Em conversa com a médica hematologista e directora do Banco de Sangue do Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), Linete Fernandes, o Expresso das Ilhas foi entender os sintomas desta doença e o nivel de preparação do país para combater esta doença genética e hereditária causada por anormalidade de hemoglobina dos glóbulos vermelhos.
Linete Fernandes revela que a doença falciforme é caracterizada pela presença da hemoglobina S, também conhecida como hemoglobina da doença falciforme. Esta é uma alteração na hemoglobina que causa a deformação dos glóbulos vermelhos, tornando-os em forma de foice ou meia-lua, o que dificulta a sua passagem pelos vasos sanguíneos. Isso pode resultar em obstruções e crises de dor intensa, além de anemia crónica e outras complicações graves, como a síndrome torácica aguda.
“Então, a fisiopatologia-base é que esses glóbulos vermelhos que têm a forma de meia-lua fazem com que fique difícil atravessar os vasos sanguíneos e então fazem micro-tromboses nas pequenas musculaturas do organismo todo. Uma das principais manifestações da destruição destes glóbulos vermelhos é a anemia que pode afectar todos os órgãos do corpo, incluindo os olhos e o coração. Quando ocorre trombose nos ossos, pode causar dor óssea intensa, também pode ser no pulmão, que dá o que chamamos síndrome torácica aguda”.
A directora do Banco de Sangue do HUAN ressaltou que a doença falciforme pode causar vários tipos de crises, sendo a mais comum a crise dolorosa, que envolve dor óssea. “Existem crises hemolíticas, onde a hemoglobina cai significativamente, crises de sequestro esplénico, onde o sangue fica retido no fundo, e crise aso-oclusiva, que podem levar a Acidente Vascular Cerebral (AVC) em crianças”, esclareceu Linete Fernandes. “Uma crise principal é uma crise dolorosa.”
Diagnóstico e prevalência
Relativamente à prevalência da doença em Cabo Verde, a directora do Banco do Sangue do HUAN revelou a falta de dados concretos.
“Nós não temos um estudo de prevalência da doença em Cabo Verde. Desde 2019 fazemos pesquisas sobre essas células falciformes nos doadores de sangue. É importante ressaltar que esses doadores não têm a doença falciforme: eles são portadores da hemoglobina S, característica da doença. A prevalência de portadores da hemoglobina S entre os doadores é de aproximadamente 4%. No entanto, não há um estudo abrangente sobre a prevalência da doença falciforme em todo o país. O diagnóstico precoce da doença falciforme é essencial e é realizado por meio da triagem neonatal, conhecido como ‘teste do pezinho’ em outras regiões. Infelizmente, esse teste não é realizado logo após o nascimento aqui em Cabo Verde”.
Segundo a OMS, os distúrbios da hemoglobina são herdados dos pais da mesma forma que o tipo sanguíneo, a cor e textura do cabelo, a cor dos olhos e outras características físicas. Assim, a doença falciforme pode ocorrer apenas quando ambos os pais são portadores de genes característicos da doença específica. Uma criança que herda dois genes com as mesmas características – um de cada pai – nascerá com a doença. No entanto, uma criança de dois portadores tem apenas 25% de hipótese de receber dois genes característicos e desenvolver a doença, e 50% de hipótese de ser portadora. A maioria dos portadores leva uma vida completamente normal e saudável.
Tratamentos disponíveis
Linete Fernandes explica que quando um paciente apresenta sintomas, são realizados exames para diagnosticar a doença falciforme. Quanto aos tratamentos disponíveis, a médica aponta que existe um tratamento médico, que é o transplante da medula óssea, mas é indicado apenas para casos específicos devido às suas complicações potenciais.
“Relativamente aos tratamentos disponíveis, existe um tratamento médico conhecido como transplante de medula óssea. Este tratamento pode curar potencialmente a doença falciforme, modificando a medula óssea do paciente, no entanto, devido aos riscos e às complicações envolvidas, não é indicado para todos os pacientes. Um tratamento medicamentoso significativo é a hidroxiureia, considerado revolucionário no manejo da doença falciforme e disponível aqui em Cabo Verde. Além disso, os pacientes recebem ácido fólico para auxiliar na produção de novos glóbulos vermelhos, e são realizados transfusões de sangue quando necessário para tratar complicações como lesões ósseas ou sindrómicas”.
Recomendações
Linete Fernandes faz ainda um apelo aos doentes para não abandonarem as consultas. “Quando passam muito tempo sem crise, tendem a abandonar o seguimento. É uma doença crónica que não tem cura e o objectivo do tratamento é ter menos crises e complicações. Uma maior sensibilidade por parte dos professores relativamente às crianças com a doença, permitindo-lhes mais flexibilidade para necessidades fisiológicas devido à sua condição.
Avanço científico
O grupo de pesquisadores cabo-verdianos BioAnalítica, composto por vários jovens, criou reagentes capazes de diagnosticar, de forma fácil e rápida, a anemia falciforme. Representado pelo pesquisador António Maximiano Fernandes, o grupo desenvolveu reagentes inovadores que prometem transformar a forma como a anemia falciforme é detectada. Estes reagentes de diagnóstico rápido são uma solução acessível e eficaz, especialmente para comunidades com acesso limitado a cuidados médicos, permitindo um diagnóstico mais rápido e preciso da anemia falciforme, o que pode melhorar significativamente a gestão e o tratamento da doença. António Maximiano Fernandes revela que uma das principais vantagem dos novos reagentes é sua capacidade de fornecer resultados rápidos e precisos. Essa rapidez é essencial para iniciar o tratamento precocemente, evitando complicações graves e melhorando a qualidade de vida dos pacientes.
“Os reagentes desenvolvidos pelo grupo de pesquisa BioAnalítica permitem respostas em muito menos tempo em comparação com o método-padrão adoptado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que requer 24 horas. Agora podemos ter os resultados quase que de imediato. Queremos garantir que todos os cabo-verdianos tenham acesso a estes testes a baixo custo, para evitar o aparecimento de novos casos não declarados”, afirmou.
Desafios
A ideia para o desenvolvimento dos reagentes surgiu em 2016. Iniciando a pesquisa, António Maximiano Fernandes conta que demoraram seis anos para atingir o objectivo.
“Foi o primeiro reagente inventado 70 anos após à invenção do cientista Linnus Pauling. Foram realizados milhares de testes. As universidades e alguns opositores começaram a impedir as experiências, daí resolvi criar o grupo de investigação independente, BioAnalítica. Foram dias difíceis sem nenhum apoio das entidades competentes. Todos os bancos disseram ser inviável a ideia. Actualmente, no grupo de pesquisa, somos seis integrantes activos em Cabo Verde e o restante está espalhado por outros países, nomeadamente Canadá, Brasil, Angola, Moçambique, Nigéria e Etiópia”.
Este investigador informa que actualmente o teste está na fase experimental e à espera dos investidores. A pesquisa, segundo António Maximiano Fernandes, foi extremamente difícil, pois todos os membros iniciais desistiram e as universidades não apoiaram as ideias. Após a descoberta do reagente, surgiram vários outros investigadores em diferentes especialidades. Os trabalhos estão em processo de registo no Instituto de Gestão da Qualidade e da Propriedade Intelectual (IGQPI).
O grupo de pesquisadores BioAnalítica estima que, de acordo com os dados acumulados de mais de seis anos de estudos, só na Cidade da Praia, 11.000 indivíduos podem ter o gene que determina ou não o aparecimento da anemia falciforme. Isto baseando nos dados sobre a demografia da região. “Estimamos que em cada 50 crianças que nascem, aproximadamente, 3 nascerão com este gene”.
O grupo de pesquisa alerta que, apesar de a maioria dos portadores não apresentarem sintomas, recomenda-se que todos façam check-ups para verificar o seu status genético.
“Especialmente aqueles que planeiam ter filhos, para entender a probabilidade de transmitir o gene. A anemia falciforme é responsável por mais de 100.000 mortes anualmente, sendo mais prevalente em países africanos, onde mais de 70% dessas mortes ocorrem. As nossas investigações demonstraram que na ilha de Santiago, por cada 100 pessoas, 5 a 7 têm o gene que determina ou não o aparecimento da doença falciforme. É uma situação crítica que deve ser estudada. Esta doença é mal estudada e entendemos que alguns casos de mortes e complicações como AVC e Trombose podem estar ligadas a casos silenciosos”, defendeu.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), na região africana, a maioria das crianças com a forma mais grave da doença morre antes dos 5 anos, geralmente devido a uma infecção ou a uma grave perda de sangue. Em países como os Camarões, República do Congo, Gabão, Gana e Nigéria, a prevalência situa-se entre 20% e 30%, enquanto em algumas partes do Uganda chega aos 45%.
Foi oficialmente designado o dia 19 de Junho como o Dia Mundial de Conscientização da Doença Falciforme com o objectivo de aumentar o conhecimento e a compreensão do público sobre a doença e os desafios vivenciados pelos pacientes, seus familiares e cuidadores. Trata-se de uma doença genética, hereditária e caracterizada por alterações nas hemácias do sangue. A enfermidade não tem cura e pode provocar o comprometimento das principais funções do organismo, caso o portador não receba a assistência adequada. Entre as complicações da doença não tratada estão a anemia crónica, retardo do crescimento, AVC, inflamações e úlceras.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1177 de 19 de Junho de 2024.