Nascido em Fazenda, “atrás de Monte Graciosa”, no seio de uma família de agricultores que também se dedicavam ao pastoreio, desde pequeno que Carlos Varela, mais conhecido por Mingo, é fascinado pelo mar.
Mudou-se para a Vila do Tarrafal ainda jovem e sempre que podia ia para a praia, onde ficava a olhar os botes que regressavam do mar cheios de peixe. “Muito, muito peixe”, lembra. Fez amizade com vários pescadores e começou a pedir-lhes que o levassem para a lide.
Tinha 13 anos quando um dos seus “amigos”, um senhor chamado Zé, o deixou acompanhá-lo. Mingo, hoje com 49 anos, que nada sabia de pesca, conseguiu pescar um atum. “Fiquei contente. No outro dia, tornei a ir, e apanhei um atum e um serra”, recorda com um sorriso. E a partir daí, fugia até da escola para pescar os peixes que o mar lhe dava. Deixou de estudar. De qualquer forma, lembra, não havia condições para mais escola.
Carlos Alberto Varela - Mingo
A certa altura, a família, mais habituada nas lides da terra, colocou-o no pastoreio. “Levava a limária para a Achada, cedo”, deixava-a lá com os colegas, e “fugia para a pesca”, da qual recebia um parte do dinheiro que o armador conseguia com a venda. E assim levou a vida. “O mar dava- -me ganho”, conta. “Não tenho nada de mau a dizer do mar, nada para me queixar. Eu sou do mar. Todas as coisas de que preciso foi só do mar que consegui ter”, diz, embalado pela ondulação no seu bote.
“Muito menos peixe”
O mar continua a ser o seu sustento. Porém, hoje em dia há muito menos peixe, observa, numa constatação que os pescadores do Tarrafal dizem ser corroborada por todos nas mais de 70 comunidades piscatórias existentes em Cabo Verde.
Mingo avança algumas razões que considera estar na origem dessa diminuição. A primeira é que “há muito mais embarcações” a pescar. Além disso, a partir dos anos 90, estima, começou a generalizar-se o uso de motores, o que permite fazer pesca em circunstâncias meteorológicas mais adversas, como vento e “água rijo” - porque o “mar tem muitos momentos”, e ir fazer distâncias agora um pouco mais longas.
Na verdade, é muito fácil ultrapassar a linha entre pesca e sobrepesca em Cabo Verde. Como explica o biólogo e ambientalista Tommy Melo, as zonas costeiras são muito reduzidas, sendo que o país não tem uma “plataforma continental como os países da África do Oeste, como Mauritânia ou Senegal”. Assim, sendo a zona de pesca de demersais muito reduzida, com recuperação difícil, impõe-se uma “gestão muito mais aplicada e séria”, de forma a impedir a sobrepesca.
Espécies que antigamente eram relativamente comuns, começam a escassear, principalmente os predadores. E até o tamanho dos peixes capturados está a diminuir. “Se formos ver o tamanho médio de uma garoupa que era capturada 20 anos atrás, não corresponde àquilo que é capturado hoje. Portanto, vê-se que os impactos realmente se estão a fazer sentir nessa faixa costeira”, aponta o presidente da Biosfera.
Entretanto, desde a altura em que Mingo começou a pescar também aumentou o número de embarcações de pesca semi-industrial. Neste momento, no Tarrafal serão quatro embarcações. Terá sido também a partir dos 90, segundo os cálculos do pescador, que o peixe começou a diminuir. E há um outro factor que Mingo destaca para essa diminuição.
“Começou a haver muito mais construções”. Lugares ao longo da costa que não tinham nenhuma casa começaram a ficar pintalgados de edifícios. Com a construção veio a procura de areia. Locais que antes tinham praia de areia são agora um amontoado de pedras. “Quem tenha estudado mais do que eu, é que pode falar”, diz Mingo, mas garante que essa areia é importante para o ciclo de vida dos peixes e, portanto, a apanha de areia é um factor que contribuiu para a diminuição do pescado.
Segundo o biólogo Tommy Melo, isso de facto acontece. “Uma praia de areia leva milhares de anos para se formar. Portanto, o ecossistema que ali vive levou também milhares de anos para se adaptar a fundos de areia. Existem muitas espécies que necessitam dos fundos arenosos para o seu ciclo de vida, seja para reprodução, por viverem junto ao substrato arenoso, ou outros motivos. Obviamente, retirar, em 10 anos, toda a areia de uma praia que demorou milhares de anos a se formar, vai causar um desequilíbrio no ecossistema, principalmente nessas espécies”, expõe.
Tommy Mello - Biólogo
A acção humana é, pois, sem dúvida, o elemento desestabilizador, pois embora o mar por vezes leve a areia, “torna a trazer”.
“Tudo o que vai ao mar, o mar torna a levar para a terra”, garante Mingo. Tommy Melo, corrobora, por outras palavras, a palavras simples do pescador.
“O hidrodinâmismo em zonas costeiras já é algo que está estável. Os próprios ciclos de marés, os ciclos sazonais anuais fazem com que, às vezes, a areia seja retirada de um lado, seja colocada em outro, mas volta. Estamos a falar de ciclos de milhares de anos. Portanto, a interferência humana em terminar com esse depósito de areia em tão pouco tempo, realmente tem impacto, tendo em conta que a biodiversidade não consegue adaptar-se a um ritmo tão acelerado quanto as mudanças que estão a ser impostas pelo homem”, explica.
Entretanto, nas passagens diárias pela costa, Mingo já não vê ninguém na apanha de areia. Aparentemente, pelo menos na sua “rota”, a prática cessou.
Água mais quente
Um outro factor que tem mudado a face da pesca em Cabo Verde (e no mundo) é o clima mais quente, que provoca também o aquecimento da água. “O clima mudou muito”, nota Mingo. Janeiro era um mês de frio, em que toda a gente se queixava da baixa temperatura, principalmente à noite. Agora não. “Hoje em dia, mês de Janeiro não tem frio”, diz.
Mas é nos meses entre Maio e Setembro, que se nota a maior diferença na pesca e eventuais impactos. Eram meses de muito peixe, “peixe de fundo, peixe de superfície, tinha tudo, e em quantidade. Hoje, há pouco peixe. Pexi sta poku”.
Os efeitos do aumento da temperatura na pesca são reconhecidos. Algumas espécies têm dificuldades em reproduzir em águas mais quentes; o aumento da temperatura pode provocar a morte dos corais, e portanto o desaparecimento do habitat de algumas espécies; a água quente retém menos oxigénio o que afecta todo o ambiente aquático e facilita o crescimento excessivo de algas, que na sua decomposição vão consumir ainda mais oxigénio.
E um outro fenómeno se verifica: a mudança de espécies nas zonas piscatórias.
A alteração da temperatura faz com que “alguns cardumes se desloquem maioritariamente mais para o norte à procura de águas mais frias”, explica o biólogo Tommy Melo.
Em Cabo Verde há um exemplo muito claro. Há alguns anos começou a aparecer nas suas águas uma espécie de cavala que era incomum nestas águas, e vivia mais a sul. Agora, essa cavala é capturada em grande quantidade, mais ainda, por vezes, do que a antes se encontrava no arquipélago. Eventualmente, a cavala “tradicional” está também a migrar para norte. Ainda não há dados científicos que corroborem esta constatação, mas no terreno parece ser isso que está a acontecer.
Defeso
Entretanto, a par do aumento da pesca, todos os pescadores reconhecem que as épocas de defeso, bem como a interdição da pesca de juvenis são boas práticas que devem ser cumpridas.
“Se o peixe não desova, não teremos peixe mais tarde, e se os apanhamos pequenos, não vamos ter peixes grandes”, resumem.
Mas também, todos os eles olham o outro lado: o lado do pescador que fica sem o seu rendimento. E portanto, todos reconhecem que essas regras não são cumpridas.
“O seu pão está lá. Fica-se, então, como que numa luta entre autoridades e pescadores, porque se mexe no seu pão”, observa Mingo. “É preciso fazer uma outra jogada, compensar monetariamente os pescadores, para não apanharem esses peixes”, aconselha.
Também do lado dos ambientalistas, as soluções para melhorar a pesca passam por conseguir implementar certas regras na pesca. “São soluções de gestão, meramente, e não é preciso aqui inventar a roda. Já existem, já são aplicadas há muito tempo em outros países”.
Cabo Verde tem essas soluções escritas em leis e regulamentos mas não na prática: “é preciso ter zonas de descanso, é preciso ter reservas marinhas efectivas e que a fiscalização realmente ocorra”, resume Tommy Melo. Porém, reconhece-se a dificuldade em implementar isso, pois mexe com o “pão”. Assim, recomenda, “o governo tem que procurar alternativas de rendimento para essas famílias que vão ficar sem essa subsistência pelo facto das zonas de pesca que costumavam utili zar terem realmente de repousar para recuperar a fauna que existia”.
Passeios de bote
O peixe tem diminuído e embora ainda vá dando para viver da pesca, tal como muitos outros pescadores, Mingo arranjou, desde 2012, uma forma de aumentar um pouco o rendimento mensal. Um amigo francês, dono de um hotel no Tarrafal, com quem costumava ir para o mar, em lazer, deu-lhe a ideia de fazer alugar o bote para passeios turísticos. Ver a costa, fazer snorkeling ou pescar. No hotel, o amigo, publicitava este serviço e Mingo virou então uma espécie de guia.
No Tarrafal, há hoje 11 botes inscritos para esta actividade de ecoturismo, conforme recorda de uma reunião que tiveram com o Instituto Marítimo Portuário (IMP).
Essa reunião, conta ainda, serviu também como uma espécie de formação sobre as condições de trabalho e os equipamentos que devem ter, nomeadamente primeiros socorros, além dos imprescindíveis coletes. Aliás, não há guia que não se preze da segurança com que transporta os seus turistas, nacionais ou estrangeiros.
E assim vai. Mingo e vários outros vão alternando entre as duas actividades. “Há alturas em que pesca dá mais do que turismo, outras em que o turismo dá mais. Mas, quando a pesca dá, o rendimento é maior. Às vezes, num dia eu faço 40 ou 50 contos e conheço quem faça até, 100 contos num dia”. Mas não é sempre. Assim, uma ajuda a equilibrar a outra.
Nelito Semedo Tavares, mais conhecido como Né, é outro operador turístico do Tarrafal que realiza passeios de bote, com pesca, snorkeling e outras actividades náuticas incluídas, segundo a vontade do cliente. É também, ele que representou Cabo Verde por duas vezes “na travessia de 5 km em Dakar”, nadador-salvador e pescador.
Terá sido dos primeiros filhos do Tarrafal a arranjar um barco para actividades de recreio com turistas. Fê-lo em 2010, quando a concorrência era menor, e a actividade rendia mais, mas continua a alternar esta actividade com as outras a que se dedica e todas elas voltadas para o mar.
Enquanto, também dentro do seu bote, vai falando dos passeios, destaca que para os turistas que gostam de pescar é sempre uma grande alegria quando conseguem apanhar um peixe. Mas seja para o lazer, seja como fonte primária de rendimento, há cada vez menos peixe.
Como uma maré, voltamos à Pesca.
Nelito - Nelito Tavares
“Antes apanhávamos 10 atuns, agora é um, às vezes dois”, conta. Na verdade, a sua experiência é em tudo semelhante à de Mingo. Pouco peixe, mudanças no clima, sobrepesca. Mas também queixas. “Nós, os pescadores estamos um pouco abandonados porque não temos muito apoio. Temos apoio para motor e para o bote, mas precisávamos de apoio a nível das novas tecnologias de pesca”. Como exemplo, fala da necessidade de “material tipo sonda com GPS”. Na verdade, Nelito já tem esse equipamento e com ele consegue capturar mais peixe, mas muitos outros pescadores ainda não têm.
E sente também falta de apoio e formação a nível de sensibilização para as alterações climáticas e seus impactos nomeadamente nas correntes. “Registamos nos últimos tempos, na nossa zona piscatória, que de vez em quando, há uma corrente de água fria e uma corrente de água quente, não é normal. Um dia quente, um dia frio. Um dia com peixe, um dia sem peixe”, aponta.
Ao mesmo tempo, considera ainda haver necessidade mais formação sobre as espécies de peixes: quais são endémicas, quais estão protegidas, que tamanho devem ter. “O pescador deve saber isso tudo, se não soubermos acabamos com o próprio ecossistema marítimo, acabamos com tudo”, observa.
Uma posição que Tommy Melo também reforça. O ambientalista reconhece o potencial enorme de Cabo Verde no turismo, mas, como adverte “estamos a desgastar o ambiente muito mais rápido do que possamos utilizá-lo de forma turística”.
Como exemplo, fala da já referida extracção de areia que acaba com as praias, as impactantes construções nas orlas marinhas, e a sobre pesca que continua sem que a “regulamentação seja realmente imposta”.
“Ou seja, estamos aqui num paralelo em que, se não começarmos a tomar medidas, mesmo o potencial que Cabo Verde possa ter para um desenvolvimento turístico e para atrair turistas, pode-se estar a perder antes mesmo que a gente comece a utilizá-lo”, resume.
Dar o salto
Tudo isto acontece num país em que a Economia Azul, mais do que uma bandeira, é uma necessidade básica para o seu futuro.
Como destaca o Relatório sobre Desenvolvimento e Alterações Climáticas (CCDR), realizado pelo Banco Mundial e recentemente apresentado, salienta que “criar uma economia azul adaptada ao clima está no centro dos planos de desenvolvimento de Cabo Verde”.
Para tal, as suas praia e fauna marinha, são fundamentais para “o turismo e as pescas, pilares da economia”, frisa o documento.
O relatório, que faz uma estimativa do impacto da acção climática no PIB do país, lembra, que o turismo, que gera 25% do PIB e 45% dos empregos no sector formal, enfrenta desafios como o aumento das temperaturas “e o impacto ambiental do desenvolvimento costeiro mal planeado”. As pescas, cujo produto constitui a segunda maior fonte de proteína na alimentação do país, e representaram 72% das exportações em 2021, sofrem com a sobrepesca e a má gestão, prejudicando tanto os rendimentos dos pescadores como o acesso aos produtos do mar. Na pesca, refere-se, é fundamental criar zonas de protecção, regular técnicas de captura e explorar novas formas de produção, como aquacultura e cultivo de algas.
Aliás, com base nas conclusões do CCDR, foi elaborado um conjunto de recomendações em torno de sete objectivos estratégicos, entre os quais está “Desenvolver uma economia azul resiliente ao clima” (turismo, pescas, oceanos). Para tal recomenda-se o apoio à investigação e monitorização dos recursos pesqueiros. Recomenda-se ainda promover a pesca sustentável com regulamentações, zonas de regeneração sem pesca e padrões/certificações para produtos processados, enquanto se aumenta a aquacultura. Ao mesmo tempo, aponta-se como necessário, diversificar o turismo para além de sol e praia, incluindo caminhadas, iatismo, exploração cultural e iniciativas criativas, reduzindo o impacto ambiental e de carbono do sector. E por fim, proteger ecossistemas costeiros e incentivar a adaptação climática no sector privado.
Os dados do relatório são, pois, coincidentes com a percepção empírica de quem tira o sustento do mar, os verdadeiros actores da economia azul.
Porém, a realidade tem chocado com as intenções dos relatórios. Vimo-lo nos testemunhos acima, e também numa experiência particular que Nelito nos conta. Em 2019, o nadador-guia-pecador participou num concurso sobre empreendedorismo azul, promovido pela Pro-Empresa. “Cheguei até à final, em São Vicente”, congratula-se.
Hoje, tem assim um plano de negócio pronto a aplicar, mas um obstáculo tem sido intransponível: falta financiamento. O banco informou-o de que precisa de 20% dos 7 mil contos previstos, para poder desbloquear empréstimo. Outras fontes de financiamento também precisam de garantias que não pode assegurar de momento. Até hoje, não conseguiu avançar.
“Queria ter um barco de pesca desportiva para pode participar nos campeonato de pesca de Blue Marlin, aqui em Cabo Verde, e também pescar com os turistas. Por exemplo, ir com eles até à costa do Maio. Esse é o meu sonho. Espero que um dia possa chegar lá”, conta, com a resiliência própria de quem faz a vida no mar.
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Reportagem realizada no âmbito do projecto Terra África, implementado pela CFI - Agência Francesa de Desenvolvimento dos Media.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1210 de 5 de Fevereiro de 2025.