“Às vezes chateava-se com os procedimentos de alguns camaradas. Enraivecido, é que não. O segredo é que ele sabia falar com as pessoas”, recorda o combatente, que fez parte do secretariado do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), em Conacri.
“Ele exigia que todos tivessem um comportamento condigno” e “não gostava quando se metiam em bebida”, aponta, como exemplo, numa entrevista à Lusa a propósito do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, que se assinala este ano (a 12 de setembro).
Alcides ‘Batcha’, alcunha pela qual é conhecido, lembra-se que o líder tão depressa estava na frente de guerra, nas zonas libertadas do sul da Guiné, a levantar combatentes dos abrigos, sob chuva, como explanava a luta a diplomatas, no secretariado.
“Nas fileiras da luta havia diferentes níveis de escolarização e não só: havia formas muito diferentes de pensar. Se juntarmos isso tudo, vemos que não foi tarefa fácil” dar corpo a uma união baseada na sede de liberdade de povos diferentes.
Amílcar dizia: “o povo português é uma coisa, o regime é outra: quem está em Portugal está a ser prejudicado como nós”, recorda Alcides Évora, para ilustrar a clarividência do pai das independências.
A caminho dos 84 anos, nascido na Praia, ‘Batcha’ chegou à tropa, na ilha de São Vicente, durante o regime colonial e era quem fazia os mapas de pessoal do comando conjunto da Guiné e Cabo Verde.
“Está a ver que mesmo na organização militar portuguesa já havia um comando conjunto Guiné/Cabo Verde”, realça, apesar de achar que, depois de alcançadas as independências, os dois países tinham de seguir caminhos diferentes – como seguiram, embora com percursos muito distintos.
Alcides Évora foi diretor de protocolo de Luís Cabral, primeiro Presidente da Guiné-Bissau, até abril de 1975.
“Fiz parte do leque de jovens que tinha aquela ideia de libertação. Ver a Guiné-Bissau, no ponto em que está, até dá para chorar”, refere, numa alusão ao subdesenvolvimento e instabilidade política crónica.
“Imagine só o Presidente que esse país tem”, refere, numa crítica à gestão política de Umaro Sissoco Embaló. “O país precisava de outro Presidente, capaz de pensar, andar com os seus próprios pés, porque a Guiné tem recursos” para estar mais desenvolvida, acrescenta.
Alcides integrou a luta de libertação pela mão do comandante Pedro Pires, que viria a assinar o acordo de independência de Cabo Verde com Portugal e, nas décadas seguintes, ascender a primeiro-ministro e Presidente do arquipélago.
‘Batcha’ esteve emigrado em França durante pouco mais de um ano, viajou para a Argélia e, passados uns meses, seguiu para treino militar em Cuba, entre 1965-67, integrando um grupo de 33 guerrilheiros que devia desembarcar nas ilhas de Santo Antão e Santiago para abrir duas frentes de luta.
Mas o plano mudou e levou-os para o combate na Madina do Boé, interior da então Guiné portuguesa, entre 1968/69.
Para ‘Batcha’, seria um período efémero: tratamentos de saúde levaram-no até Conacri onde Amilcar lhe atribuiu funções no secretariado, ficando responsável por tratar de viagens, documentação e logística.
O secretariado era como o cérebro das operações, centrado numa sala que Alcides Évora reconstrói de memória: “Amílcar estava num canto, assim”, assinala, com os braços, como quem coloca as mesas no sítio.
Lá estava Ariete, secretária de Amílcar, depois “havia o Fidelis, estava eu e o Sanca. Do outro lado, estava Aristides Pereira”, que após o assassínio de Cabral havia de assumir a liderança do PAIGC, antes de ser o primeiro Presidente de Cabo Verde.
Num mundo sem Internet, com informação a circular em cartas e mensagens via rádio com as frentes de combate, o secretariado era um espaço aberto, por onde passavam os operativos da luta, assim como embaixadores e outros representantes de organizações internacionais.
Se Cabral quisesse secretismo, “tinha de ir para outro lugar ou para casa”, que estava paredes meias com o secretariado.
“Amílcar nunca esteve agarrado ao partido, como muita gente pensa que esteve. A ideia dele era muito mais abrangente”, realça Alcides, descrevendo-o como “um combatente de África”, acima do PAIGC e de qualquer partido ou movimento.
É por causa desse caráter universal que Alcides Évora considera importantes as comemorações do centenário do nascimento de Cabral, classificando como uma obrigação “dar visibilidade a essa data”.
“Todos têm obrigação de fazer alguma coisa por Amílcar Cabral. É uma figura viva e ainda há tempo de deitar mãos à obra para dar continuidade” ao seu pensamento, porque a “luta [pela liberdade] é uma luta contínua: se parar, desaparece”.
“Tem de haver alguém capaz de dar continuidade” ao legado do líder das independências.
“É por isso que temos de despertar o espírito da juventude”, conclui, antes de ser interpelado por turistas que visitam a sede da Fundação Amílcar Cabral.
Na exposição permanente estão as fotos do secretariado e ‘Batcha’ é a memória viva da história com quem procuram tirar uma ‘selfie’: O combatente aponta para as fotos, para mostrar onde estava naquela altura e sorri para a foto.
E mais um pouco daqueles tempos de luta fica para a posteridade.