“A realidade é outra”. Em São Pedro, ninguém duvida que uma tartaruga viva vale mais que uma tartaruga morta

Nos arredores da cidade do Mindelo, observação de tartarugas provoca mudança de comportamento e ajuda a proteger espécie ameaçada. Agora, falta a regulamentação de uma actividade económica e ambientalmente transformadora.

Na comunidade piscatória de São Pedro, em São Vicente, há cerca de seis anos que é possível observar e nadar com tartarugas. Com recurso a embarcações artesanais, os promotores cobram de 1.500 a 2.500 escudos por pessoa, para um passeio de até uma hora. Como resultado, a espécie protegida e em perigo de extinção deixou de ser caçada e passou a ser um produto turístico, com benefícios para várias famílias.

Maior dinâmica económica e mais rendimento para dezenas de pessoas. Efeito prático da introdução da actividade turística na localidade de São Pedro, a dois passos do Aeroporto Internacional Cesária Évora, arredores da cidade do Mindelo. Quem o diz são os próprios operadores locais.

A iniciativa resolveu o problema da captura de tartarugas para comércio e consumo, antes enraizada, apesar de proibida por lei. Depois de anos de sensibilização, pescadores e população perceberam que uma tartaruga vale mais viva que morta.

A área de observação fica a cerca de uma centena de metros da costa. Atraídas pela rotação do motor dos pequenos botes, as tartarugas aproximam-se das embarcações.

Carlos Araújo, 37 anos, confessa que também já capturou tartarugas para venda e consumo. Há quatro anos mudou de perspectiva e hoje promove passeios com turistas.

“Estou mesmo satisfeito. Antigamente, mesmo os pescadores, quando não apareciam peixes, apanhavam tartarugas. Tudo mudou, a comunidade sensibilizou-se, toda a gente se sensibilizou e nós estamos a proteger as tartarugas. Transmitimos a mensagem boca a boca. É uma fonte de rendimento. Vou dizer-lhe sinceramente, há uns quatro anos, se não fossem as tartarugas, teríamos muitas pessoas na zona com muita dificuldade, mas graças a Deus temos esta riqueza e temos de saber tirar o proveito dela”, comenta.

Carlos emprega cinco pessoas e trabalha com reservas feitas por agências e particulares. É assim que garante o sustento da família e a educação dos filhos.

Os próprios turistas recebem indicações para a necessidade de preservação das tartarugas, da baía e do meio envolvente.

“No início da actividade, antes da entrada na água, fazemos um pequeno briefing. Quando chegamos ao local, damos instruções para não tocarem nas tartarugas. Normalmente, quando encontramos sujeira no mar, plástico ou qualquer outra coisa, apanhamos tudo e colocamos dentro do bote, para depois levar para o contentor. Mesmo na praia, também fazemos limpeza”, observa.

Jairson Rocha, 39 anos, é pescador e também investiu na observação de tartarugas, a par de excursões para pesca desportiva. Fala de uma mudança de mentalidade.

“As pessoas faziam captura para comercializar a carne e mesmo para consumo próprio. Atualmente, a realidade é outra. Esta actividade é uma das grandes atrações turísticas. Há turistas nacionais e internacionais que nos visitam por causa disto. As pessoas já têm outra mentalidade”, realça.

Jairson fala de lucro e dinamização da economia local. A adopção de um comportamento ambientalmente responsável é uma preocupação.

“Elas estão no seu habitat, não dependem apenas do peixe que lhe damos, seguem a sua dieta e tentamos não interferir no seu ecossistema”, diz.

A observação e natação com tartarugas é actualmente desenvolvida por perto de uma dezena de embarcações, mas o seu impacto é mais abrangente. Janique Lima vai todos os dias à praia vender produtos que prepara em casa.

“Para mim, é uma coisa importante que estão a fazer aqui. Também podemos vir vender os nossos produtos, ganhar o pão de cada dia. Por acaso, está a correr bem, dá para sustentar a minha filha”, confirma.

Solange Santos, proprietária de um bar de praia em São Pedro, não deixa de destacar o impacto positivo no seu negócio, mas lamenta a ocorrência de alguns casos de delinquência.

“Desde que começou a observação de tartarugas, verificamos muita delinquência, uso de drogas, álcool. Às vezes, é só Deus na causa. Precisamos de segurança, principalmente quando há turistas”, apela.

Contactada, a Polícia Marítima de São Vicente afirma não ter registo de casos de perturbação da ordem pública relacionados com a observação de tartarugas.

O presidente da Associação dos Pescadores de São Pedro, Luís Andrade reconhece o potencial e o que de bom a actividade tem trazido para a localidade. Acha que é possível fazer ainda melhor e, por isso, pede mais e melhor organização.

“Esta actividade é rentável, tem um impacto positivo, todos os jovens ou embarcações que fazem este trabalho recebem. Como presidente da Associação dos Pescadores de São Pedro, devo dizer que ela deveria ser feita de forma mais organizada, abrangendo várias embarcações”, defende.

Ganhos ambientais

Necessariamente, um dos maiores ganhos da observação de tartarugas é ambiental. Alberto Queiroga, investigador e director do Departamento de Conservação da associação ambientalista Biosfera I segue há anos o trabalho que tem sido feito em São Pedro.

“A mudança geral que aconteceu na comunidade de São Pedro é muito positiva, porque passámos de uma situação em que matávamos tartarugas, para uma situação em que estamos a proteger tartarugas, estamos a desenvolver uma actividade económica”, aponta.

Alberto Queiroga realça “a mudança de mentalidade” que permite “entender que uma tartaruga viva pode dar muito mais rendimento que uma tartaruga morta”.

Cabo Verde é um dos principais locais de nidificação do mundo. Quase 100% das tartarugas que desovam no arquipélago são da espécie Careta-Careta, mas todas as tartarugas marinhas estão ameaçadas de extinção. Ainda há muito por fazer.

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Ana Veiga, directora executiva da organização não governamental (ONG) Lantuna, em Santiago, lamenta a elevada captura que continua a acontecer, sobretudo em alto mar.

“No ano passado, nas áreas em que actuamos, contabilizámos 75 tartarugas mortas, 70 das quais entre Cidade Velha e Porto Mosquito e cinco no município de Tarrafal [Santiago]. Mas os números são bem maiores, porque há outras praias e outras zonas costeiras sobre as quais nós não temos informações. Cada vez mais, os infractores desenvolvem técnicas para esconder os resíduos”, menciona.

Na maior ilha do país também há acções que combinam criação de rendimento e protecção ambiental. Ana Veiga pede regras claras.

“Há voluntários que vêm trabalhar na conservação das tartarugas marinhas e ficam em casas de família, que têm rendimento com o alojamento desses voluntários. Também há pessoas que são contratadas para patrulhar as praias. Em termos de observação directa das tartarugas, ainda não é muito expressivo. Há alguns guias que fazem, mas não de forma totalmente legal. Carece da regulamentação, para que não existam impactos negativos”, releva.

Em Santo Antão, a Terrimar - Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, fundada em 2021, é a ONG responsável pelas campanhas de protecção de tartarugas. Silvana Roca, bióloga e directora executiva da ONG, lamenta que se continuem a registar casos de capturas.

“Durante a noite, especialmente nas praias do concelho de Porto Novo, que são muito extensas”, sustenta.

“São números muito baixos, quatro, cinco por temporada, mas claro que gostaríamos que não houvesse nenhuma apanha. Infelizmente é algo que está enraizado e ainda há pessoas que insistem, mesmo sabendo que é crime e que há uma punição”, acrescenta.

Zófia Hadouen, ponto focal do Plano de Conservação das Tartarugas Marinhas, na Direcção Nacional do Ambiente (DNA), confirma que, apesar da criminalização, a captura de tartarugas continua a ser uma realidade. Ao mesmo tempo, aplaude iniciativas como aquela que se desenvolve em São Pedro, ilha de São Vicente.

“Só o facto de conseguirem perceber que proteger e conservar garante muito mais dividendos económicos do que caçar, só esse facto, já é de se parabenizar”, enaltece.

“A apanha, infelizmente, é algo que, apesar da sensibilização feita ao longo dos anos, ainda existe. Há quem diga que é cultural, que vêm os emigrantes e que estimulam a comercialização dessa carne. Há uma festa religiosa onde as pessoas guardam carne de tartaruga para ser servida durante a ocasião. Temos conhecimento de jovens que receberam toda a sensibilização, jovens de 20 e poucos anos, e que continuam a consumir carne de tartaruga. Algo deverá ser feito. Deveremos continuar a insistir na sensibilização e também começar a colocar medidas mais pesadas”, declara.

A actividade de observação e natação com tartarugas não é licenciada. A legislação existente diz respeito apenas à observação de tartarugas em terra. É por isso que está a ser trabalhada uma alteração legislativa, que incluirá um código de conduta.

“É uma questão que tem de ser resolvida”, clarifica Zófia Hadouen.

“Com o diploma, sairá também a regulamentação da actividade, em que deverá ser cumprido todo um código de conduta”, reforça.

Um dos pontos do código será sobre a alimentação dada às tartarugas pelos promotores dos passeios. Acredita-se que os alimentos atirados ao mar, como forma de atrair as tartarugas, poderão comprometer a sua dieta natural.

“O próprio regime jurídico já proíbe tocar e alimentar os animais”, lembra a representante da DNA.

Esforço de preservação

Desde 2016 que as autoridades nacionais financiam onze associações comunitárias e organizações em todas as ilhas do arquipélago. No total, são actualmente monitorizados cerca de 167 km de costa, num esforço de preservação contra a extinção das tartarugas marinhas.

Em 1987, Cabo Verde introduziu legislação especifica de protecção da espécie, com um conjunto de proibições. Desde 2018, vigora uma nova lei, mais restritiva, que criminalizou um conjunto de práticas, incluindo abate intencional, aquisição, comercialização, transporte, desembarque, exportação e consumo.

As tartarugas marinhas são uma espécie de crescimento lento e vida longa, que ajudam a manter o equilíbrio dos ecossistemas. De acordo com a ONG Projecto Biodiversidade, o desaparecimento das tartarugas marinhas e de outras espécies-chave do oceano afectaria de forma directa e significativa o equilíbrio dos ecossistemas marinhos, com um grande impacto social e económico para a nossa própria espécie, a humana.

Esta reportagem foi produzida para a Rádio Morabeza e Expresso das Ilhas no âmbito do programa Terra África, da CFI – Agência Francesa de Desenvolvimento dos Media.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024.

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Autoria:Fretson Rocha, Nuno Andrade Ferreira,13 abr 2024 9:10

Editado porJorge Montezinho  em  15 abr 2024 9:45

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