Antiga directora da escola-piloto do PAIGC diz que a luta de Cabral continua

PorExpresso das Ilhas, Lusa,4 ago 2024 9:55

Lilica Boal foi nomeada directora da escola-piloto em 1969
Lilica Boal foi nomeada directora da escola-piloto em 1969

Lilica Boal sublinha que ainda há trabalho por fazer para o ensino no arquipélago corresponder à história do país.

“Ainda hoje temos trabalho, temos uma preocupação nessa área, de fazer um programa de ensino que corresponda realmente à realidade do nosso país. Em todos os aspectos: geográficos, históricos, tudo isso”, refere, em entrevista à Lusa.

“Cabo Verde, hoje, é muito diferente daquilo que foi, mas ainda há muito a ser feito. Essa luta continua”, acrescenta, numa conversa em casa, na cidade da Praia, a propósito das comemorações do centenário do nascimento de Amílcar Cabral.

O líder das independências nomeou-a directora da escola-piloto, em 1969, qualidade na qual elaborou manuais escolares, numa altura que só havia livros sancionados pelo regime colonial português.

Ainda hoje, aos 90 anos, Lilica Boal recita de cor os rios de Portugal, começando pelo rio Minho, de norte a sul, ou os reis da primeira dinastia, de D. Afonso Henriques em diante, como os aprendeu, na infância.

“Isso, nós sabíamos, mas se calhar muitos não indicavam sequer quantas ilhas tem Cabo Verde” e, como tal, para a luta contra a ditadura portuguesa ter força, esse era um ponto importante a resolver.

A criação da escola-piloto foi decidida no primeiro congresso do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), em 1964 em Cassaca, nas “zonas libertadas” do sul do território guineense.

Servia para acolher os filhos e órfãos de quem estava na frente de combate, assim como para preparar os quadros para o pós-independência.

“Para quê lutar com armas na mão, se não formos capazes de formar” aqueles que vão gerir o futuro, dizia Cabral, palavras recordadas por Lilica.

A escola-piloto funcionou, primeiro (1965), em Conacri, depois em Bissalanca, arredores de Bissau, e hoje continua viva no coração de Lilica e de todos os alunos com que ainda conversa, por telefone ou em reencontros.

Com muitos, ficou uma ligação de grande proximidade.

Laços feitos na sala de aula e à volta de manuais como um, da 2.ª classe, que segura nas mãos e que ajudou a elaborar: intitulado “O Nosso Livro”, tem uma capa de fundo vermelho coberta com o desenho de uma aldeia, numa clareira de uma floresta guineense, com uma família a levar as crianças para a escola, sob um sol radiante e a bandeira do PAIGC.

A elaboração dos próprios manuais da escola foi uma das grandes tarefas em que esteve envolvida.

Rumou ao Senegal, para aprender com a experiência pós-independência daquele país e depois para a Suécia, cujo apoio à luta de libertação incluiu a impressão dos manuais escolares.

O livro da 2.ª classe que hoje reabre comprova-o: na ficha técnica está indicado que é uma edição de 1970, do PAIGC, primeira edição com 25.000 exemplares, impresso em Uppsala, Suécia.

Mas a evolução dos manuais escolares desiludiu-a.

“Foi uma das grandes decepções. Dá-se o golpe de Estado [de 1980], vim para Cabo Verde e fui nomeada directora-geral da Educação. Mas, uma coisa que me chocava eram os manuais: não era fácil introduzir mudanças”.

O facto de boa parte do material produzido falar da Guiné-Bissau não ajudava.

Questionada sobre se faltam figuras históricas, Lilica Boal diz que sim, mas também poemas e músicas que “reclamavam da situação de miséria, das necessidades” de alimentação, saúde e educação que o povo tinha e que eram desprezadas.

“Na escola-piloto, aprendi mais do que em todas as universidades por onde passei”, diz, recordando a “fuga para a luta” que a levou para um projecto de que ainda hoje fala com alegria rasgada: “quando começo a falar da escola-piloto já não paro”.

“Foi a melhor escola da minha vida”, diz, apesar de os tempos pós-independência terem sido difíceis para quem sonhava com um novo projecto educativo.

“Nos chegámos e havia problemas no país, problemas económicos, de saúde, de alimentação. Eram essas as prioridades. Quando vemos uma criança com fome, não lhe damos um manual escolar ou um poema para recitar”, descreve.

Cabral promovia igualdade de género, mas sempre houve resistência

“Quando viemos para aqui [Cabo Verde] começámos a trabalhar na alfabetização”, conta a antiga directora da escola-piloto do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Após o golpe de Estado de 1980, em Bissau, que pôs fim ao projecto de união dos dois países, Lilica Boal regressa às ilhas onde nasceu (Tarrafal de Santiago, 1934), continuando a trabalhar no sector público da educação.

As desigualdades de género estavam presentes, assim como o analfabetismo.

“Quando organizávamos reuniões com as mulheres, os maridos reclamavam: agora na hora de se fazer o jantar é que a Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV) se lembra de vir alfabetizar”, questionavam.

Uma recordação hoje acompanhada com uma gargalhada, mas que serve para ilustrar a resistência à igualdade de género – mesmo depois de o líder das independências pregar que a luta de libertação face à ditadura colonial portuguesa também dependia das mulheres.

“Não era comum, mas ele [Cabral] já tinha na cabeça o problema do género”, refere Lilica, como quem vai descrevendo os traços marcantes de uma personalidade que ela própria foi descobrindo.

“Não era um homem qualquer” e isso percebia-se “logo na maneira de falar”.

Mesmo que lentamente, a igualdade de género tem progredido, mas a antiga directora da escola-piloto tem uma opinião: “Acho que podemos [mulheres] fazer muito mais ao nível da base do que estando lá em cima”, em cargos de maior poder e aponta para aquele trabalho de base, de alfabetização, como exemplo.

Lilica Boal enfrentou as desigualdades, de género e não só, desde cedo.

Ainda era criança, no Tarrafal, quando lhe ficaram gravadas na memória as imagens duras da fome no norte da ilha de Santiago.

“Estávamos à mesa e estava um miúdo à porta, com uma casca de coco, a pedir comida. Para mim, era duro ver uma criança da minha idade naquela situação. Isto foi muito importante no percurso da minha vida, marcou-me profundamente”, relata, recordando a casa dos pais, comerciantes, célebres pelo apoio à comunidade e aos presos políticos do campo de concentração do Tarrafal.

As imagens da infância encaixaram-se no resto do percurso que a levou à Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, como uma força que, em 1961, a fez virar costas a uma vida universitária, em Portugal, para arriscar a vida com um grupo em fuga (clandestina) para a luta de libertação – relatada e documentada na Internet.

Hoje, perante as comemorações do centenário de Cabral, Lilica Boal mostra-se optimista quanto à preservação do legado histórico, apesar de achar que as actividades que têm decorrido mereciam mais relevo: “fazemos muito, mas ainda estamos longe”.

“Chamam-nos para ir falar sobre a luta aos liceus, falar sobre Cabral. Portanto, há uma vontade. Começa a haver mais interesse em conhecer o passado”, refere à Lusa.

A antiga directora e professora da escola-piloto do PAIGC enaltece sobretudo as actividades nas ruas, sempre que há motivos para o povo sair, porque “é aí que [a população] mostra o seu descontentamento”.

“Não é ao sentar-se na assembleia [parlamento] a ouvir o discurso deste ou daquele partido, do que fez um ou o outro. Não é essa guerra [política] que interessa, mas é o povo na rua, a cantar, saltar ou a mostrar que tem isto ou aquilo”, conclui.

Amílcar Cabral celebraria 100 anos a 12 de Setembro de 2024, decorrendo actividades em diferentes países para assinalar a efeméride.

Em Cabo Verde, várias comemorações estão associadas à Fundação Amílcar Cabral e incluem um colóquio internacional sobre o líder histórico, a realizar em Setembro.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,4 ago 2024 9:55

Editado porJorge Montezinho  em  22 nov 2024 23:26

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