Cabo Verde sem registo de pesca INN, mas realidade pode ser diferente

Dados oficiais não mostram casos de pesca à margem da lei, mas insuficiente fiscalização, pouca informação e inconsistência institucional levam peritos a defender que números não reflectem realidade.

A pesca ilegal, não declarada e não regulamentada, designada de INN, transformou-se num dos maiores desafios para a preservação dos oceanos e segurança alimentar a nível mundial. Cabo Verde tem nos recursos pesqueiros um dos seus mais importantes activos.

Dados da Inspecção Geral das Pescas (IGP), revelados em primeira mão ao Expresso das Ilhas e Rádio Morabeza, não mostram ocorrências de pesca INN no país. Porém, dizem os especialistas, vários factores contribuem para que existam dúvidas sobre a fiabilidade e precisão daquilo que é apresentado.

No âmbito dos acordos e contratos estabelecidos pelo Estado de Cabo Verde, 56 navios de pesca da União Europeia (UE), 10 senegaleses e 35 navios da empresa Japantuna estão autorizados a pescar nas águas cabo-verdianas para lá das 12 ou 18 milhas náuticas.

De 2021 até Junho deste ano foram monitorizados 1.580 navios estrangeiros através do centro de controlo, Cosmar, sem ocorrências relevantes. Todas as suspeitas que desencadearam averiguação e contacto não provaram qualquer infracção. Também não foram notadas infracções dignas de registo durante as missões de fiscalização conjunta da Zona Económica Exclusiva (ZEE) com países parceiros.

O Director Nacional da Aquacultura e Pesca (DNPA), Carlos Monteiro, acredita que o país tem a situação controlada.

“Em relação à pesca INN, podemos dizer que estamos numa situação ainda controlada. Estamos numa zona, oeste-africana, que sabemos que é uma zona crítica, há informação de ocorrência de situações de pesca INN, mas de todo o modo, pelas nossas autoridades e pelo acompanhamento que fazemos a nível da nossa ZEE (…), não temos tido situações alarmantes”, revela.

Mesmo assim, o responsável admite ser fundamental reforçar meios de fiscalização e investir na monitorização e controlo das actividades de pesca.

“Precisamos reforçar os meios da fiscalização, os meios técnicos e os meios operativos. Já estamos num patamar, que eu diria bom, mas é preciso sempre fazer mais, é preciso colher experiências de outros países. Temos parcerias com Portugal, com Espanha e com os Estados Unidos, no sentido de fazermos patrulhas (…). O problema que se põe a nível de Cabo Verde é a sua situação geográfica convidativa, no meio do Atlântico, numa rota América, Europa e África. É uma zona muito apelativa aos prevaricadores. Nós estamos nas organizações que regulam as pescas, nomeadamente, seguimos as orientações da FAO. Assinámos o protocolo que adere ao Estado do Porto, que é, sobretudo, o reforço das capacidades de fiscalização e monitorização”, observa.

São muitas as variáveis em jogo. A ZEE de Cabo Verde tem quase 800 mil quilómetros quadrados, mas são apenas 20 os inspectores oficiais de pesca.

O número limitado de missões a áreas críticas, assumido pelas autoridades, reflecte a falta de recursos, incluindo a quase total ausência de barcos patrulha e inexistentes meios aéreos. O Guardião, principal navio de Guarda Costeira, o único capaz de atingir áreas mais remotas da ZEE, está inoperacional há vários anos.

Perante este cenário, a fiscalização oceânica é feita esporadicamente, à boleia de missões internacionais. Uma das mais recentes envolveu a Marinha Portuguesa e o NRP Viana do Castelo, ao abrigo da iniciativa Mar Aberto 2024. Em Agosto, numa escala no Porto Grande, em São Vicente, o comandante do navio, capitão-de-fragata Ricardo José Sá Granja, recebeu o Expresso das Ilhas e Rádio Morabeza a bordo e destacou a importância das parcerias multilaterais no combate à pesca ilegal.

“Quando falamos de pesca ilegal, não olhamos para fronteiras, porque muitas das espécies que são pescadas de forma ilegal são migratórias. Acho que tem de haver uma acção conjunta de todos os Estados, para combater a pesca ilegal. Nesse sentido, também estamos aqui a colaborar nestas latitudes, para haver uma maior fiscalização das actividades de pesca e tentar detectar tudo o que seja pesca ilegal, tentar que não aconteça”, comentou.

Junto à costa, onde as exigências técnicas são menores, a Guarda Costeira – que não conseguimos ouvir para esta reportagem – trabalha em parceria com a Polícia Nacional e outras instituições públicas.

Zona Quente

Situado no golfo da Guiné, Cabo Verde está localizado numa área considerada por agências internacionais como “zona quente” para práticas ilícitas.

O presidente da Associação dos Armadores de Pesca, Susano Vicente, entende que o arquipélago não tem controlo sobre a sua extensa ZEE.

“Primeiro, porque as autoridades nacionais têm uma grande lacuna [de meios], não temos controlo sobre a nossa ZEE, mesmo que possamos saber o que lá se passa, não temos meios navais para poder, em tempo útil, fazer qualquer abordagem em caso de indícios de infracções. O nosso maior activo a nível da fiscalização é o Guardião, que está inoperacional há muito tempo. Se o Estado investisse na armação nacional, para que pudessem laborar na ZEE, o próprio país teria os seus navios de pesca lá e, de certa forma, fariam essa fiscalização. Não há interesse que o armador nacional tenha acesso à ZEE, porque se for, vai testemunhar muita coisa”, considera.

Tommy Melo, presidente da associação ambientalista Biosfera, diz o óbvio: sem meios para uma fiscalização constante e abrangente, ninguém pode ter certezas sobre a situação de Cabo Verde perante a pesca INN.

“Nós temos um sistema de radar muito bom, é verdade. Só que o sistema de radar não chega. Temos países vizinhos que também têm esses sistemas de radar, têm frota de guarda-costeira e etc., e não estão a conseguir pôr cobro à situação. Cabo Verde continua a insistir que não temos esse problema. Ou realmente não conseguimos ver, ou não queremos demonstrar, ou então Cabo Verde já fez acordos de pesca com toda a gente e, portanto, ninguém é ilegal, toda a gente é bem-vinda. Portanto, não se sabe realmente em que pé estamos”, sintectiza.

A actividade no mar é difícil de monitorizar e supervisionar, o que dificulta a aplicação de leis e regulamentos. Sem meios próprios para patrulhas oceânicas regulares, Cabo Verde poderia jogar as fichas na recolha de dados nos portos, no momento do desembarque ou transbordo. Uma opção low cost, que não substitui a fiscalização oceânica, mas que permitiria algum nível de controlo. Porém, também a esse nível, os dados são escassos.

O DNPA, Carlos Monteiro, desvaloriza este facto e garante que os dados mais relevantes estão disponíveis.

“Os dados com a Japantuna fazem parte de vários relatórios e estão disponíveis. Os dados do Senegal não têm merecido o mesmo tratamento, porque também o peso dessas informações não é muito significante [sic], não é uma informação que faz diferença. Aqui o mais importante são os dois acordos mais importantes, que é com a UE e com o Japão. Esses sim, têm alguma significância [sic]”, diz.

As estatísticas sobre capturas e desembarque de navios europeus são públicos, mas pouco detalhados. Quando tentamos perceber que espécies são descarregadas nos nossos portos pela frota comunitária, constatamos que mais de 80% dos desembarques são declarados na categoria “outras espécies”.

Mas a equação não termina aqui. Sabe-se que mais de um terço das capturas mundiais é rejeitada devido às dimensões inadequadas do peixe ou por capturas não intencionais. Mais uma vez, Cabo Verde não tem dados de descarte nas águas sob sua jurisdição.

Pelo que vai vendo e ouvindo, o presidente da Associação dos Armadores de Pesca, Suzano Vicente, acredita na existência de altos níveis de rejeição em alto mar.

“Sempre tivemos relatos de navios a pescar naquela zona [Banco da Nova Holanda] durante a noite e as coisas não mudaram ao longo dos anos. Se lá estivéssemos, seriam grandes denúncias. Digo isto porque ouvimos de pescadores que trabalham nas embarcações [estrangeiras] que vão lá pescar. As informações são tristes, é triste quando relatam que apanharam uma rede de ‘catchorinha’ – que não é a sua espécie alvo – tiram a espécie que que lhes interessa e depois é largada morta no mar”, relata.

Especificidades

O consultor internacional para a área das pescas, Aníbal Medina, avisa que Cabo Verde deve olhar para as suas especificidades. A inconsistência institucional exige atenção.

“Temos uma ZEE muito grande, muito extensa e, portanto, o exercício é ter de fiscalizar toda essa área. Em Cabo Verde não temos adoptado as estratégias necessárias. Temos ido um pouco ao sabor daquilo que fazem os outros, não temos olhado para as nossas especificidades. Há um esforço grande que se começou a fazer em 2010, 2011, mas um dos problemas em Cabo Verde é o tecido institucional. Temos um tecido institucional que é fraco em quase todos os sectores, não tem consistência e, portanto, há lacunas em todos os lados, o que dificulta que se tomem decisões com impactos sustentáveis no tempo”, lamenta.

A falta de meios explica muita coisa, mas não explica tudo. Não há uma estratégia clara para o sector das pescas, considera Aníbal Medina.

“Estamos a perder em termos de eficiência, em termos de eficácia, e a performance fica aquém do desejado. Por isso é que falei do tecido institucional, que é fraco, fraquíssimo, aqui em Cabo Verde. Portanto, fazem-se avanços e recuos e vai-se perdendo. Nessas reformas e contra-reformas existem pedaços que ficam soltos, não têm nenhuma função. Esta parte institucional é tão importante, que eu penso que é a parte fundamental”, avalia.

O artigo 54º da Lei Geral das Pescas determina a publicação regular de todas as informações sobre licenças emitidas para pesca em alto mar, incluindo a especificação das espécies alvo de captura. O armador e líder associativo, Suzano Vicente, critica a não sistematização.

“Pelo menos trimestralmente deveria haver um relatório para mostrar, ‘aqui está a situação’. É o que estamos a questionar, a tal transparência, a propalada governança do sector das pescas. Quando dizemos que não há, quero dizer que não tem existido de forma sistemática. Não há uma avaliação sistemática, por exemplo, de três em três meses”, frisa.

Problema global

A nível global, as Nações Unidas estimam perdas económicas anuais entre 10 mil milhões e 23 mil milhões de dólares, devido a actividades de pesca ilegais, não declaradas e não regulamentadas. Segundo a FAO, a pesca INN representa até 30% das capturas totais em algumas pescarias importantes e a captura de certas espécies pode atingir até o triplo da quantidade permitida.

Os danos ambientais também são consideráveis, com impacto nos ecossistemas e habitats marinhos. A pesca ilegal prejudica a segurança alimentar de milhões de pessoas. Nas comunidades costeiras e piscatórias, origina perda de rendimentos.

O sector pesqueiro, incluindo a indústria conserveira, em Cabo Verde tem uma dimensão económica e social que não pode ser desvalorizada. Segundo dados oficiais, além de garantir proteína animal na dieta dos cabo-verdianos, com um consumo per capita anual de 24 a 26 quilos por habitante, emprega entre 5 a 6% da população activa e representa mais de 80% das exportações do país.

As contrapartidas financeiras directas, como aquelas que são pagas pela UE, e taxas cobradas pelas licenças de pesca, são receita do Estado de Cabo Verde e ajudam a compor as contas públicas. Mas só uma gestão controlada e sustentável será capaz de garantir a renovação das espécies e garantir que as futuras gerações continuarão a beneficiar daquilo que o mar tem para dar.

Este artigo foi desenvolvido através de uma mentoria com a Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional (GITOC), parte de um programa de reforço de capacidades de jornalistas de investigação na Mauritânia, Cabo Verde, Guiné, Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal. O jornalismo é totalmente independente e a narrativa do artigo não exprime necessariamente as opiniões do GITOC.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1193 de 9 de Outubro de 2024.

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Autoria:Lourdes Fortes, Nuno Andrade Ferreira,13 out 2024 8:20

Editado pormaria Fortes  em  14 out 2024 10:04

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