Iva Cabral recorda líder anticolonialista: “reservava-me para ser filha, só”, sem política

PorExpresso das Ilhas, Lusa,9 jun 2024 9:35

"Comecei a ler Cabral depois da morte dele. Para mim, era meu pai, mais nada"
"Comecei a ler Cabral depois da morte dele. Para mim, era meu pai, mais nada"

Iva, filha mais velha de Amílcar Cabral, não se lembra de receber aulas de política do pai e só se apercebeu da sua importância após o assassinato, em 1973, quando tinha 19 anos

“Ele cantava muito bem, para mim, desde pequenina”, música brasileira e cabo-verdiana, recordou, aos 71 anos, na sua casa na cidade da Praia, Cabo Verde, numa entrevista à Lusa a propósito do ano do centenário do líder anticolonialista.

Seriam cantigas com mensagens? “Não, não eram músicas políticas. Eu acho que ele nunca me deu aulas de política. Eu acho que ele reservava-me para ser filha, só”, disse, acrescentando mais à frente: “Eu acho que ele deu tudo para a luta e queria ficar com alguma coisa só dele”.

“Foi comigo que ele passou a maior parte do tempo, apesar de eu ter ido estudar para um internato muito cedo. Mas ia todas as férias ficar com ele”, em Conacri, base do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

Era nesses momentos que Iva se apercebia dos sinais de reverência em relação ao pai, mas, disse, nunca teve “muita noção da importância dele”.

“Pode acreditar. Eu comecei a ler Cabral depois da morte dele. Para mim, era meu pai, mais nada. Vi que ele tinha importância: faziam-lhe continência quando eu ia lá, a Conacry. Depois estudei na União Soviética e tratavam-no com grande admiração”, recordou.

O sentimento de culpa submergiu-a, por achar que nunca deu “o valor que devia ter dado” ao pai.

“Mas acho que ele não queria. Era mesmo isso. Ele queria-me só como filha” e, ao mesmo tempo, "proteger-me".

A morte de Amílcar Cabral teve um impacto marcante: “larguei os estudos, entreguei-me à militância durante uns tempos. Tive graves depressões”, contou, revendo uma vida repleta de momentos marcantes.

Nesse filme de memórias, pontifica um Amílcar Cabral “gentil e atento”.

“Por exemplo, quando íamos a um restaurante, se havia flores na mesa, ele tirava uma e dava às moças que serviam. Caíam todas”, relatou, entre gargalhadas.

Afinal, o líder das independências “não era assim nenhum bonitão”, mas tinha um trato que sobressaía.

“Ele achava as mulheres senegalesas muito bonitas e dizia-me que, se não fosse a preocupação com a luta, ele viveria em Dacar. Ele tinha esse lado humano muito forte e, por isso, também publiquei as cartas dele para a minha mãe, porque mostra esse lado, de certa forma, romântico”.

O livro “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a Outra Face do Homem” foi lançado em 2016, juntando 53 cartas escritas à primeira mulher e mãe de Iva – união de que nasceu também Ana Luísa, irmã do meio, em 1962.

Da relação de Cabral com a segunda mulher, Ana Maria, nasceria Indira Cabral, em 1969, a irmã mais nova de Iva e com qual tem lutado para que o local dos restos mortais do pai seja de acesso público.

O líder das independências repousa num mausoléu dentro do perímetro do quartel da Amura, em Bissau, e por diversas vezes tem havido impedimentos para a realização de cerimónias evocativas de datas históricas, no local.

Iva considerou importante que os restos mortais estejam “num espaço onde qualquer um possa entrar, levar as suas flores, onde as crianças possam brincar” – ou transformando o local actual ou mudando os restos mortais.

“Espero que não haja necessidade de pôr o Governo da Guiné-Bissau em tribunal, mas, nunca se sabe. Se for necessário, faremos isso”, concluiu.

Mundo precisa voltar a estudar ciências sociais e ler Cabral

O mundo precisa de voltar a estudar História e Filosofia para evitar erros passados e ler Amílcar Cabral, disse Iva. “Não é só em Cabo Verde, é no mundo. Pôs-se a História de lado e agora a História está a dar-nos bofetadas e a mostrar que é fundamental conhecê-la para não cometer os mesmos erros”, referiu a historiadora.

Quais erros? “É só abrir a rádio e uma pessoa fica na Segunda Guerra Mundial, às vezes, até na Primeira”, responde, face à guerra na Ucrânia, à prevalência de Trump nos Estados Unidos depois de condenado, a Macron “que se acha Napoleão” ou à ofensiva de Israel em resposta ao Hamas.

“Sinto vergonha de ser humana quando deixamos uma coisa dessas acontecer e ninguém diz nada”, acrescentou, face ao número de mortes e vítimas na Faixa de Gaza.

“Estamos numa situação em que a História está a mostrar que existe e que é séria”, depois de “há uns 20 anos” o ensino ter mudado.

“O ensino das ciências sociais quase desapareceu. O que é que nós damos? Informática, gestão, economia. [Ciências] humanísticas estão postas de parte”, disse Iva Cabral, que já foi reitora em Cabo Verde.

As novas áreas de formação “dão dinheiro”, mas não são tão férteis a dar ideias, pelo menos não como História ou Filosofia, disciplinas que acha que fazem muita falta aos políticos.

“Uma pessoa olha para o nível dos chefes da União Europeia e dá vontade de chorar. Já não falo de África, porque estamos mais ou menos acostumados. Não sei como é que chegámos ao ponto de ter governantes tão medíocres” a nível global.

“Cada um é pior que o outro. Onde estão Miterrand, Giscard [D’Estaign] ou Mário Soares, onde estão eles?”, questionou, evocando antigos estadistas franceses e de Portugal e apontando para um vazio de exemplos, “muito por causa do ensino que houve. Tenho a certeza, é muito por causa do ensino. Se for ver, esses meninos todos que estão a governar-nos, de onde é que eles saíram? Falta cultura. Faltam ciências sociais”.

Para Iva, este não é um problema de ideologias, não tem a ver com estar à esquerda ou à direita, “mas com conhecimento”, com consciência da “dignidade humana, sabendo o que é”.

Espera que não haja uma guerra mundial, mas acredita que o mundo tem um caminho difícil pela frente, até melhorar: “Tenho esperança que o meu neto nasça já num ambiente menos belicoso e menos horroroso”.

Neste contexto, a obra de Cabral pode ser utilizada “para pôr um pouco de seriedade nas coisas. Ele é muito actual”, disse.

“Pensar com as nossas cabeças” é um dos seus princípios mais citados – de especial significado anticolonial – e que Iva destaca a par de outra ideia: “Unidade e luta. Acho fundamental, principalmente na Guiné-Bissau”, onde nasceu e que ainda procura estabilidade política e desenvolvimento, 51 anos após a independência.

“A realidade é que, quanto mais se estuda, mais se encontra” e o reconhecimento global de Amílcar Cabral prova a pertinência da sua acção, que deixou registada – como nas comunicações do seminário de quadros de 1969, em Conacry (onde o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, PAIGC, tinha base), escritos publicados pela Fundação Amílcar Cabral.

“E há acções em Portugal e noutros países que me orgulham muito”.

“Gostaria que houvesse mais apoio dos Estados para que os currículos escolares em Cabo Verde e na Guiné-Bissau falassem de Cabral, da luta de libertação e dos antigos combatentes com mais amplitude”, referiu, reiterando uma sugestão que já faz há muitos anos.

Só que os Governos passam e nada muda, lamentou, sendo que “há formas de falar sobre isso de maneira a que as crianças compreendam. As ditas grandes nações começam a falar dos seus heróis muito cedo”.

Esquecê-los chega a ser perigoso, disse, porque é o conhecimento da História que permite construir o futuro.

Amílcar Cabral celebraria 100 anos a 12 de Setembro de 2024, decorrendo actividades em diferentes países para assinalar a efeméride.

Em Cabo Verde, várias comemorações estão associadas à Fundação Amílcar Cabral, cujo papel Iva Cabral destaca como dinamizadora de um trabalho admirável, que inclui um colóquio internacional sobre o líder histórico, a realizar em Setembro, como ponto alto do programa.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,9 jun 2024 9:35

Editado porJorge Montezinho  em  7 set 2024 23:25

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