desafios para ultrapassar, mas para quem quer muito uma coisa, nada é impossível. Batalhei, consegui acabar todas as disciplinas e agora só falta a dissertação”.
Só no ano passado regressou a Cabo Verde, “depois de 5 anos sem ir à terra, sem ver os meus pais. Estamos longe, não temos ninguém e estar longe de casa e da família faz com que, às vezes, precisemos de um pilar. É como cozinhar uma cachupa, tem que ter um pé, senão a panela não cose. Precisamos de um suporte e esse suporte por vezes são os amigos”.
A UTAD foi a primeira universidade – hoje já há outras a repetir – que instituiu uma propina igual para todos os alunos que vêm de países lusófonos – a propina para estudantes internacionais é o dobro do que pagam os nacionais. Para a estudante cabo-verdiana, esta medida é fundamental para quem vem de fora.
“Foi uma grande vitória e estamos muito agradecidos à UTAD por ter essa consciência”, diz Cátia que, sem bolsa, tem de trabalhar e estudar ao mesmo tempo. “Há pessoas que não têm condições, imagina ter de pagar toda a propina internacional de entrada, o dinheiro que muitas vezes é o que as pessoas têm para sobreviver o ano inteiro”.
A UTAD em Cabo Verde
Em Março, uma comitiva da UTAD deslocou-se a Cabo Verde, onde assinou um protocolo de cooperação com a Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) e teve reuniões com o titular da pasta da Educação e com o ministro-adjunto do primeiro-ministro para a Juventude e Desporto. A universidade portuguesa vai apoiar no reforço do desporto do país e no lançamento do curso de engenharia informática.
A UTAD vai também formar professores e quadros para as áreas de engenharia, ciências agrárias e ciências veterinárias no arquipélago e vai colaborar em projectos de investigação para responder aos desafios das alterações climáticas, promovendo a gestão eficiente de água e a utilização de energias renováveis.
“Viemos [de Cabo Verde] com uma ideia fabulosa. Fantástica”, diz o reitor da UTAD ao Expresso das Ilhas. “Vi um Estado organizado, um povo tranquilo, ambicioso, que se faz à luta, que não hesita em sair quando é preciso, em se atirar ao mundo e muito disponível para aceitar a cooperação como algo que no futuro terá resultados positivos para os dois lados”.
Em 2025, como anunciado na edição deste ano, o International Day da UTAD vai dar destaque a Cabo Verde. “Escolhemos Cabo Verde porque é um país exemplar. A seguir, não sei quem será, mas a escolha de Cabo Verde foi tranquila”, resume Emídio Gomes.
Entre uma corrida da cozinha para a sala do restaurante para servir mais uma cachupa, a Cátia atira um “o quarto ano do International Day da UTAD vai ser o melhor de todos, estão a ouvir aqui”. Ri-se. Depois, mais séria, assegura, “vai ser um desafio, mas vamos ser capazes e conseguir dar o nosso melhor”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1173 de 22 de Maio de 2024.