Agora, a nossa prioridade é apoiar Cabo Verde na implementação da nova agenda para os SIDS

PorSara Almeida,9 jun 2024 9:05

Assinala-se hoje o dia Mundial do Ambiente, efeméride que tem ganhado destaque à medida que os impactos anunciados das Mudanças Climáticas se tornam cada vez mais fortes. A efeméride, cujo lema, este ano, se centra na restauração da terra e luta contra desertificação, deu o mote para uma conversa com a coordenadora da ONU, em que se fala do trabalho das agências da organização, no âmbito do ambiente. Incontornável, pela condição arquipelágica do país, a recém aprovada Agenda de Antígua e Barbuda para os SIDS (ABAS) foi também um dos temas abordados. Uma agenda que Patrícia Portela de Souza avalia positivamente, e que considera ser “reflexo das demandas dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento”.

Este ano, o lema da ONU para o Dia Mundial do Ambiente é “Restaurar a Terra, Travando a Desertificação e Criando Resiliência à Seca”. Porquê este lema?

Estas chamadas são alertas, a nível mundial, para se prestar atenção ao tema. Como o próprio secretário-geral da ONU coloca [na sua mensagem alusiva ao Dia Mundial do Ambiente] a humanidade depende da Terra. Infelizmente, há um cocktail tóxico de poluição, caos climático - que é uma coisa de que falavámos e sabíamos que já era presente, mas agora sentimo-lo fortemente – e perda da biodiversidade e tudo isto está a transformar terras que antes eram saudáveis, produtivas, em desertos. Esse processo de desertificação está a desafiar os ecossistemas no mundo. Há ainda [na mensagem deste ano] a preocupação com a aniquilação das florestas, e com os biomas que precisam ser protegidos. Ora, essa violência absurda nos ecossistemas tem um impacto directo na agricultura, no acesso à água, no dia-a-dia das comunidades. É, pois, fundamental assinalar a importância da terra saudável na produção agrícola para a alimentação das pessoas e lembrar que ter menos florestas vai impactar a questão da água, das nascentes. Todo o ecossistema ambiental tem impacto directo na economia, ou seja, há a questão ambiental, mas esta tem atrelada a questão económica. Não dá para separar uma da outra. Então, o desenvolvimento sustentável no mundo está a sofrer com tudo isso. Faltam seis anos para 2030, e quando olhamos para as metas dos ODS, há um grande impacto. Estamos num ciclo muito complicado, de devastação, como a mensagem do secretário-geral assinala, e temos de considerar que o uso inadequado da terra é responsável por 11% das emissões de dióxido de carbono, que levam ao aquecimento global. É, em suma, preciso exortar os países a que parem com esta devastação terrível, que impacta directamente a terra, as pessoas e a economia.

E o que se pretende é criar uma Geração Restauradora?

Sim. É hora de restaurar os países. Os Estados têm que trabalhar para reverter a degradação dos ecossistemas. Há um acordo global, o Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework que precisa ser implementado. É preciso lembrar que o custo da inacção é muito maior do que o da acção. É certo que é necessário um investimento grande, mas a inacção é muito pior: cada dólar investido na restauração do ecossistema cria 30 dólares em benefícios para a economia. São dados que saíram hoje, dados globais que são importantes. Qual é a chamada aqui? Primeiro: mudança climática é aqui e agora. Segundo: cuidar da terra - do planeta terra e da terra arável para o agricultor e para todos nós – é fundamental.

Essa é a mensagem para este dia 5, mas temos tido já vários projectos para atender a esta chamada, de várias agências da ONU em Cabo Verde. O que destacaria?

Há várias agências a trabalhar em projectos ligados ao ambiente. Agências como a FAO, PNUD, UNIDO, UNECA, UNESCO, UNEP – que é o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente… Há várias. Na verdade, todo o Sistema [das NU] trabalha e contribui para o ambiente e na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Há um trabalho muito forte, por exemplo, do PNUD, FAO e UNIDO, mas não só, para apoiar Cabo Verde na atracção de Fundos e no acesso a fundos climáticos, designadamente o GEF (Fundo Global para o Meio Ambiente) e o GCF (Fundo Verde para o Clima). Quanto às áreas de actuação, destacaria a transição energética; a área da biodiversidade, ou seja da restauração e preservação da fauna e flora; a Economia Azul, sobretudo na área da indústria piscatória. Além do trabalho com o governo e comunidade, também destacaria a interacção com a academia, na questão do conhecimento e tecnologia para o país poder dar resposta a essas demandas que tem. Enfim, acho que as Nações Unidas são um ecossistema, uma agência complementando a outra, para ver como se pode apoiar o país neste momento difícil.

Quais são as maiores dificuldades que as agências em Cabo Verde enfrentam para conseguir atingir os objectivos climáticos? No relatório 2023 do UNEP fala-se em subfinanciamento e subpreparação como obstáculos mundiais...

Os nossos objectivos são os objectivos dos países. Eu nunca dissocio. Aproveitamos a conferência dos SIDS, e juntamos os SIDS africanos para fazer uma análise só destes Estados, e ver como o Sistema das Nações Unidas pode apoiá-los mais e melhor na mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas. Então, que desafio temos? Há dificuldade em aceder ao nível de financiamento que é necessário para apoiar o país nessa virada. Temos, cada vez mais, de pensar em programas maiores, mais abrangentes, ao invés de projectos específicos. Adoptar uma visão mais macro, e pensar os planos nacionais de adaptação e mitigação de uma forma muito ampla, onde as agências das Nações Unidas podem contribuir com sua expertise. Temos capacidade instalada no país, mas também fora do país, que vamos buscar, e, é de lembrar que temos 19 agências, fundos e programas que assinaram o programa de cooperação de Cabo Verde. A nossa tarefa e apoio aos Estados-membro é, então, no sentido de desenvolver planos de mitigação, adaptação mais abrangentes. Uma das prioridades actuais é olhar as NDCs (Contribuições Nacionalmente Determi­na­das) a partir da declaração da ABAS (Antigua and Barbuda Agenda for SIDS), saída da conferência de Antígua e Barbuda. Uma outra dificuldade é a questão dos dados, pelo que importante apoiar o país na geração e uso eficaz de dados. Esta é uma área vital de actuação.

O governo está preparar o primeiro relatório bienal sobre medidas e estratégias para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas para submeter à Convenção Quadro das Nações Unidas para a Redução das Mudanças Climáticas. Como tem sido esse processo?

Apoiamos, é um processo que continua e um dos grandes desafios é, justamente, a questão da informação e do país gerar dados. Uma das áreas dos ODS onde foram identificadas mais limitações foi a ambiental, devido a essa escassez dos dados. No entanto, Cabo Verde tem priorizado essa questão e está a avançar na elaboração do relatório que, como sempre, irá entregar. É um país comprometido e é importante destacar também a liderança de Cabo Verde entre os SIDS, especialmente dentro dos SIDS da África, Oceano Índico e Sul da China (AIS). Essa região engloba nove SIDS, sendo seis deles africanos e Cabo Verde demonstra uma liderança clara. Outro aspecto que as agências multilaterais, o Sistema das Nações Unidas e os parceiros bilaterais têm de considerar é a criação de condições financeiras favoráveis para os SIDS, sobretudo os SIDS africanos.

É uma reivindicação em todos os Fóruns…

É. Acredito que agora o Índice de Vulnerabilidade Multidimensional (MVI) já está em outro patamar. Cada vez mais Estados-membros manifestam o seu apoio ao MVI e já não se discute questões que antes eram colocadas sobre a necessidade de ter uma outra forma de avaliação e análise dos SIDS, especificamente, e de outros países, pela vulnerabilidade que têm. A priorização do acesso ao financiamento é fundamental neste contexto. Cabo Verde aumentou o espaço fiscal, tem feito um esforço grande de aumentar a arrecadação, mas a implementação das medidas necessárias é cara. A tarefa é cara e o país precisa dos parceiros para o apoiar.

Os parceiros, principalmente os países desenvolvidos, têm tido consciência da justiça climática? São países que enriqueceram à custa de energias baratas …

É importante mencionar isso porque quando se olha a declaração [de Antígua e Barbuda], não é uma declaração do SIDS. É uma declaração dos países membros das Nações Unidas para os SIDS e achei muito interessante ver o compromisso dos países, de uma maneira geral, sobretudo dos países industrializados, em apoiar os SIDS. É por isso que a agenda é: dar acesso ao financiamento, aplicar o MVI, simplificar o acesso aos fundos… Temos vários fundos, como o GCF, disponíveis, mas o seu acesso é um processo burocrático, demorado. Então, o que podemos fazer é trabalhar para garantir um acesso mais rápido e menos burocrático aos recursos. Há urgência nisso, é uma tarefa que requer pressa. Além disso, é importante ampliar a disponibilidade de subvenções, conhecidas como grants, porque, às vezes, um país de renda média, como Cabo Verde, tem mais dificuldade para aceder a grants. Tenho muito orgulho do Sistema Nações Unidas, porque trazemos para o país grants, donativos. Eu não gosto muito da palavra “donativo”, pois são recursos que os países têm direito a receber…

Recentemente foram “doados” 2,7 milhões de euros para melhorar a gestão da biodiversidade.

É para três anos. Mas, só em 2023, foram alocados em donativos, através do Sistema Nações Unidas, 3,5 milhões de dólares para a área do ambiente. Este ano, estamos em 3,3 milhões e estamos a tentar mobilizar mais. Não são fundos concessionais. A maioria veio do GEF (77,1% do total de 2023 e 63,3%, de 2024), mas cerca de 10% vem de core funding, fundos próprios das agências das Nações Unidas (9,3% do total de 2023, 12%, de 2024). Isto é importante. As agências têm recursos próprios, que os doadores dão para um pool e esses fundos são aplicados a partir da prioridade dos países e dos mandatos das agências, nas diferentes áreas e que também estão a ajudar a área do ambiente.

Nessa questão dos SIDS, estávamos a falar dos pontos positivos da ABAS…

Que todos abraçaram.

O problema geralmente é a implementação, mas há já algo nessa agenda que ficou aquém do esperado?

Acompanhei o antes e o durante, online, e acho que foi um encontro muito dinâmico e positivo, porque o engajamento dos SIDs foi muito forte. No ano passado, recorde-se, houve aqui em Cabo Verde uma reunião preparatória e os países chegaram a Antígua e Barbuda já com o dever de casa feito, sabendo exactamente o que queriam priorizar. Lideraram as discussões, e a agenda que foi negociada é produto de processo de negociação longo. Penso que o documento final reflectiu muito bem o que os SIDS precisam. Então, tenho uma visão muito positiva, estou optimista porque a agenda foi muito impulsionada pelos SIDS e é reflexo das demandas dos SIDS. Todos os pontos da declaração são importantes, mas repare-se que o primeiro ponto, é “ Construir Resiliência Económica”. Ora, trabalhar os SIDS numa perspectiva de mudança climática tem a ver directamente com a economia. E destaca-se aí a “Reforma da Arquitectura Financeira Internacional” – tema que será também abordado na Cimeira do Futuro [22 e 23 de Setembro, Nova Iorque] – que visa colmatar as dificuldades dos SIDS. Fala da vulnerabilidade multidimensional, da questão do acesso a fundos concessionais, etc. Outro ponto é o “Scale-up, o aumento da escala, da acção climática”, que é o que mencionei sobre avançar de maneira abrangente e integrada na acção climática. É pensar grande sobre o que pode ser feito e o papel de cada actor nesse processo e está relacionado com o financiamento climático e com as acções que os Estados-membros, incluindo os SIDS, se comprometeram a implementar. Para os SIDS implementarem os seus compromissos precisarão de apoio substancial, não apenas dinheiro, mas também em termos de conhecimento e apoio técnico. Para mim, esse é o valor agregado das Nações Unidas: estar presente no país, ter capacidade local e, quando necessário, buscar recursos externos para apoiar a implementação desta agenda. Agora, a nossa tarefa prioritária é apoiar Cabo Verde na implementação do ABAS. Este scale-up está alinhado com os compromissos do UN Framework for Convention on Climate Change e o Acordo de Paris. Um aspecto também importante [no ABAS] é o forte foco na biodiversidade. Há um capítulo específico para acelerar acções urgentes visando deter a agressão à biodiversidade e reverter as perdas que os países enfrentam. Há ainda a “conservação e sustentabilidade dos oceanos”, bem como a “redução do risco de desastres“ que é de extrema importância, não apenas para os SIDS, mas para todos os países, como vimos recentemente nos eventos ocorridos no meu país [cheias no Rio Grande do Sul, Brasil]. Temos também a criação de “Sociedades Seguras e Saudáveis” e um outro ponto, de que já falamos, que é a questão da “Recolha, análise e uso de dados”-, bem como “Ciência, tecnologia, inovação e digitalização”. Por fim, para concretizar esta agenda, salienta-se a questão das “Populações produtivas”, isto é, apoiar a produtividade, sobretudo na área agrícola e a questão das “Parcerias”. São os grandes capítulos e penso que é uma agenda abrangente, pertinente e, sobretudo, relevante para o contexto actual e tendo em conta as especificidades dos SIDs.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1175 de 5 de Junho de 2024. 

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Autoria:Sara Almeida,9 jun 2024 9:05

Editado porJorge Montezinho  em  2 dez 2024 23:28

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