Há muito que Sónia Semedo conhece os vários programas da americana Fullbright, entre os quais o Fullbright Visiting Scholar, destinado ao intercâmbio científico entre docentes que já têm, ou estão a fazer, o doutoramento. Licenciada em Física e doutorada em Instrumentação, quando no ano passado surgiu, pela primeira vez para Cabo Verde, a possibilidade de concorrer a uma bolsa para esse programa específico, a docente pensou que era uma boa oportunidade, num momento certo. Concorreu e foi seleccionada.
ARISE
Mas para falarmos da sua candidatura ao Fullbright é preciso ir um pouco atrás. Tal como a própria Sónia explicou na entrevista de selecção que fez na embaixada dos EUA em Cabo Verde, tinha recebido meses antes, em Junho de 2022 uma bolsa do ARISE (African Research Initiative for Scientific Excellence), um programa de apoio à Investigação e Inovação destinado a investigadores de todo o continente e promovido pela Academia Africana de Ciências, em parceria com a União Africana e a União Europeia. Entre quase mil candidatos, Sónia foi um dos 47 investigadores seleccionados. No seu caso, o projecto apresentado foi “Soluções inteligentes para a água e agricultura face as mudanças climáticas em Cabo Verde”, que foi apoiado com quase 500 mil euros, para um período de cinco anos.
O intuito, por trás deste prémio, como explica Sónia Semedo é criar “centros de excelência científica” em África, nomeadamente através da capacitação de investigadores. Nos projectos seleccionados deverão obrigatoriamente de participar estudantes de doutoramento e mestrado e pretende-se “engajar toda a comunidade em iniciação científica”. Além disso, visa-se apetrechar laboratórios com aparelhos e tecnologias. Ou seja, criar as bases para, no final dos cinco anos, o centro já ser, de alguma forma uma referência e, a partir dele, se “poder voar mais alto para outros tipos de projectos”.
Fullbright
Em 2022, na altura em que lhe foi atribuída a bolsa do ARISE, Sónia recebeu um e-mail institucional, com a informação de que o Fullbright Visiting Scholar, um programa que nunca tinha sido aberto para Cabo Verde, estava a aceitar candidaturas no país.
Ao tomar conhecimento, Sónia pensou que seria uma boa oportunidade para colmatar algumas “fragilidades” que detectou a nível do Inglês quando recebeu o ARISE. “Notei que precisava de melhorar o meu listening” e a imersão num país anglófono era, pois, o ideal.
A par com a melhoria da scompetências linguísticas, outro motivo que impulsionou a candidatura foi o facto de que essa temporada nos Estados Unidos irá permitir-lhe “fomentar a investigação para contribuir para o projecto ARISE”.
Durante a candidatura, foi-lhe também solicitado que indicasse instituições com as quais gostaria de trabalhar e eventuais contactos. Sónia indicou aWellesley College, da qual recebe estudantes que vêm frequentar um estágio de Verão na UniCV.
“Vinham e trabalhavam no laboratório junto com os meus estudantes, desenvolvendo sistemas de monitorização da qualidade da água”. Será então essa a entidade anfitriã.
Ao todo terão sido apresentadas cerca de 45 candidaturas de investigadores de várias áreas para o US Fullbright. Um sinal muito positivo, no entender de Sónia pois mostra “que temos muitos investigadores elegíveis”.
Sónia Semedo foi a seleccionada e no próximo 1 de Abril seguirá rumo a Boston, onde ficará durante três meses, investigando e definindo “quais são as melhores recomendações para a utilização na internet das coisas na agricultura em Cabo Verde”, com foco na inovação de mais aspectos relacionados ao desenvolvimento tecnológico nesta área. Os restantes dois meses do programa (no total serão cinco meses) serão concluídos em Cabo Verde, onde será implementado um projecto piloto de “agricultura inteligente”, com base na investigação realizada.
Tal como em outros projectos já desenvolvidos, este projecto, que também é levado a cabo no âmbito do ARISE, funcionará num campo de experimentação da UniCV, onde será testado, antes de se implementar junto aos agricultores.
Agricultura inteligente
Mas afinal o que é isso de agricultura inteligente e o que se pretende? “A ideia é termos sensores no solo, que nos permitam monitorizar o nível da humidade, mas também os nutrientes e outros parâmetros que vamos descobrir ao longo da investigação que vamos fazer” durante o programa Fullbright. A análise desses dados, “com ou sem a ajuda da inteligência artificial”, irá depois suportar a tomada de decisões.
Actualmente, há já um projecto de Sónia Semedo centrado na rega inteligente. “Temos sensores de humidade no solo e informamos os agricultores e recomendamos quando é uma boa hora para accionarem a rega”.
Há, pois, inovações na agricultura nacional em curso e vive-se um momento de necessária “fase de transição agrícola, para que os agricultores conheçam a tecnologia e adoptem sem nenhum receio”, explica.
Uma vida de investigação
E quem é Sónia Semedo? Sónia, nascida em Pilão Cão, no Concelho de São Miguel, sempre gostou de estudar e desde cedo se interessou por Física. Assim, foi essa a área que que escolheu quando, findo o secundário, foi para Portugal para frequentar a universidade. Nunca mais parou. Fez o Mestrado e depois Doutoramento na área da Instrumentação.
E muita investigação. Investigação engloba várias componentes, da Robótica, às mudanças climáticas, etc, passando, claro pela física.
Como se misturam todas estas áreas? “Vai ver que faz todo sentido”, diz-nos, antes de começar a explicar os caminhos que se cruzam em todas estas áreas.
“Já durante a licenciatura, em Física, trabalhei num laboratório de automação e robótica, desenvolvendo dispositivos para ajudar os traumatizados medulares na fisioterapia. Isso é nada mais, nada menos do que robótica. No mestrado, continuei ligada ao laboratório da robótica. Depois, fui fazer investigação, embora não estivesse mais directamente relacionada à robótica, envolvia sensores. Estava a desenvolver um sistema para monitorização da perfusão sanguínea, pois, especialmente em pessoas que são diabéticas, às vezes, a pele começa a necrosar. Era preciso verificar se estava tudo bem ou não.”
Sónia entrava aí na área de Instrumentação e decidiu então fazer um doutoramento na área. Começado o doutorado, foi convidada por um professor, do laboratório de robótica, para trabalhar e continuar o doutoramento numa empresa. Aceitou e transitou da saúde para a energia, desenvolvendo agora sensores para monitorar equipamentos numa subestação eléctrica.
“Então, sempre trabalhei com microcontroladores, com sensores e sempre procurei que o sistema actuasse. Tudo isso é robótica”.
E a robótica também lhe serve “para espairecer um pouco”, incentivando estudantes a participar em concursos e projectos. Em Julho de 2023, por exemplo, uma equipa de estudantes (SmartUniCV) liderada por Sónia participou na Competição Pan-Africana de Robótica, no Senegal, onde conquistou o quarto lugar.
Incentivar para as STEM
Mas não é só ao nível dos estudantes universitários que Sónia Semedo quer compartilhar a paixão pelas STEM, cultivando neles o “bichinho” por estas áreas. A investigadora já em várias iniciativas dirigidas a jovens com idades bem mais baixas.
Desenvolveu, nomeadamente, conteúdo para instrumentação, para os WebLab das escolas secundárias. Aí, “os estudantes podiam aprender, através de blocos, como programar. Desenvolvi coisas simples como um termómetro, um semáforo, ou então um assistente para me trazer café ou algo do género. É que tínhamos um robot que era suposto a seguir uma linha, e eu pensei: ‘se ele segue a linha vazia, pode-se colocar uma chávena em cima e ele trá-la’. Foi algo na brincadeira, uma forma a inspirar os jovens a seguirem essas carreiras, de lhes retirar o receio de que esta é uma área complicada. Quando temos vontade, nada é complicado”, conta.
Sónia Semedo, aliás, mostra-se entusiasta do projecto dos WebLab.
“Para mim, são como as Biblioteca móveis que existiam há muito tempo e que iam as aldeias. Iam e nós tínhamos acesso aos livros e líamos. Era o que o Weblab estava a fazer, mas no mundo digital”, compara.
(NR: De notar que os WebLab entretanto, se encontram fechados, à espera de uma reformulação do conceito da sua actividade).
Quanto à procura pelas áreas STEM por parte dos jovens, os dados mostram que ela existe, sim. Basta ver que a Faculdade de Ciência e Tecnologia – com 13 cursos de engenharia, Medicina, Enfermagem e dois programas doutorais - é neste momento a faculdade da UniCV que tem mais alunos.
“Se antes apostava-se muito na parte social, hoje em dia também já se aposta muito também nas áreas STEM”, observa. Aliás, uma procura que já se nota no próprio ensino secundário, na escolha da área a seguir.
Meninas nas STEM
Apesar de todas as mudanças, nota-se porém ainda uma enorme discrepância da presença de meninas nas STEM, principalmente nas Engenharia. Sónia Semedo, tal como já aconteceu em outros anos, tem inclusive uma turma sem raparigas.
“Na Biologia, Medicina, Enfermagem, o grosso continua o rosto continua a ser feminino, enquanto que nas Engenharias, já é o contrário”, especifica.
O motivo, certamente, não é falta de capacidade. “Se alguém tem capacidade para ir para Medicina que, para mim, é um dos cursos mais duros, significa que tem capacidade para fazer qualquer curso de Engenharia”, observa.
Então essa ausência deverá ter haver com “afinidades” e, assim sendo, a resposta não pode ser “empurrar” para essas áreas. Aliás, experiências conhecidas em outros países mostram se quando se faz uma certa “pressão” para aumentar a presença de meninas nas STEM – sem um trabalho de base, desde a primeira infância e em diversas esferas que moldam as afinidades –, revelam falhanço nos resultados pretendidos. Num primeiro momento, o número de mulheres em cursos STEM pode aumentar, de facto, mas depois há inúmeras desistências a meio percurso.
“Não devemos fazer aqui em Cabo Verde, as poucas que aparecem tem que ser de livre e espontânea vontade”, porque elas realmente querem, pois, “sem gosto, na primeira dificuldade, desistem”.
Sónia, que já esteve envolvida em várias iniciativas para promover o envolvimento das meninas nas STEM, ressalva que adere às mesmas principalmente com o objectivo de “informar”, dar a conhecer o que existe para melhor tomada de decisão, “não de obrigar a que alguém tome essa decisão”.
Entretanto, observa, cada vez mais, as STEM são as áreas com mais oportunidades.
“Por isso, continuo a afirmar que devemos apostar nas áreas STEM e que quem tem interesse, deve fazer um esforço” para estar na área, sublinha, lembrando que “independentemente da área que escolhemos, enfrentaremos sempre desafios”.
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União de Físicos da CPLP
Mulher activa, de muitos projectos, Sónia Semedo é também a actual presidente da União de Físicos dos Países de Língua Portuguesa (UFPLP), criada em 2019, com o objectivo “incentivar e contribuir para o desenvolvimento da carreira de Física nos países de língua portuguesa”, bem como a promover junto à sociedade.
Conforme destaca a docente, “a Física, a par da Matemática, é a base de qualquer inovação”. Contudo, ambas as áreas a não despertar muito interesse, algo que Sónia atribui ao desconhecimento da suas aplicaçãoes. “A física está aplicada a tudo”, nas menores coisas do dia-a-dia, sublinha.
Assim, a união, que conta com cerca de uma centena de membros individuais e várias sociedades e entidades colectivas (como a Sociedade Portuguesa de Física) associadas, tem um plano de actividades com acções voltadas para os físicos, como a webinar mensal ou a conferência bi-anual, da qual Cabo Verde foi o anfitrião em 2022, mas também iniciativas junto à sociedade e estudantes.
“Estamos a ver, junto com a CPLP, a possibilidade de financiarem as Olimpíadas de Física” em Cabo Verde, uma vez que se trata de um evento que incentiva à descoberta e ao gosto pela área, adianta a investigadora.
“Neste momento, só Portugal e Brasil têm Olimpíadas e nós queríamos dar um boost para que nos países africanos e Timor Leste começássemos também a ter Olimpíadas de física”, diz. Regulamentação e estratégias já estão definidas, falta pois financiamento e também mais parceiros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1164 de 20 de Março de 2024.