Temos de conceber sistemas como se a pior pessoa possível pudesse chegar ao Poder

PorSara Almeida,19 mai 2024 7:28

Brian Klaas – Cientista político e autor do livro Corruptíveis
Brian Klaas – Cientista político e autor do livro Corruptíveis

Brian Klaas, professor de Política Global no University College London, colaborador da revista The Atlantic e autor do conhecido livro Corruptíveis esteve em Cabo Verde para participar no Leadership Summit, que decorreu na cidade da Praia de 7 a 10 de Maio. Em conversa com o Expresso das Ilhas, o orador falou da relação entre poder e corrupção, da influência da sorte em processos como a própria escolha eleitoral, e sublinhou a importância de sistemas institucionais robustos para evitar abusos e minorar o papel do acaso. Destacando Cabo Verde como um bom exemplo e um sinal de “esperança”, Klaas abordou ainda outros desafios enfrentados pela democracia em todo o mundo, onde populistas, que prometem respostas simples (mas falaciosas) sobre os complexos problemas mundiais têm vindo a conquistar o eleitorado. Contudo, o cientista político confia na resiliência, a longo prazo, da democracia. Afinal, está provado que é isso que as pessoas na realidade querem…

Começando por este evento, o II Leadership Summit Cabo Verde. A sua intervenção tem como mote: “porque o Poder atrai os corruptíveis – e como corrigir isso”. No seu livro Corruptíveis, o subtítulo, na verdade, questiona se o Poder corrompe ou se atrai os corruptos. Qual é a resposta? É que atrai?

A resposta é ambas. Há evidências de que o Poder tende a tornar as pessoas piores. Tende a subir-lhes à cabeça, altera-lhes a química cerebral, altera-lhes a psicologia. Muito poucas pessoas têm a experiência de ter toda a gente, constantemente, a bater palmas ou a rir-se de todas as piadas. Isso sobe-nos à cabeça. Portanto, observa-se que quanto mais tempo uma pessoa permanece no poder, pior se comporta; passa a acreditar que pode escapar impune e que tem permissão para comportamentos questionáveis. No entanto, penso que um problema muito maior é o facto de o Poder atrair o tipo errado de pessoas. Quando reflectimos sobre isto, percebemos que muitas pessoas no mundo não têm interesse no Poder e muitas vezes são essas as pessoas que provavelmente seriam menos corruptas, menos abusivas. As pessoas que almejam o Poder, que acordam todas as manhãs a pensar no Poder, têm mais probabilidades de o obter e, provavelmente, também são os piores para o exercer. Este é um dos grandes problemas que todos os países do mundo enfrentam e a minha resposta, para esse problema, é: temos de conceber os sistemas como se a pior pessoa possível pudesse chegar ao Poder. Temos de ter uma espécie de desenho institucional ou um controlo para, se a pessoa errada acabar no poder, a pararmos. Entretanto, devo dizer que ser orador aqui, em Cabo Verde, é uma coisa realmente refrescante. Estudei política africana quando estava na pós-graduação na Universidade de Oxford e, constantemente, Cabo Verde era apontado como uma das histórias de sucesso.

O facto de não termos muitos recursos naturais também, de certa forma, ajuda a manter-nos mais livres da corrupção?

Quando se trata de abuso de poder, há sempre uma “cenoura” e um “pau” em que se pensa: recompensas e consequências. Os políticos ou as pessoas poderosas ponderam isso. A “cenoura” é o quanto se pode roubar ou o quanto se pode facilmente obter em termos de Poder e se pode abusar das pessoas. O “pau” são as potenciais consequências de o fazer. Um país como Cabo Verde tem a vantagem de não ser fácil, por exemplo, chegar e simplesmente roubar todo o dinheiro do petróleo. No Norte de África, e outros locais, é frequente haver regimes corruptos em que se consegue controlar o dinheiro do petróleo e criam-se bilionários, pois é uma coisa muito fácil de fazer. Mas, dito isto, penso que o país também tem de assumir algum crédito pelo seu próprio sucesso. Há muitos países pequenos que são extremamente corruptos. Há muitos países que não têm recursos naturais que são extremamente corruptos. Aliás, normalmente, uma das coisas que acompanha a corrupção e o abuso de poder é o facto de um país não ser super rico. Muito frequentemente, os países que estão mais abaixo na classificação internacional em termos de riqueza económica são os que estão mais acima na classificação internacional em termos de corrupção. Ora, isso aqui não é verdade. Portanto, embora se reconheça que existem desafios, não é perfeito, há problemas e que há coisas que podem sempre ser feitas melhor, é refrescante falar para uma audiência onde se vêem progressos. Isso não acontece em todo o lado, pelo contrário. Mesmo no Reino Unido, onde vivo, as coisas estão a ir pelo caminho errado. Nos Estados Unidos, de onde sou, as coisas estão, igualmente, a ir na direcção errada. Por isso, olhamos para uma história de sucesso como a de Cabo Verde e pensamos para nós próprios: esta é uma história de esperança.

Mas, na sua análise, a que se deve essa história de sucesso? É porque o país soube desenhar um bom sistema?

É uma combinação de factores. Uma parte é o sistema: o Estado de direito, a democracia, a liberdade de imprensa que estão muito bem classificados nos rankings. Portanto, temos uma cultura institucional que pode dissuadir as pessoas de serem corruptas e temos agora, após décadas de independência, um regime relativamente democrático, etc. Temos uma cultura que espera isso, o que é algo muito, muito importante e difícil de ter. Além disso, a sorte também desempenha um papel importante. Uma das coisas que costumo destacar frequentemente é que os países têm os seus líderes e estes, por vezes, fazem o que é certo e, outras vezes, não. Quando não o fazem, isso pode destruir um país e quando fazem o certo, isso pode criar uma trajectória de expectativas positivas, democracia, direitos humanos, etc. Portanto, é uma mistura. Então, há a cultura institucional, há as instituições e por aí fora e a forma de passar de uma posição bastante elevada nos rankings para uma posição próxima do topo é consolidar estes aspectos e garantir também que existem planos em vigor para o caso de a sorte se esgotar. Veja-se o que está a acontecer nos EUA: temos um sistema que era muito eficaz quando havia pessoas que se preocupavam com a democracia, mas com Trump temos alguém que não se preocupa e está a quebrar o sistema e a mostrar todas as fraquezas deste. Por isso, o que aconselho sempre aos países que estão a ir bem é que planeiem, agora, o momento em que pode não correr bem. Se o vosso sistema for robusto, sobreviverão a essa experiência, se não for assim, se esperarmos que toda a gente se comporte sempre bem, o sistema pode desmoronar-se. É sempre este o tipo de mensagem que tento transmitir em relação aos sistemas, mesmo no que toca a histórias de sucesso.

Mas o que pode fazer para fortalecer esse sistema? Que mecanismos podemos implementar?

Na minha intervenção [no Leadership Summit] isso é abordado. Uma das “soluções” é ter em conta que as consequências são muito importantes. Por isso, quando há casos de corrupção, o castigo é importante, e há evidencias que confirmam que a dissuasão é muito eficaz com os políticos. Uma segunda coisa, sobre a qual não se pensa com tanta frequência, é a supervisão aleatória. Assim, um dos exemplos que vou dar é como se pode testar aleatoriamente pessoas em posições de poder, tentando criar, por exemplo, uma empresa falsa e ver se aceitam um suborno. Essa supervisão aleatória gera dividendos em todo o espectro político porque todos os políticos temem a possibilidade de estarem a ser tramados, e os jornalistas podem desempenhar um papel neste processo. Isso aconteceu no Reino Unido, onde os meios de comunicação social tentaram levar políticos a aceitar subornos, fazendo-se passar por uma empresa e...

É um truque, uma armadilha?

Sim, é, mas, apesar disso, acho que é totalmente legítimo. A ideia é enganá-los, testar se aceitam o dinheiro e, se aceitarem, expô-los. Faz-se isso uma vez e, a partir daí, todos os políticos ficam preocupados sempre que lhes é oferecido dinheiro, temendo estar a ser enganados. O truque paga dividendos para além da única vez que se faz, penso que este é o tipo de coisas em que a supervisão pode ser muito útil. A transparência na imprensa, o jornalismo de investigação, é muito importante porque, basicamente, o que se pretende é criar nos políticos a sensação de que, quando abusam do poder ou quando roubam dinheiro, são apanhados e haverá consequências. Quando olhamos para países como os Estados Unidos, onde Donald Trump tem escapado incólume durante tanto tempo que faz sentido que se comporte da forma que se comporta. Agora está a enfrentar julgamentos, etc., mas a forma como esses julgamentos decorrerem vai determinar como a próxima geração de políticos americanos se vai comportar. Portanto, há uma combinação de todas estas coisas. Entretanto, na minha intervenção, a terceira e última coisa de que vou falar, ou o último conselho, é a selecção aleatória de cidadãos para darem o seu contributo para as propostas do governo. Penso que as pessoas que entram na política se distinguem do restante da população. Se seleccionarmos aleatoriamente indivíduos da população e os consultarmos sobre questões políticas, de uma maneira mais envolvente do que simples sondagens, envolvendo-os em assembleias de cidadãos ou outro órgão qualquer, podemos fazer política que inova. Podemos introduzir inovações políticas que talvez nunca tenham passado pela mente dos políticos, que vivem um determinado estilo de vida. Essa é a terceira recomendação que gostaria de enfatizar.

A sua intervenção vem essencialmente na linha do seu livro Corruptíveis. Mais recentemente lançou Fluke: Chance, Chaos, and Why Everything We Do Matters, em que coloca a tónica na sorte ou acaso. Há um provérbio que diz “Sorte que Deus te dê, que o saber nada te vale”, o que significa que podes ter todas as ferramentas, mas se não tiveres sorte, não terás sucesso. Portanto, voltando um pouco atrás na nossa conversa, até que ponto precisamos da sorte?

A forma como eu descreveria o que aconteceu aqui em Cabo Verde é que o período inicial da pós-independência de um país é um período em que a sorte desempenha um papel enorme. Muitos países que se tornam independentes, têm o seu primeiro líder e acabam por viver uma ditadura que dura 50 anos. Em toda a África Subsariana, há estas histórias, tipo: ‘é uma colónia francesa, deixa de ser e depois torna-se uma ditadura até 2024’. Portanto, a sorte desempenha, sim, um papel importante nas fases iniciais. Mas, o que penso que está a acontecer agora é que existem instituições, inclusive a imprensa, que, quando há retrocessos, podem corrigi-los, algo que difere totalmente de uma ditadura e realça o poder da democracia. Percebemos que existem mecanismos para corrigir erros, o que reduz a influência da sorte. Pois se não os tivermos, ficamos completamente dependentes do facto de termos o político certo ou o político errado. Então, penso que a sorte teve um papel importante no início, mas agora queremos criar sistemas que reduzam a nossa dependência da sorte ou do acaso. Quando visito lugares como Cabo Verde, como referi, sinto-me muito optimista quanto à existência de regras. Aqui as regras são seguidas, há consequências se não forem, existe o Estado, vê-se a polícia, vemos instituições que estão a fazer o seu trabalho….

No pós-independência tivemos 15 anos de regime de partido único, a democracia só vem nos anos 90.

Sim. Como sempre friso, todos os países são um trabalho em curso que nunca está terminado. Todos os países, todas as democracias. A Noruega tem sempre uma classificação muito elevada nos rankings, mas também a Noruega pode ser melhor. Temos, em Cabo Verde, uma trajectória que não foi perfeita, que não é perfeita agora, nem será perfeita daqui a 10 anos, mas há um esforço para avançar em direcção a algo que seja melhor para as pessoas. Na minha opinião, o foco dos políticos cabo-verdianos deveria ser reforçar ainda mais o sistema para que, se surgirem maus políticos, possa ser resiliente. Além disso, o país deve concentrar-se no desenvolvimento económico, porque, a dada altura, é preciso prosperar economicamente. Portanto, sugeriria como prioridades: reforçar ainda mais as instituições e concentrar-se no desenvolvimento económico. Mas penso que, provavelmente, já é o que está a ser feito.

Saindo de Cabo Verde, para o Mundo, até porque estamos todos interligados. Como é que vê os retrocessos na democracia que parecem estar a ocorrer em vários pontos do globo? Mesmo em Portugal, que é o país mais chegado, vimos a ascensão da extrema-direita.

Globalmente a história é pior. Tem havido aquilo a que os cientistas políticos chamam de democratic backsliding [retrocessos democráticos] em que o mundo se tem tornado mais autoritário todos os anos, desde há quase duas décadas. É deprimente. Penso que as pessoas, em todo o mundo, querem democracia, querem ter um governo que responda às suas necessidades. Por isso, a longo prazo, continuo muito optimista em relação ao destino da democracia. A curto prazo, o papel da China, o papel da Rússia, o papel dos líderes autoritários em todo o mundo é muito negativo. Espero que as pessoas que vivem em democracias, em países como os Estados Unidos, comecem a perceber a sua importância. Muitas pessoas no Ocidente tomam a democracia como garantida e em muitos casos recorrem a respostas simplistas Essas respostas muitas vezes são a ditadura ou o autoritarismo, de alguma forma. São más respostas, não vão ajudar.

Será que é porque as pessoas preferem pretensos heróis a políticos?

Sim, acho que o que acontece com o populismo é que temos uma pessoa que olha para os problemas, realmente complicados, do mundo e promete que tudo de mau desaparecerá se votarem nele. No entanto, isso nunca se concretiza. Esses líderes falham sempre, nunca cumprem o prometido. Ainda assim, é uma mensagem política extremamente persuasiva, pois oferece uma resposta simples para um mundo complexo. E o mundo está realmente perigoso neste momento. Há guerras terríveis a acontecer, no Médio Oriente, na Ucrânia, etc. Há riscos em Taiwan e uma série de outras situações muito perigosas em curso. Este é um momento em que as soluções simples são terríveis. As soluções têm de ser complicadas porque o mundo é complicado. O problema é que, numa eleição, se dermos uma resposta complicada e o nosso adversário der uma resposta simples, muitas pessoas votam na resposta simples. Portanto, esta é a grande luta da democracia e é aqui que a imprensa desempenha o papel vital de explicar às pessoas o que se está a passar e porque é que estas ideias simplistas são perigosas.

Terminando com uma curiosidade… Para o seu livro Corruptíveis, entrevistou cerca 500 líderes, entre os quais pessoas que cometeram diferentes atrocidades. Há algo que aqueles que fizeram coisas muito erradas tenham em comum?

A maioria deles é muito charmosa. Uma das habilidades notáveis de alguns dos piores políticos, é que eles são muito bons em fazer as pessoas gostarem deles. Então, nem sempre podemos confiar nos nossos próprios julgamentos sobre quem merece o poder, porque muitas vezes as pessoas que são mais habilidosas em alcançá-lo são exactamente aquelas que não deveriam tê-lo, são o tipo errado de pessoas para o manter. No entanto, não há uma única característica definidora. Além deste tipo de charme que têm e da sua simpatia, não há uma única marca que eu possa identificar em alguém e dizer que vai ser ruim. Alguns deles são pessoas horríveis, enquanto outros são pessoas que estão a tentar, mas estão tomando más decisões. No final, para a pessoa comum, não há diferença, porque más decisões são más decisões ruins. O melhor tipo de conselho que posso dar, como já referi, é imaginar que a pessoa mais ruim está prestes a chegar ao Poder, e projectar o sistema com essa pessoa em mente. Essa é a maneira de o evitar.

E a História pode ensinar-nos.

Sim. Exactamente.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.

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Autoria:Sara Almeida,19 mai 2024 7:28

Editado porSara Almeida  em  20 mai 2024 12:07

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