Amílcar Cabral nasceu há 100 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.
“O sistema de ensino foi a principal vítima dos 15 anos do Partido Unido em Cabo Verde”, diz ao Expresso das Ilhas Daniel dos Santos. “Por isso, é natural que as academias, a elite nova e pensante, escreva num tom panegírico. Isto só mostra a qualidade das elites que temos”.
“O sistema de ensino daquele tempo ainda vigora no nosso sistema de ensino”, continua o professor universitário. “Não se fala da democracia, mas fala-se da independência, dos heróis da independência. Os heróis da democracia são, pura e simplesmente, marginalizados e ignorados pela historiografia cabo-verdiana da actualidade. Eu acho que se deve discutir Cabral, se deve celebrar Cabral, mas sem colocá-lo no patamar que ele não tem”.
A academia engajada
Entre 1963 e 2020 foram publicados 450 trabalhos científicos sobre Cabral – do Egipto à Suécia, da Austrália ao Japão. E em Cabo Verde?
“Em Cabo Verde, praticamente, não existem. Eu não os conheço”, assegura Daniel dos Santos. “O que há são pequenos artigos publicados, aqui e ali, em revistas, mas em revistas da Fundação Amílcar Cabral, da Uni-CV, mais nada. A forma como se fazem esses trabalhos pode não atrair muitos investigadores. Quando um investigador estrangeiro vem a Cabo Verde, por exemplo, dá-se-lhe balizas: contacta esta pessoa, não contactes estes. Não é esta a perspectiva de isenção que se quer ao abordar estudos sobre Amílcar Cabral”.
Esta idolatria da academia sobre a figura, segundo o politólogo, retira discernimento, distanciamento e, acima de tudo, credibilidade científica. “Quando leio artigos de académicos, de historiadores, que passam por cima de acontecimentos que não abonam a favor de Amílcar Cabral, ignoram-nos pura e simplesmente. Quem perde é a ciência. Quem perde é a história. Mas insistem porque são assalariados da Fundação Amílcar Cabral”.
“Toda a gente conhece esses investigadores. São pagos, têm bolsas. Se não são bolsas da Fundação Amílcar Cabral, são de outras organizações. Dinheiro não lhes falta”, refere.
“As universidades devem demarcar-se das orientações que recebem dos políticos, da Fundação Amílcar Cabral e do próprio PAICV, para, de vez, abraçarem uma investigação séria que retrate Amílcar Cabral tal como ele é. Um homem com virtudes, sim, com defeitos, sim, sem o maltratar e colocando-o no lugar da história que ele conquistou por mérito próprio e com a própria vida. Não é fazendo propaganda panegírica e canonizando-o por todos os lados e em todos os sítios que se resolve esse problema”.
“Em Cabo Verde não se estuda Cabral de uma forma séria, independente e imparcial. A ideologia que sustenta o mito continua bem viva e influente” - Daniel dos Santos
A ideologia cabralista
É quando se quer contextualizar Amílcar Cabral que, entende Daniel dos Santos, começam as dificuldades. As ideias de Cabral não são aplicáveis actualmente em Cabo Verde e segundo o académico, pouco ou nada se aproveita do pensamento de Amílcar Cabral. “O regime político que foi implantado em Cabo Verde no período pós-colonial, é um regime que saiu da cabeça de Amílcar Cabral. E basta lermos a última mensagem que ele endereçou aos povos da Guiné e de Cabo Verde, em que ele desenhava um esboço do Estado a implantar em Cabo Verde e na Guiné com a independência: um regime de partido único, à frente do qual deveriam estar os melhores filhos da Guiné e de Cabo Verde. Uma ditadura”.
“Cabral tinha um projeto libertador? Certo! Mas para libertar o quê? Para libertar quem? Cabo Verde não foi libertado pela Guerra da Independência na Guiné. Quem libertou Cabo Verde foi o Movimento dos Capitães de Abril. Isto é indiscutível. Só que depois entregaram Cabo Verde ao PAIGC que instituiu um regime da mesma igualha que o Estado Novo”, afirma o docente universitário.
“O PAIGC limitou-se a substituir um partido único português por um partido único autóctone. Sei que isto é o que muita gente não quer ouvir, não quer mostrar, mas é verdade. Não estou a inventar rigorosamente nada”.
“Hoje, Cabo Verde é um país que está nos antípodas do pensamento político de Amílcar Cabral. É um país democrático, que não tem nada a ver com o regime político pensado por Amílcar Cabral”, reitera Daniel dos Santos.
A luta começa
A insurreição armada nos PALOP inicia-se em Angola, em 1961, com a formação de três movimentos de libertação – FNLA, MPLA e UNITA –, estende-se à Guiné-Bissau com o PAIGC e a Moçambique com a FRELIMO.
A estas insurreições armadas, Salazar respondeu com a deslocação de milhares de soldados para as colónias, o que provocou o isolamento português a nível internacional e uma crescente oposição interna contra a guerra colonial, que vem culminar com a queda da ditadura no dia 25 de Abril de 1974.
Amílcar Cabral explicou a ideologia que o guiava a um grupo de intelectuais, em Londres, em 1971: “nós acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. (...) Partir das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a luta não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lenine, ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta. Confesso que não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Nós não os conhecíamos nem metade do que os conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a sua experiência para ajudar a nossa situação – mas não necessariamente para aplicar a ideologia cegamente, só porque ela é uma ideologia muito boa. Este é o nosso ponto de vista. Mas a ideologia é importante na Guiné. (...) Não queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar a isso marxismo, chame-se marxismo”.
Um humanista radical? Não!
Recentemente, Portugal tem sido o país de onde parte a maior parte da efabulação à volta de Amílcar Cabral: quando um colóquio de académicos que decorreu em Lisboa, no ano passado, recuperou os obituários dos jornais internacionais após o assassinato, os adjectivos sucederam-se – o pacifista que teve de pegar em armas, o rebelde gentil, o diplomata combatente, o guerrilheiro moderado. Segundo Daniel dos Santos, estão aqui vários exemplos do branqueamento da imagem do antigo líder do PAIGC.
“Amílcar Cabral pacifista? Não foi. Humanista? Não foi. Obrigado a responder à violência colonialista com a violência revolucionária? Não foi”, sublinha o politólogo. “Acho que a melhor via para Amílcar Cabral sobreviver, inclusive ao próprio partido que fundou, era ter apostado na diplomacia, na propaganda, para lutar contra o colonialismo português na Guiné. Houve guineenses, como Eliseu Turpin, uma das figuras importantes do nacionalismo guineense, e um dos putativos seis fundadores do PAIGC em 56, que nunca quis ir a Conakry participar na luta armada. O Rafael Barbosa também não foi. São pessoas que não acreditaram na via armada para a libertação da Guiné”.
“Cabral é um pequeno burguês revolucionário, que apostou na violência como resposta ao regime colonial, porque o colonialismo é em si um estado de violência permanente. Mas mesmo depois da morte de Cabral violência não acabou na Guiné”, diz Daniel dos Santos.
“Amílcar Cabral tinha um discurso violento. Quando Lumumba foi assassinado, Amílcar Cabral escreveu um texto [pode ser consultado na página da Fundação Mário Soares – www.casacomum.org]. Em que ele escrevia que era um traidor e que merecia ser morto todo o guineense ou cabo-verdiano que dissesse que era português”, reforça o professor universitário.
“Veja-se também as séries de execuções que se registaram na Guiné. A cultura de fuzilamento que o próprio Cabral introduziu no PAIGC, como técnica de resolver problemas políticos. Portanto, acho que podemos apresentar Cabral, como um combatente anti-imperialista, um anticolonialista, um diplomata exímio, um grande propagandista, mas não um pacifista”, afirma o académico.
Guiné vs Cabo Verde
Idolatrado em Cabo Verde, quase esquecido na Guiné-Bissau, onde a fotografia saiu das notas e o nome abandonou a toponímia. Para visitar o mausoléu, na fortaleza José de Amura, em Bissau, é preciso pedir autorização aos militares.
“Em Cabo Verde, a aura do Amílcar Cabral ficou. Nas escolas primárias, nas escolas secundárias, na comunicação social”, explica Daniel dos Santos. “Mas, Amílcar Cabral não é uma figura do Estado, é uma figura partidária. A Fundação Amílcar Cabral e o PAICV têm muita dificuldade em lidar com essa verdade”.
“Os efeitos da acção do PAIGC e de Amílcar Cabral na Guiné foram mais no âmbito militar do que político. Em Cabo Verde são meramente políticos. A população não sofreu tanto fisicamente como sofreu na Guiné. Isto acaba por explicar alguma coisa que seja muito diferente do caso da Guiné e do caso do Cabo Verde. São processos históricos completamente diferentes”.
“Em Cabo Verde não houve violência, não houve luta armada. Na Guiné houve”, continua o professor universitário. “Quais são os efeitos desta guerra na consciência do guineense? E os das atrocidades que o PAIGC cometeu? De 1974 a 1980, cerca de 500 guineenses foram torturados e assassinados a sangue frio, sem julgamento”.
“Mesmo em Cabo Verde”, diz o politólogo, “sou professor, lido com os jovens. Os jovens não querem saber do Amílcar Cabral. Os jovens querem ver os seus problemas resolvidos. Sim, dizem que é um herói. Mas isso é mais o resultado da grande intensidade propagandista que foi levada a cabo nas escolas”.
“Amílcar Cabral é uma figura a respeitar, mas não é com a dimensão que se fala”, conclui Daniel dos Santos. “No fim, Amílcar Cabral não passa de um homem, de um político, que foi amado e que foi odiado”.