Erosão costeira em Santo Antão: Um dia a casa cai

Habitantes de Coice das Pombas, Santo Antão, estão preocupados com o avanço do mar. Com as ondas a bater do lado de lá da parede, dormir tranquilo é uma ilusão. Situação preocupa autoridades e remete-nos, mais uma vez, para o problema global das mudanças climáticas.

Ficar sem casa num futuro incerto. Perder o investimento de uma vida devido ao avanço do mar. É este o dia-a-dia de dezenas de famílias que moram no litoral da ilha de Santo Antão. A erosão costeira é uma realidade, potenciada pelas alterações climáticas. Em todo o mundo, nações insulares estão em risco.

Os efeitos são particularmente graves e visíveis em Coice das Pombas, concelho do Paul, onde o muro que deveria proteger cerca de uma dezena de casas da ousadia do mar não resistiu à agitação das ondas, erosão e desgaste e começou a colapsar. A parte traseira de uma das habitações já ruiu e as fossas sépticas de outras foram engolidas pela força das águas.

Com o mar a bater do outro lado da parede, ninguém dorme tranquilo. José Gomes, 95 anos, mora sozinho. A ameaça está logo ali. Medo é sentimento constante.

“Vivo aqui perturbado e com medo do mar destruir a minha casa. Quando comprei o terreno, o mar não chegava aqui. Tinha um quintal que foi levado pelo mar, mas antes nem chegava perto. Quem construiu o muro colocou pedras sobre pedras e não fizeram um alicerce como deve ser, porque a água passa por baixo”, mostra.

Ao lado de José está o filho, Domingos, de 55 anos, que acaba de chegar para visitar o pai.

“O mar está a bater nas casas e a causar medo nas pessoas. A água do mar entra na sanita. Esta casa não tem fossa, foi engolida pelo mar. Uma situação terrível. O mar pode, a qualquer momento, deitar a casa abaixo e levar o meu pai e as pessoas idosas”, teme.

Vulnerabilidades naturais

A situação em Coice das Pombas não é um problema isolado. A erosão costeira, não raras vezes associada à subida do nível médio da água do mar, é um efeito das alterações climáticas.

Os países mais ricos e mais industrializados são os principais causadores do aquecimento global, provocado pelas crescentes emissões de gases com efeito de estufa, que está a derreter os gelos polares, fazendo subir o oceano. O nível médio global do mar aumentou 0,76 centímetros entre 2022 e 2023. Projecções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças climáticas (IPCC, na sigla em inglês) estimam que, até 2100, esse nível suba 80 centímetros.

A vulnerabilidade natural de ilhas e arquipélagos faz com que sejam particularmente afectados por qualquer mudança do status quo climático e ambiental, por mais pequena que seja.

O cenário concreto da subida da água do mar é especialmente dramático na região do Pacífico, com países em risco de desaparecer, mas preocupa globalmente.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, tem alertado que o aumento do nível do mar pode causar um êxodo de proporções bíblicas, com a migração em massa de milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras.

“A elevação do nível do mar ameaça vidas e põe em risco o acesso à água, aos alimentos e aos cuidados de saúde. A intrusão de água salgada pode dizimar empregos e economias inteiras em indústrias-chave, como agricultura, pescas e turismo. Pode danificar ou destruir infra-estruturas vitais, incluindo sistemas de transporte, hospitais e escolas, especialmente quando combinada com fenómenos meteorológicos extremos, ligados à crise climática. E a subida dos mares ameaça a própria existência de algumas comunidades e até de países baixos”, avisa.

O problema em Cabo Verde não é tão grave como aquele enfrentado por nações noutras latitudes, mas merece atenção. Segundo a NASA, só na última década, o nível do mar subiu 6 centímetros na estação de medição instalada na ilha do Sal. Nos próximos 5 anos, subirá 11. Os mesmos dados preveem uma subida de 25 centímetros até 2050 e 73 até final do século.

Cesária Gomes, especialista em mudanças climáticas, não tem dúvidas: se as previsões se confirmarem, os impactos serão “catastróficos”. Na tese de doutoramento, sobre os “Impactos das alterações climáticas na evolução costeira das ilhas”, especialmente dedicada à Boa Vista, a investigadora analisa a evolução da linha de costa da ilha das dunas, de 1968 a 2010, projectando cenários até 2100.

A pesquisa concluiu que, até 2010, a costa manteve-se relativamente estável, mas que, até 2100, a cidade de Sal Rei poderá ser inundada. As previsões da investigadora são baseadas nos dados da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA).

“Sal Rei é uma das cidades mais vulneráveis à subida do nível do mar, tendo o efeito directo do balanço sedimentar a nível, principalmente, da costa Sul, onde dispõe de praias turísticas. O nível do mar irá superar o balanço sedimentar em valores extremos, indicados pela NOAA, que é de cerca de 2,5 metros”, calcula.

No Sal, a organização não governamental, Projecto Biodiversidade, tem trabalhado na protecção do litoral e recuperação de ecossistemas. O director executivo, Albert Taxonera, considera que o país não está a dar a devida importância ao problema da degradação da orla costeira. O biólogo não tem dúvidas de que a conta chegará.

“Deveríamos começar a pensar se realmente os empreendimentos que estão a fazer e projectados têm lógica, quando pensamos nos problemas que vamos ter daqui a 10, 15 ou 20 anos. Na nossa região, é incerto qual vai ser o impacto real, mas com certeza o nível do mar vai subir, disto não nos safamos. Se continuarmos a destruir o nosso litoral, as nossas zonas de dunas costeiras, vamos ter inundações”, refere, categórico.

Impactos económicos

A alterações climáticas e a subida do nível do mar, em particular, têm efeitos negativos na economia. O Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas de Cabo Verde, elaborado pelo Ministério da Agricultura e Ambiente, aponta pescas, turismo, agricultura, segurança alimentar e nutricional como algumas das áreas afectadas.

No mais recente boletim de actualização económica do Banco Mundial, a subida do nível do mar, a erosão costeira e a perda da biodiversidade e ecossistemas são apontadas como problemas que colocam em causa a sustentabilidade do sector turístico, motor da economia.

O Primeiro-Ministro entende que não há evidências científicas que apontem para o aumento do nível do mar em Cabo Verde. Ulisses Correia e Silva diz que aquilo que existe é um problema com construções praticamente dentro de água.

“Nós não temos evidências de que temos fenómenos de aumento do nível de mar em Cabo Verde. O que estou a dizer é que a perspectiva de longo prazo é que continuando o nível de aquecimento global do planeta, poderemos ter esses problemas de aumento do nível de mar. Aquilo que temos hoje é um problema de construções, edificações que entram nas proximidades do mar. Um exemplo é Coice das Pombas, em Paul. É um problema de construções que estão mesmo em cima do mar. Depois, com os problemas de retirada de areia, dos calhaus, estão-se a criar problemas de entrada do mar e nós estamos a trabalhar para fazer as devidas adaptações e protecções”, disse em Maio o Chefe do Governo, durante uma entrevista colectiva, em São Vicente.

Correia e Silva reconhece que as construções nas orlas marítimas acontecem um pouco por todo o país, em contraciclo com a lei e promete um sistema de planeamento de orla costeira, para dar resposta ao problema.

Calamidade

Os moradores de Coice das Pombas cobram do poder político soluções definitivas. Pede-o também Joaquim Nascimento, enquanto aponta para as fissuras nas paredes de uma casa que abriga quase uma dezena de pessoas.

“Deveriam, antes de tudo, preparar um projecto para um quebra-mar ou encontrar outra solução. Penso que o Governo deveria tirar o pessoal daqui, construir um prédio noutro lugar, para nos colocar. Pagávamos um valor durante um determinado período, até a casa ser nossa. Estamos perdidos”, diz.

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O actual muro de protecção foi construído em 2017, num investimento de sete mil contos, financiado pelo Ministério das Infra-estruturas, Ordenamento do Território e Habitação. O Presidente da Câmara Municipal do Paul, António Aleixo, explica que se tratou de uma intervenção de emergência, que se seguiu a uma outra, nos anos 90 do século passado. “Aquilo que tentámos fazer foi mitigar aqueles efeitos, porque temos consciência do efeito do mar naquelas casas”, frisa.

Perante o risco de colapso, em Dezembro de 2023, o governo declarou situação de calamidade pública. A publicação em Boletim Oficial cita uma equipa técnica que terá comprovado o risco de colapso iminente e concluído que o muro construído seis anos antes não cumpre os requisitos de equilíbrio e resistência regulamentares.

O edil paulense realça que são quatro as famílias em maior risco e que, neste momento, não existem soluções disponíveis para o realojamento.

“Havendo necessidade de retirar as pessoas, nem que seja em escolas e outros sítios, teremos de arranjar uma solução. Agora, se me perguntar se eu tenho casas para evacuar aquelas pessoas, não tenho”, declara.

Nova obra

Dos cofres públicos vão agora sair 40 mil contos, parcialmente financiados por Portugal, para execução da primeira fase de um projecto mais vasto, de requalificação de toda a orla marítima da cidade das Pombas.

Num esclarecimento por email, a ministra das Infra-estruturas, Ordenamento do Território e Habitação, Eunice Silva, detalha que a intervenção já arrancou e decorre no quadro da situação de calamidade.

Na segunda fase, ainda sem financiamento garantido, toda a frente marítima da cidade das Pombas, numa extensão de cerca de dois quilómetros, será intervencionada, o que representará um investimento de, no mínimo, um milhão de contos.

Paliativos

Muros e outras barreiras construídas pelo homem sossegam as populações, mas não são solução definitiva. Tommy Melo, presidente da associação ambientalista Biosfera I, fala de paliativos.

“É um paliativo, principalmente por estarmos numa época em que já se sabe que vamos ter a subida do nível do mar, as tempestades vão aumentar de frequência. É um paliativo, mas é um paliativo que tem de ser feito, principalmente em zonas onde não foram seguidas regras de construção. O mar quando sobe, sobe”.

Seguir à risca as regras de construção na orla marítima e evitar a extracção de inertes nas zonas costeiras são recomendações do ambientalista.

O decreto-lei 14/2016 define como “orla marítima” as áreas contíguas à linha do máximo praia-mar, numa faixa de 80 metros. O mesmo diploma refere ser obrigatória a preservação da orla litoral da ocupação urbanística e instalação de infra-estruturas que não sejam estritamente necessárias.

Esta reportagem foi originalmente produzida para a Rádio Morabeza, no âmbito do projecto Terra África, implementado pela CFI - Agência Francesa de Desenvolvimento dos Media.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1180 de 10 de Julho de 2024.

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Autoria:Fretson Rocha e Nuno Andrade Ferreira,14 jul 2024 8:53

Editado porAntónio Monteiro  em  20 nov 2024 23:25

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