Negar a política é negar a democracia

PorSara Almeida,14 abr 2024 8:33

Cláudio Gonçalves Couto, Professor de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas
Cláudio Gonçalves Couto, Professor de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas

O cientista político Cláudio Couto foi um dos oradores convidados pelo governo de Cabo Verde para a Conferência Internacional “Liberdade, Democracia e Boa Governança: Um olhar a partir de Cabo Verde”, que decorreu no Sal, nos dias 8 e 9. Autor de um conhecido canal no Youtube, “Fora da política não há salvação”, é precisamente esta frase que abre uma conversa onde se fala sobre desafios e outras questões complexas relacionadas com a política, a antipolítica, e, acima de tudo, com a democracia e suas instituições. O académico brasileiro, que fez parte do painel “Democracia e Liberdade Religiosa”, faz também um resumo da sua intervenção, que se centrou na forma como o populismo autoritário tem incorporado o discurso religioso, Deus e o Diabo, para seus próprios fins políticos.

Por que “Fora da política não há salvação”?

Não há salvação porque a política é inescapável. Vivemos coletivamente, em sociedades que precisam de ser governadas, e se a gente quer viver nessas sociedades com o mínimo de possibilidade de diálogo, de encontrar soluções, mesmo que às vezes sejam soluções que não agradem a todos, é por meio da política. Então, certas ondas de negação da política, de pessoas que se apresentam, não como políticos, mas como alguma outra coisa, não são uma solução para os problemas. No fim das contas, ou essas pessoas farão política ou farão mal, porque essa negação não permite que os problemas sejam resolvidos. É um embuste, uma forma de enganar a cidadania quando alguém tenta se apresentar como não político ou tenta negar a política como a forma de solução de problemas coletivos. É por isso que, parafraseando a frase medieval da igreja, que dizia que fora da igreja não há salvação, fora da política não há salvação.

Quando falamos de democracia, quais considera serem hoje as grandes ameaças, para além da antipolítica?

Eu acho que a antipolítica está inscrita em todo um cenário que, inclusive, leva à emergência dos populismos autoritários que temos visto. Embora considere quase uma redundância falar em populismo autoritário, na medida em que se trata de um estilo de fazer política baseado na ideia de que alguns indivíduos são os únicos habilitados para representar o povo, são portadores dos verdadeiros valores, da verdadeira cidadania e nacionalidade ou patriotismo. Isso acaba por tornar o jogo político em um jogo que é necessariamente excludente, em que a democracia é para alguns, para os homogéneos, de um certo ponto de vista, excluindo os demais. Então, entendo que a antipolítica desempenha um papel nesse cenário e o populismo emerge como uma grande ameaça. Essa ideia de que é possível fazer democracia sem que se tenha instrumentos de controle, de contrapeso à forma como se governa, de como se utiliza o poder, é a grande ameaça que temos visto se tornar realidade em uma série de países ao redor do mundo, em todos os continentes. O populismo autoritário não é privilégio de um ou de outro continente, ele tem-se espalhado por todos eles.

Este crescimento é culpa do quê ou de quem?

Creio que esse crescimento é, em parte, culpa da forma como a política democrática vem funcionando, na medida em que as pessoas não se enxergam efetivamente representadas nos governos, nos congressos, nos parlamentos. Se essa política é feita de costas para a sociedade, como um clube de parceiros que tem interesses próprios que não têm a ver com a função desempenhada, que é justamente essa função de representação que permitiria não só bem governar, mas também expressar as expectativas que a cidadania tem [não cumpre a sua missão]. Aqueles que se apresentam como negadores do sistema são frequentemente percebidos como uma alternativa atraente, capaz de oferecer uma sensação de verdadeira representação, mesmo que em sacrifício de bons governos e boas políticas públicas. Um certo discurso, baseado numa lógica identitária, de crenças, de valores, acaba-se sobrepondo à escolha sobre boas políticas de governo e isso abre espaço para os aventureiros, os que negam a política e que, consequentemente, ao negar a política, negam a própria democracia.

E que culpa é que acha que a imprensa tem nisto, nomeadamente, ao transformar anedotas em notícias?

Tem aquela frase famosa que diz que quando um cachorro morde uma pessoa não é notícia, mas quando a pessoa morde um cachorro, é. Quando se cobre a política dessa perspetiva, de que todo dia tem alguém mordendo um cachorro, a política começa a ser percebida como um espaço bizarro. E realmente seria se a coisa funcionasse assim. Claro que a política tem os seus defeitos, mas me parece que eles são muito mais ressaltados do que os elementos positivos que acontecem no dia-a-dia da política. E, muitas vezes, há certos processos que parecem saneadores, de combate à corrupção, que não respeitam os procedimentos legais devidos, os direitos, não respeitam sequer os princípios daqueles que agem para sanear, e que também corrompem o sistema. A imprensa muitas vezes se entusiasma com esse tipo de ação. Tivemos no Brasil a operação Lava Jato, que me parece ser um caso desses. Anos antes na Itália, houve a Operação Mãos Limpas. Vimos agora um governo caindo em Portugal por conta do Ministério Público ter ido atrás de um homónimo do primeiro-ministro, não era ele, e isso ter produzido uma onda na imprensa de escandalização. Os resultados são, geralmente, negativos. No Brasil, o governo autoritário chegou ao poder, com a ajuda dos juízes que operaram a Operação Lava Jato e que, inclusive, foram integrar o governo. Vimos na Itália a emergência do populismo com Berlusconi. E vemos agora em Portugal um sistema que se fragmentou e tem dificuldade de se formar um governo. Você não sabe quanto tempo vai durar. Ou seja, é uma situação que produz geralmente resultados muito piores do que aqueles que se via antes e muitas vezes, quando a imprensa não tem o devido cuidado, não separa o joio do trigo, e tenta normalizar não só certas acções, mas certas figuras do cenário político, não os chamando pelo devido nome, corre o risco de realmente contribuir para esse tipo de processo.

Às vezes, a própria democracia autossabota-se? Por exemplo, o código eleitoral de Cabo Verde, com a mais democrática das intenções, tem um item que obriga a dar voz a todos os candidatos, mesmo os que têm ideias algo anticonstitucionais. Até onde deve ir a democracia para não colapsar?

Aqueles que usam a democracia para acabar com a democracia, não é? É muito difícil, num primeiro momento, restringir certos discursos de antemão. Censura prévia. A não ser que se vá responsabilizando aqueles que proferem discursos de ódio, discursos que solapam o funcionamento das instituições, colocando em xeque o seu bom funcionamento, disseminando teorias sabidamente falsas, e que servem para minar a democracia. Eu acho que temos que ter sistemas que criem proteções contra isso. É o mesmo tipo de debate que vemos na discussão sobre regulamentação das redes sociais, que também dão espaço para discursos de ódio, para disseminação de falsidades, de negacionismo científico. Na realidade, se a gente não tem algum tipo de instrumento para limitar esse tipo de ação, não é só a liberdade de expressão que está em jogo e a gente sabe que não é. Ninguém grita ‘fogo’ num teatro cheio como liberdade de expressão – e o que essas práticas fazem é um pouco isso: gritar ‘fogo’ no teatro cheio. Claro que isso vai terminar em tragédia. Eu acho é preciso ter mecanismos, inclusive no plano eleitoral, para evitar isso. Punindo, por exemplo, aqueles que, sabidamente, disseminam falsidades que vão colocar em risco o bom funcionamento da democracia. Vou dar um exemplo: tivemos, no Brasil, recentemente, a perda de mandato de um deputado que, nas vésperas da eleição, utilizou as suas redes sociais para disseminar uma teoria da conspiração sobre fraude nas urnas, que era falsa, e ele sabia que era falsa. Resultado, foi julgado pelo Tribunal Superior Eleitoral e perdeu o seu mandato. Isso funciona de maneira exemplar, outros pensarão duas vezes antes de fazer isso. Acho que é o aprendizado, inclusive através dos próprios erros, que as democracias vão tendo, é que permite um aprimoramento, uma melhoria do processo.

Falamos de democracia e eleições, mas muitas vezes o poder está nas mãos de tecnocratas não eleitos, principalmente nas instituições supranacionais. A democracia sofre com isto?

Eu acho que sofre, porque quem são esses? As pessoas não sabem sequer quem são. E aí, de novo, é um equilíbrio difícil. Nenhuma dessas soluções é fácil. É claro que você tem problemas técnicos, esse problema que eu mencionava do negacionismo científico passa por aí, mas tecnocratas, pelo seu saber técnico, não são necessariamente bons representantes da sociedade. Os bons representantes da sociedade são aqueles em que ela consegue ver bons representantes, em que ela se revê nessas pessoas. Às vezes comete erros, evidentemente, escolhendo aqueles que vão solapar o próprio funcionamento da democracia, mas o que eu entendo que serve como solução é democratizar essas instâncias. Nas instâncias supranacionais, é mais difícil, e seria interessante que, além de ter tecnocratas, você tivesse políticos ali. Em alguns casos, você pode ter mecanismos eleitorais para isso. O Parlamento Europeu me parece um exemplo bem-sucedido a esse nível. Em outro caso, você pode ter a indicação para assento nesses lugares de figuras que têm representatividade popular, que já receberam voto popular, que são conhecidas do público, porque a sua voz nessas instâncias tem um peso muito diferente de um tecnocrata que ninguém sabe quem é. E mais, a sua sensibilidade, pela experiência que tiveram, também é de um tipo diferente daquela do tecnocrata. Problemas políticos não se resolvem com soluções técnicas. Requerem conhecimento técnico para certos casos, para certas dimensões dos problemas públicos, mas, se não tiver o savoir-faire, se não tiver o conhecimento de como se faz política, a tendência é o desastre. E tecnocratas, por definição, não vão ter esse conhecimento. Podem até se tornar políticos algum dia, mas não são todos que são capazes de fazer isso.

Falando da parte mais económica. Na gestão da coisa pública, designadamente nas privatizações, onde deve acabar o segredo do negócio e começar a accountability?

É difícil. Quando se fala em privatização de serviços públicos, a gente tem de ter necessariamente mecanismos importantes de regulação e de fiscalização, porque não é um negócio qualquer. É o ónus do empresário que entra num negócio desse tipo saber que ele não está num negócio qualquer. Não abriu uma lojinha e está vendendo os seus produtos. Ele está, na realidade, prestando um serviço à sociedade, é um interesse colectivo, e consequentemente, vai ter de ter muito mais transparência. Não dá para ter segredo do negócio em situações dessa natureza. O que você tem de ter é exactamente o oposto. Ou seja, eu entendo que a regulação deve passar sobretudo por ter mais transparência, ter fiscalização e ter uma accountability que esteja voltada a assegurar que o interesse público sempre prevaleça sobre o interesse privado do concessionário ou daquele que adquiriu o negócio privatizado. E, para isso, os órgãos de regulação em particular têm que ser muito fortes, têm que ter autoridade e, mais, têm que agir, o que também não é fácil. De novo, a gente está diante de um problema difícil porque é comum que os próprios órgãos regulatórios, pela sua natureza, com gente que conhece o sector, tendem a ser liderados por pessoas que ontem ou amanhã estarão no sector privado que precisam de regular: a chamada porta giratória. Consequentemente, essas pessoas podem se inibir. Então, é preciso também pensar em instrumentos mais efectivos para que haja uma real independência desses órgãos regulatórios. Ou evitando a porta giratória, criando quarentenas, ou criando uma burocracia de Estado que seja realmente especializada naquilo e que fique naquele órgão, conhecendo o sector e que, consequentemente, se distancie dos interesses privados que precisa regular. E isso, também pela transparência. Quando os processos de fiscalização e de regulação são mais transparentes, o olhar do público tende a produzir um efeito mais positivo no funcionamento desses organismos.

Na questão do check and balance, do equilíbrio dos poderes, sabemos que as eleições vão avaliar, mas não são suficientes. Além dos reguladores de que falou, que outros mecanismos são fundamentais para fazer fiscalização?

Eu acho que, em parte, a própria actuação da oposição. Geralmente, a oposição, em qualquer democracia, qualquer que seja ela, vai apontar o dedo ao governo como o principal responsável pelo eventual insucesso ou mau funcionamento, pela má prestação dos serviços públicos. Ao chamar atenção, faz com que o governo precise de se mover porque o custo político que se vai repercutir depois na eleição, é um custo político significativo. Há um risco de não se reeleger, há um risco de perder representantes, seja no parlamento, seja em governos locais. Então, eu acho que a dinâmica oposição-governo é fundamental. A mecânica da oposição, de poder fazer uma oposição vigorosa – não uma oposição que sabota o governo, mas uma oposição que cobra ao governo de maneira efetiva –, é um check and balance fundamental. Acho que talvez seja o principal porque é o que mais claramente tem reflexo no processo eleitoral. Aí, você combina o que a gente pode chamar de uma democracia horizontal, essa dos checks and balances, com uma vertical, que é a que faz com que as pessoas escolham bons ou maus governos. Entendo que essa dinâmica é um complemento importante desses órgãos burocráticos, tecnocráticos de regulação para fazer com que essas coisas funcionem.

E o Ministério Público? Em última instância do check and balance...

Também. É preciso ver quais são as atribuições do Ministério Público. Não é só actuar em casos de corrupção, o que evidentemente também é um papel seu, mas muitas vezes actuar também na cobrança de bom serviço. O Ministério Público actua também nessa esfera civil, não apenas na esfera criminal. Tem a capacidade de demandar que os direitos daqueles que são os tutelados pelo MP, ou seja, a cidadania, sejam efectivamente respeitados pelos prestadores de serviço. E o MP, sendo um ente independente, tem que agir também em relação aos governos – e de novo insisto, não só na esfera criminal, mas também nessa esfera civil –, no sentido de assegurar que contratos sejam cumpridos. O principal contrato, evidentemente, é o contrato democrático, mas há um segundo contrato, que é esse, que os concessionários, ou, enfim, aqueles que são os responsáveis pelos negócios privatizados têm que respeitar, e que têm de ser, de novo, públicos e transparentes. O próprio processo de fiscalização também tem de ser transparente, senão é um contrato que ninguém conhece, que está escrito em uma gaveta, que é gigantesco e que as pessoas evidentemente não vão ler. Mas, elas têm de entender, pelo menos, qual é a dinâmica que está operando na exigência do cumprimento desse contrato. Então acho que o MP, além, das agências de regulação, é um órgão fundamental para isso, claro, em interação com o poder Judiciário, porque senão o Ministério Público não faz nada.

Nesta conferência, participou no painel A Liberdade Religiosa. Qual o ângulo da sua intervenção?

Chamar a atenção para como é que esse populismo autoritário tem incorporado o discurso religioso. Como cientista político que sou, gosto de pegar em casos empíricos. Venho do Brasil, então vou usar o caso brasileiro como exemplo, Bolsonaro, antes de ser eleito, durante o processo eleitoral, durante o governo e mesmo depois. Ele fez essa utilização, não só de um discurso religioso, mas uma actuação religiosa, até mesmo no sentido de capturar instituições de Estado, por meio de pertencimentos religiosos. O combate ao pluralismo, no sentido literal, demoniza os adversários, pois existe, segundo esse discurso religioso, um combate entre o bem e o mal. O bem somos nós, o mal são os nossos adversários, e isso é transplantado do campo religioso para o campo político e é de um perigo imenso para a democracia. Quem podia votar nos diabos? Ninguém. Então, se você tem os seus opositores descritos como verdadeiros demónios, como encarnações do mal, você elimina o pluralismo possível da democracia, e com isso a própria democracia.

Falando agora do seu canal no Youtube “Fora da Política não há Salvação”. Como e por quê surgiu este canal?

Eu comecei esse canal durante a pandemia, tal como muita gente começou várias coisas, aproveitando os mecanismos de tecnologia remota para produzir aqui alguns vídeos e áudios. Eu já pensava nisso, e ali se criou a oportunidade. Mas, criei sobretudo para dar resposta ao que eu percebia ser naquele momento essa antipolítica que avançava muito fortemente, em particular no caso brasileiro.

Bolsonaro antivacina?

Exacto, antivacina e antipolítica. Começa com a Operação Lava Jato, que é também antipolítica, que inclusive acusava os políticos por fazerem negociações parlamentares. Veja a loucura a que se chega, quando se criminaliza a política dessa forma, e se cria espaço para um grupo extremista chegar ao poder, justamente por essa negação da política. Então, a grande motivação do canal era criar um espaço para discutir a política de uma perspetiva democrática e de afirmação da política como um espaço fundamental da atividade humana, e como uma coisa inescapável para a gente assegurar liberdade, democracia, e bem-estar social.

E como funciona? Sei que costuma ter convidados.

Geralmente eu convido. Fui percebendo que convidar pessoas era sempre muito mais interessante. Primeiro, porque eu não domino todos os temas, e isso me permitia, a cada semana, ter alguém que domina aqueles temas muito melhor do que eu. Podia aproveitar um assunto na ordem do dia, da conjuntura, para, a partir do conhecimento académico ou especializado, discutir aquele tema quente, à luz desse conhecimento. Chamo cientistas políticos, juristas, sociólogos, economistas, linguistas, antropólogos, até psicólogos. Depende muito do tema que precisa ser abordado, mas é sempre alguém que ou é académico, ou quando não é estritamente um académico, é um grande especialista naquele tema. Por exemplo, uma vez fui discutir a questão indígena com um colega que é antropólogo, até tem uma formação académica, mas que não está na academia. Ele atua na Fundação Nacional do Índio, no Brasil. É um servidor público dessa área e um profundo conhecedor da questão indígena. É um exemplo do que seria um especialista, que pode discutir esse tema, com um grande conhecimento de causa, mesmo que não seja um conhecimento, estritamente, académico.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1167 de 10 de Abril de 2024. 

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Autoria:Sara Almeida,14 abr 2024 8:33

Editado porJorge Montezinho  em  9 mai 2024 10:20

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