Que balanço é que faz desta 4ª Cimeira dos SIDS? Que conclusões é que é possível tirar deste encontro?
Bom, nós estamos a falar de um balanço muito positivo, um trabalho longo que decorreu ao longo de vários meses, incluindo com discussões que tiveram lugar em Cabo Verde, e, portanto, quando chegamos aqui a esta reunião internacional, o trabalho no essencial estava feito e, portanto, estamos a falar de uma grande convergência, ao contrário do que muitas vezes acontece em cimeiras internacionais em que as negociações se arrastam. Neste caso, estamos a falar de uma grande convergência do ponto de vista quanto ao essencial que é mobilizar todos os esforços para apoiar os pequenos estados insulares que enfrentam níveis de vulnerabilidade sem precedentes. Hoje, ninguém tem dúvidas que os pequenos estados insulares estão numa situação muito difícil. São aqueles que mais consequências enfrentam das alterações climáticas. Em termos prácticos, estes 39 países representam dois terços dos países mais afectados pelas consequências da mudança climática. São países que enfrentam as consequências de choques económicos globais, que enfrentam os problemas relacionados com o tamanho, com a distância, a dificuldade de conectividade e depois também os níveis de dívida muito significativos. Neste momento, cerca de 40% dos pequenos Estados insulares estão com níveis de dívida insustentáveis ou próximos disso. Portanto, a primeira grande conclusão de que eu gostaria de tirar desta Cimeira é que houve uma total convergência de pontos de vista quanto à necessidade da comunidade internacional apoiar os pequenos Estados insulares para enfrentar a vulnerabilidade. E houve também uma grande convergência quanto à forma de o fazer. Isso passa pela concretização do Plano de Acção de 10 anos, este plano que se chama ABAS (Antigua and Barbuda Agenda for SIDS). Este plano, de uma forma muito detalhada, enumera um conjunto de acções, de projectos, de reformas que são necessárias. E também, como é evidente, faz uma forte convocatória para a mobilização de recursos financeiros adicionais. E, desse ponto de vista, se me permite, há aqui uma área onde penso que se alcança um progresso muito importante, que há muitos, muitos anos os pequenos Estados Insulares reclamavam, que era olhar para a vulnerabilidade com uma métrica que não passa apenas pelo PIB per capita, o rendimento nacional bruto per capita. E existe hoje um conceito muito alargado quanto à introdução de uma métrica que é o Multidimensional Vulnerability Index, portanto, o índice de vulnerabilidade multidimensional que permite aferir as vulnerabilidades, as fragilidades, as dificuldades que os SIDS enfrentam, além do PIB per capita. Ora, esta métrica não vai substituir o PIB per capita, não vai criar uma dicotomia entre uma métrica e outra. Na prática, traz mais informação e colecta informação adicional. Aquilo que se espera é que exista financiamento adicional, seja financiamento concessional, portanto ajuda pública ao desenvolvimento, seja financiamento privado. Portanto, no fundo, nós saímos aqui de Antígua e Barbuda com uma clara missão para concretizar projectos essenciais na área da economia azul, da economia verde, da descarbonização, da adaptação às alterações climáticas, da diversificação da economia nos pequenos estados insulares, para não ficarem tão dependentes, por exemplo, do turismo, uma maior conectividade dos pequenos Estados insulares com outros países, o reforço do comércio, o reforço das infraestruturas essenciais na água, no saneamento, na energia, nas telecomunicações. Há aqui uma mobilização muito grande em relação à acção. Finalmente, há um dado adicional que me parece importante, é que desta vez este plano vai ter um mecanismo de avaliação e monitorização. Este é o quarto plano de acção. Já tivemos três planos de acção e uma das grandes diferenças é que desta vez este plano vai ter mecanismos de avaliação e de reporte. E este plano não é um plano dos SIDS, é um plano para os SIDS. O que é que isso significa? Que não são os pequenos Estados insulares que vão ser avaliados na concretização deste plano, é toda a comunidade internacional, incluindo os doadores. E isso é o que vai impedir aqui um nível de accountability muito importante. Eu gostava de acrescentar uma coisa que tem a ver com financiamento inovador e com o tema da dívida. E parece-me importante sublinhar que o exemplo de Cabo Verde foi referido em múltiplas questões, já tinha verificado isso em conferências anteriores nos últimos meses, como um país que encontrou uma solução interessante, inovadora, para troca de dívida por investimento na área verde, na área azul, na área digital. E este mecanismo que em inglês se chama debt for climate e debt for nature, é um dos mecanismos que vai sendo referido como mecanismo inovador.
O primeiro-ministro de Cabo Verde, que esteve presente na Cimeira, falou sobre a questão das dificuldades de financiamento dos SIDS. Como é que isto se pode modificar de forma a que seja mais fácil o acesso ao financiamento por parte destes países?
Há três áreas onde isso é decisivo. Do lado da oferta, do lado da procura e do lado da própria organização do mercado. Do lado da oferta, precisamos mobilizar mais financiamento para os SIDS, mais financiamento público, nomeadamente a ajuda pública ao desenvolvimento, mas também mecanismos inovadores como o financiamento misto, que é o blended finance, em que se combina financiamento público e financiamento privado, o investimento de impacto, o esvaziamento das linhas de crédito externas. Também reformas fiscais, nomeadamente a nível internacional, eliminando os subsídios aos combustíveis fósseis para mobilizar mais recursos financeiros para as áreas de acção climática, o desenvolvimento dos mercados de carbono. Portanto, estas áreas são áreas fundamentais para mobilizar os recursos que são necessários. E estamos a falar de níveis de grandeza muito significativos. Só para lhe dar uma ideia: os SIDS precisarão, nos próximos 10 anos, de 70 mil milhões de dólares para financiamento a infraestruturas. Neste momento, os SIDS recebem de ajuda pública ao desenvolvimento cerca de 3 ou 4 mil milhões de dólares. Portanto, repare a diferença entre as duas ordens de grandeza. O financiamento público internacional não vai ser suficiente. Vai ser preciso aumentar este financiamento, mais financiamento público, mais ajuda pública ao desenvolvimento, mas também mobilizar investimento privado, como eu referi com os outros mecanismos que enunciei. Em segundo lugar, é preciso o lado da procura também criar condições para atrair investimento. Isso significa que os pequenos estados insulares terão de desenvolver reforma políticas, reformas estruturais para criar um ambiente regulatório que atraia o investimento. Vou-lhe dar um exemplo: nunca haverá condições para se fazer investimento público e privado em adaptação às alterações climáticas se os países não tiverem políticas de ordenamento do território compatíveis com a redução dos riscos climáticos, ou políticas de gestão dos recursos hídricos que reduzam a sua utilização intensiva. Não haverá investimento público ou privado nas energias renováveis se os países não tiverem feito reformas no ambiente regulatório na remuneração das energias renováveis. Portanto, esta segunda dimensão é uma dimensão também muito importante. As reformas políticas, o ambiente de contexto para atrair investimento. E há uma terceira área que me parece também muito importante, que tem a ver com a capacidade. Muitas vezes temos o dinheiro, temos as políticas implementadas, as reformas, mas falta capacidade técnica. Ora, é fundamental também que a comunidade internacional se mobilize para parcerias de cooperação para reforço das competências nas áreas de desenho de projectos, da concretização de projectos. Isto do lado da oferta e do lado da procura. Depois há uma terceira dimensão que tem a ver com a própria organização do mercado. Quando eu digo mercado, é do mercado de financiamento ao desenvolvimento, que é o acesso aos próprios mecanismos de acesso aos bancos multilaterais e às instituições financeiras. Ora, o secretário-geral das Nações Unidas tem vindo a defender uma reforma do sistema financeiro internacional para que os SIDS tenham mais representação, mais voz, mais participação, mais direito de voto, para que possa haver mais liquidez atribuída aos SIDS para que exista mais capacidade de concessão de crédito destas agências. Portanto, no fundo, nós precisamos de reformas nas três dimensões. Mais financiamento internacional, mais reformas políticas nos SIDS para atrair este investimento e uma reforma da arquitectura financeira internacional.
Cabo Verde tem vindo a apostar na economia verde, na economia azul, e está a apostar também a digitalização. Este é um caminho certo?
Sem dúvida. Essa é a agenda certa. A agenda do crescimento azul e do crescimento verde, no fundo, a agenda da descarbonização, não só para reduzir as emissões, mas para criar emprego, para criar empresas na área das tecnologias limpas, das energias renováveis e da eficiência energética, é a agenda certa. A agenda de proteger os oceanos, mas ao mesmo tempo de valorizar os oceanos do ponto de vista económico, não só com os sectores tradicionais, como as pescas, mas também com novas actividades como a energia offshore, a biotecnologia, é a agenda certa. Depois há também uma agenda incontornável, que é a agenda digital. Hoje, em especial para os SIDS, que estão tão desligados territorialmente de outros países, o digital é essencial. É essencial para a igualdade de oportunidades, para que as crianças possam ter acesso ao nível de educação que merecem, para que a sociedade se organize de uma forma mais transparente e menos burocrática, mas também para que o comércio se faça, porque hoje o comércio digital tem um peso muito grande. Portanto, eu não tenho dúvidas nenhumas que a agenda verde, a agenda azul e a agenda digital são as agendas não só amigas do ambiente e amigas da dimensão social do desenvolvimento, mas também amigas do crescimento, da competitividade e da criação de emprego.
Como melhorar a atractividade dos SIDS, e especificamente de Cabo Verde, para que seja capaz de convencer quem está lá fora de que Cabo Verde é um país em que vale a pena apostar?
Esse é o ponto importante. É necessário que a comunidade internacional se mobilize para apoiar os países. A comunidade internacional fala do sector público e do sector privado, para apoiar os pequenos estados insulares, porque são mais vulneráveis, mas também mobilizar para que apoiem, porque é um bom investimento. Não se trata apenas de solidariedade, e a solidariedade é essencial. Trata-se também de mobilizar investimento, porque é um investimento reprodutivo, e, portanto, eu acho que esta lógica de valorizar actividades económicas mais diversificadas, não pôr, como sói-se dizer, os ovos todos no mesmo cesto, no cesto do turismo, ou no cesto das pescas, ou no cesto da agricultura. No fundo, ter uma actividade económica diversificada. E além de ser diversificada, muito centrada nos sectores onde o crescimento é mais acelerado, que é, como estamos a falar, a economia verde, nomeadamente, isso parece-me uma margem importante. Eu costumo sempre dizer, até quando falava do meu país, eu, como sabe, tive funções governamentais em Portugal, eu costumava sempre dizer que existem 460 triliões de dólares, portanto 460 biliões de dólares, disponíveis nos mercados financeiros, nos fundos de pensões e no mercado de capitais. E no fundo os países têm de fazer tudo o que podem, no plano das políticas nacionais, mas também no plano da diplomacia internacional, para que esse financiamento possa ser atraível. Porque há uma competição global. E, portanto, eu acho que nesta equação de grandes vulnerabilidades que têm os SIDS, mas também de um fundo financeiro que está disponível à escala global, que é também muito significativo, é importante que a comunidade internacional se mobilize para apoiar mais os pequenos estados internacionais, mas também que os pequenos estados internacionais possam realizar as suas políticas para atrair mais investimento. Eu acho que estas duas dimensões são importantes do lado da oferta, para que haja mais solidariedade e mais mobilização com aqueles que são mais vulneráveis, mas também do lado da procura, para que a atracção de investimento seja mais alinhada com estas altas agendas das alterações climáticas e totalmente sustentável.
Cabo Verde tem problema de escala. O caminho é, então, a internacionalização do sector privado?
Eu preferia não me pronunciar sobre as agendas nacionais, porque há uma boa regra, que é, obviamente, que as políticas nacionais competem aos países, aos governos democraticamente eleitos. Portanto, eu não quero estar a receber uma avaliação das políticas nacionais, até porque, sinceramente, não tenho conhecimento suficiente sobre o dia-a-dia da política nacional, posso dizer, em qualquer caso, daquilo que vou observando nas reuniões internacionais, com a participação do Primeiro-Ministro, do Ministro dos Negócios Estrangeiros, o que me parece evidente é que Cabo Verde se está a fazer muito nestas discussões internacionais, pelo facto de não estar só a reclamar mais solidariedade internacional, mas estar também a demonstrar uma vontade de liderar temas tão importantes como a Agenda Digital, a Agenda Verde e a Agenda Azul.
Mas falando genericamente dos SIDS, a escala é uma dificuldade que existe. Estamos a falar de países que têm o mesmo número de habitantes que uma cidade média europeia. Como é que esses países tendo em conta que têm pouca mão de obra, poderão ser estimulantes para o investimento inteiro?
Eu julgo que a questão da escala não é ultrapassável, portanto, é a realidade com que têm de viver, mas a dimensão da conectividade é ultrapassável. E, portanto, uma das dimensões importantes é o reforço da conectividade, dos pequenos estados insulares com outros países. E a conectividade tem a ver com os transportes, com a componente digital e com o comércio. Portanto, isto parece-me essencial. Mas há sempre uma dimensão inultrapassável, como disse bem, que é, além da distância e do problema da conectividade, que é a própria escala. A escala torna este investimento mais oneroso. E por isso é preciso que a comunidade internacional não perca isso de vista. Nós sabemos, por exemplo, que na ajuda pública ao desenvolvimento, aquilo que os doadores atribuem ao desenvolvimento, quando se trata de projectos em pequenos estados insulares, o custo é quatro vezes maior. É quatro vezes maior porque a escala é menor, o custo para usar os materiais é maior, as vulnerabilidades, nomeadamente climáticas, são maiores, com consequências na elaboração e na concretização de projectos, e depois as infraestruturas são mais caras porque é preciso que sejam mais resilientes para enfrentar a falta de água, os choques climáticos extremos. Portanto, por isso é que eu tenho referido que, além do trabalho que os governos fazem, que os países fazem e os pequenos estados insulares fazem, a comunidade internacional tem a obrigação moral de se mobilizar para apoiar estes países, porque há níveis de vulnerabilidade que são quase inultrapassáveis. Tem a ver com a realidade geográfica, com a realidade climática e com a própria natureza destes territórios. Portanto, é obrigatório uma mobilização internacional. Mas qual é a dificuldade que estes países enfrentam do ponto de vista do acesso ao financiamento internacional? É que muitos deles têm níveis de PIB per capita que deixou de os tornar elegíveis para ajuda pública ao desenvolvimento, porque tornaram-se países de rendimento alto, ou até, como foi o caso de Cabo Verde, graduou-se de país menos desenvolvido para país de rendimento médio. O que é que significa? Apesar de ser ainda elegível para ajuda ao desenvolvimento, deixou de ser prioritário. Ora, estes países que, estatisticamente, têm um PIB per capita mais elevado, podem perder tudo com um desastre natural, como aconteceu, quer nas Caraíbas, quer no Pacífico, com muita frequência. Portanto, não se pode olhar apenas para a dimensão estatística do PIB, é importante olhar para a vulnerabilidade. E, por isso, é que este indicador que eu me referi de vulnerabilidade multidirecional é tão importante, porque vai permitir que, quem está numa agência de desenvolvimento, num país doador, quem está num banco de desenvolvimento, quem está num banco de investimento, quando tem de tomar decisões de financiamento aos países, não olhe apenas para o PIB per capita, mas olhe também para a vulnerabilidade desses países. Portanto, o tema da solidariedade internacional é crucial. E eu julgo, sinceramente, que esta cimeira conseguiu alcançar níveis históricos de convergência com a agenda dos SIDS. Agora é preciso passar à acção. E as agências das Nações Unidas, como o UNOPS e as outras agências, obviamente, têm que estar disponíveis para as parcerias no terreno, para contribuir para a concretização de projectos, nomeadamente, das infraestruturas.
Ulisses Correia e Silva, na participação que fez na Cimeira, defendeu que os SIDS têm de escapar à armadilha do PIB per capita. Concorda com essa ideia? O PIB per capita é uma armadilha, realmente?
Eu não sei se é uma armadilha. Tem sido uma métrica que não tem sido suficientemente robusta para lidar com os pequenos estados de esforço. Portanto, no fundo, nós temos métricas que, obviamente, têm que corresponder à realidade e o PIB per capita, que vai ter de continuar a ser utilizado para muitas decisões, não pode ser a única métrica. Por isso, este indicador de vulnerabilidade multidimensional é um bom contributo.
Uma última questão. No actual cenário político a nível internacional, com o surgimento de partidos e governos extremistas e, por isso, menos interessados na cooperação internacional, é possível concretizar esta agenda dos SIDS?
Num mundo cada vez mais interdependente, todos ficamos a ganhar com acréscimo de solidariedade com os mais vulneráveis. A solução para os grandes problemas globais passa por mais multilateralismo e mais cooperação e não por fechamento ou intolerância.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1175 de 5 de Junho de 2024.