A areia é um dos recursos naturais mais consumidos no mundo, essencial para a construção civil, fabricação de vidro e utilizada em diversas outras indústrias.
Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, o consumo global de areia atinge níveis alarmantes, com estimativas de que o mundo utiliza cerca de 50 bilhões de toneladas daquele recurso anualmente.
Este volume coloca a areia entre os recursos naturais mais extraídos, com a previsão do seu esgotamento para construção até 2050, segundo um estudo de 2022.
A demanda crescente, impulsionada pelo rápido desenvolvimento urbano e industrial, levanta preocupações sobre a sustentabilidade e os impactos ambientais associados à sua extracção descontrolada, já que a sua formação é um processo natural lento, que precisa de milhares de anos.
Em Cabo Verde, a areia é um recurso vital para a construção, essencial para a edificação de infraestruturas, residências e projectos de desenvolvimento. A crescente demanda por esse recurso natural acompanha a urbanização e o desenvolvimento turístico.
No entanto, a extracção de areia traz desafios ambientais como a degradação das praias e a erosão costeira. Além das empresas legalmente autorizadas, muitas pessoas dedicam-se informalmente a esta actividade, enfrentando riscos e condições de trabalho precárias.
Sem seguros e sem trabalho
Entre essas pessoas está Júlia Lopes de 46 anos, residente em Fundura, interior de Santiago.
“Trabalhei na extracção de inertes desde os meus 20 anos. Comecei a trabalhar com brita, depois na extracção de jorra e, por fim, na extração de areia. Sempre fomos eu e a minha irmã. Apanhávamos areia e depois vendíamos aos donos dos Galuchos”, conta.
Júlia e a irmã trabalhavam seis vezes por semana e recebiam no final de cada semana, quando enchiam os Galuchos que iam à procura de areia. Quando a natureza ajuda, lembra, conseguiam o dinheiro duas vezes na semana.
“Mas, na maioria das vezes, a cada semana, cada uma de nós ganhava seis mil escudos, ou seja, 12 mil escudos por cada Galucho que conseguíamos encher”, explica.
No entanto, no dia 21 de Junho de 2023, Júlia sofreu um grave acidente que mudou a sua vida.
“Fui extrair jorra e aquilo desabou. A minha sorte é que atingiu a minha perna e não a minha cabeça. Parti o osso da perna, tive de ser operada e inseriram-me uma placa. Eu sempre trabalhei na informalidade, por isso não tenho seguros e agora dependo de pensão de sobrevivência”, lamenta.
Após o acidente, Júlia e a irmã decidiram formalizar a sua actividade. “Resolvemos criar uma pequena empresa para que pudéssemos fazer descontos no INPS, porque sem seguros eu não consigo pagar alguns tratamentos da minha perna”.
“Mas já era tarde, porque com a empresa deixaria de receber a pensão. E para fechar a empresa, que neste momento não tem nenhum rendimento, tenho de pagar 10 mil escudos na Casa do Cidadão para receber de volta a pensão. Mas não tenho como fazer isso. Já há um ano que não trabalho porque o médico disse que já não posso carregar mais que 10 quilos. Estou obrigada a ficar em casa”, lamenta.
A vida de Júlia e da sua família mudou drasticamente. Antes, a mãe era a responsável pelo sustento dos quatro filhos, sendo três menores. Hoje, depende totalmente do filho mais velho.
“O mais velho extraia areia comigo e com a minha irmã, agora está a trabalhar numa padaria para poder pagar a escola privada e, assim, conseguir concluir o 12.º ano. Além da escola, ele tem de arcar com as despesas da casa porque o pai dos seus irmãos não ajuda com nada. Há dias que são mesmo difíceis, mas tento não desanimar”, narra.
Nos primeiros meses após sofrer o acidente, Júlia sempre contou com a solidariedade dos vizinhos que ajudavam com mil ou dois mil escudos. Um ano depois, as pessoas deixaram de ajudar e a mulher passa por dificuldades financeiras, mas também enfrenta problemas de saúde devido aos anos de trabalho pesado.
“Sinto dores na coluna e na cabeça. A cabeça é o que mais dói. Há mais de 20 anos que sinto essa dor, praticamente desde que comecei a extrair areia. A coluna às vezes dói tanto que acabo por parar ao chão”, descreve.
Impactos ambientais da extracção
A extracção de inertes tem impactos ambientais devastadores. Segundo o director da Acção Ambiental da Quercus Cabo Verde, Nemias Moniz, a extracção de enormes quantidades de inertes nas praias e ribeiras do país pode contribuir para o aumento da salinização dos recursos hídricos, principalmente do terreno.
“Nós também temos um avanço da água do mar relativamente à costa,” afirma.
Além dos problemas hídricos, Moniz menciona os impactos na agricultura e na saúde pública. “Podemos ter impacto na agricultura devido à perda do campo agrícola. Também temos o impacto visual e riscos de acidentes para as pessoas, causados pelos buracos deixados nas praias e ribeiras. A perda das praias é um problema muito preocupante e, em muitos casos, irreversível,” acrescenta.
Como exemplo de degradação ambiental provocada pela extracção, este responsável aponta o caso do Monte Vermelho, no Palmarejo, na Praia, e o Monte das Vacas, em Tarrafal de Santiago.
A Quercus Cabo Verde tem alertado sobre esses impactos através de programas de sensibilização, como o Minuto Verde, embora não tenha realizado um estudo científico consolidado.
“O que precisamos é de educação ambiental e ética e da criação de programas que incentivem as pessoas a protegerem as suas localidades,” considera.
Para mitigar os efeitos negativos da extracção de inertes, Moniz sugere medidas de recuperação ambiental e maior fiscalização.
“A recuperação das areias nas praias deve ser um processo natural e gradual. A protecção das areias nas ribeiras também é crucial para evitar acidentes e preservar a flora e fauna locais,” concluiu Moniz.
Novas leis e maior fiscalização
Para o presidente da Quercus Cabo Verde, Paulo Ferreira, são precisas novas leis e uma fiscalização mais rigorosa na extracção de inertes no país, realçando que as mudanças são essenciais para aumentar as receitas destinadas a questões ambientais e para garantir maior rigidez nas licenças de exploração, transporte e uso desses materiais nas construções.
“É preciso criar sinergias entre entidades públicas, extractores e comerciantes, assim como ONGs e a sociedade civil para mapear melhor as zonas permitidas para a exploração de inertes,” observa.
Ferreira cita problemas específicos, como o ocorrido no município de São Filipe, onde a falta de comunicação levou a falhas na gestão da apanha de areia.
“É preciso criar uma sinalização especial e adequada para as zonas autorizadas”, defende.
Além da gestão e sinalização, a restauração e requalificação das zonas de extracção são pontos críticos mencionados pelo presidente da Quercus Cabo Verde. “Muitas vezes, os turistas e visitantes passam e ficam curiosos do que se tenha passado nestas zonas», argumenta.
A segurança dos trabalhadores é outra preocupação central para Ferreira. “Há dias vimos que morreu um extractor em Chão Bom, Tarrafal de Santiago, por desabamento. Quantos trabalham nesta situação? Será que havia seguros e de que tipo para estes casos? Como ficam as famílias e, sobretudo, as crianças menores? Daí que deverá haver maior organização desta actividade de forma urgente, para proteger as vidas, a paisagem e as próprias empresas e os seus negócios”, sustenta.
Contributo positivo para economia, mas com efeito negativo a longo prazo
De acordo com o economista João Brito, a extracção de inertes tem contribuições significativas a curto prazo para a economia do país, impulsionando a actividade económica, criando empregos, gerando renda e contribuindo para o sector da construção.
“Nos últimos 10 anos, a média do peso da indústria extractiva no PIB tem sido de cerca de 0,3% e com tendência decrescente. O sector da construção também tem reduzido o seu peso no PIB, passando de 10% do PIB em 2009, para 4% do PIB em 2023”, aponta.
No entanto, Brito adverte sobre os possíveis efeitos adversos a longo prazo, especialmente relacionados com os impactos ambientais da exploração de inertes, como a poluição do ar e da água, destruição de ‘habitats’ e esgotamento de recursos. Nesse sentido, sublinha a importância de se considerar esses efeitos negativos ao tomar decisões sobre a extracção de inertes, buscando um equilíbrio entre os benefícios económicos imediatos e a sustentabilidade ambiental.
Quanto aos principais desafios enfrentados pelo sector, Brito salienta a escassez futura do recurso, o aumento dos custos de exploração e a necessidade de adopção de tecnologias mais inovadoras e sustentáveis.
Brito observa que a produção interna de inertes pode reduzir a necessidade de importações, o que contribui positivamente para a balança comercial e o PIB do país.
Por fim, destaca a importância de implementar práticas sustentáveis e inovadoras na extracção de inertes para maximizar os benefícios económicos enquanto se minimizam os impactos ambientais.
Essas práticas incluem investimentos em tecnologias sustentáveis, diversificação de materiais de construção e adopção de uma abordagem de economia circular.
“Com as inovações tecnológicas, podem surgir outros materiais a serem utilizados na construção e que sejam mais “enviroment friend”, permitindo a redução da exploração de inertes. Pelo que as empresas do sector vão precisar de se readaptar, para continuarem no activo”, sugere.
O Expresso das Ilhas tentou contactar a Diretora Nacional do Ambiente por telefone e e-mail para obter informações sobre a fiscalização, regularização e programas de extração sustentáveis, porém não obteve resposta.
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Na semana passada quarta-feira, 12, um homem de 64 anos morreu soterrado numa mina de inertes no Concelho do Tarrafal.
Há cerca de um ano, um homem também morreu após desabamento numa pedreira na localidade de Figueirinha do Planalto Leste.
Em 2018, aconteceu um soterramento no local de extracção de areia na zona de Lazareto, na ilha de São Vicente, que provocou duas mortes e um ferido.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1177 de 19 de Junho de 2024.