Tini, um criador de animais na zona de Simão Ribeiro, arredores da Cidade da Praia, vive na pele esta realidade dolorosa. Recentemente foi vítima de um assalto violento ao seu curral. O criador relata que, além de terem roubado seus animais, ele também foi agredido, o que lhe causou enorme sofrimento.
“Oito homens invadiram o meu curral. Eu não esperava por isso, nunca antes tinha acontecido. Este episódio ocorreu nos últimos dias do mês de Outubro, por volta das 21 horas, enquanto eu estava a dar que comer aos animais. Os bandidos entraram e logo disseram que o que precisavam eram de carneiros: ao mesmo tempo que os pegavam, começaram a me agredir”.
Simão Ribeiro
Em Simão Ribeiro, os ataques são constantes e, segundo Tini, já são mais de 50 assaltos registados na comunidade, só neste ano de 2024. Afirma que o roubo de suas 14 cabras, ocorrido recentemente, é apenas um exemplo da ousadia dos ladrões.
“Levaram-me 14 cabras de uma só vez. São cabras de raça que não vendo nem por 20 mil escudos cada. Deixaram apenas dois cabritos para trás, isso para criar e depois voltarem para pegar. Os prejuízos são inimagináveis; aqui, todos os animais são roubados, tudo o que aparece à vista destes bandidos é alvo de roubo sem discriminação. Eles sabem que temos de sair com os animais para o campo, então fazem a festa. Quando voltamos, temos de lidar com as consequências das acções dos bandidos. Precisamos urgentemente de uma intervenção do Governo, precisamos de políticas que respondam à impunidade em Simão Ribeiro. Aqui, apenas os bandidos são amparados pela lei e são os únicos protegidos pelos direitos humanos”, lamenta.
Além dos prejuízos materiais, os criadores enfrentam a insegurança e o medo de confrontar os ladrões. “No meu caso, só não me mataram porque encontraram os animais para levar. Se de qualquer forma eu tentasse defender-me, ter-me-iam matado sem hesitar. O mais triste é que nada é feito. Registámos queixa na polícia, com provas, pois uma testemunha disse que o seu filho estava a vender carneiros, e, como não criavam este animal e coincidiam com os meus desaparecidos, acreditou-se que eram os meus. Fui às autoridades policiais e nada foi feito até hoje.”
“Aqui em Simão Ribeiro, não há horário para os assaltantes; a toda a hora temos de estar preparados para os confrontar porque nem sequer fazem questão de disfarçar. Os assaltos são realizados com viaturas apropriadas para o transporte dos animais”.
A dúvida sobre a continuidade no ofício de criador paira sobre Tini e muitos outros que, apesar de tudo, permanecem na actividade por falta de alternativas. “Não temos o que fazer. Hoje, sobrevivo da criação, porque quem vive dela são os bandidos. É triste ver os meus animais, adquiridos com tanto esforço, estimados, não chegarem à idade adulta porque os bandidos destroem tudo neste lugar. Sou chefe de família, tenho filhos na universidade e é daqui que tiro o meu sustento.”
Impunidade
Para Tini e vários outros criadores rurais que mantêm a sua actividade em Simão Ribeiro, a justiça parece um conceito distante e inatingível. “A justiça, nestes casos, nunca será feita. Quem cria animais pode contentar-se com a ideia de um choro sem fim, sem limite, uma dor sem remédio e sem esperança.”
Em busca de protecção, muitos criadores recorrem a cães de guarda, mas nem isso tem sido eficaz. “Aqui, criamos muitos cães. Eu mesmo já investi em cães de raça de grande porte, houve tempos em que tinha aqui 17 cães. Os bandidos trazem carne envenenada, deixada a estragar, de modo que, com o forte odor, atraem os cães, que são mortos, um a um. Os cães aqui dão alerta quando algum estranho está por perto, por isso, são alvo dos bandidos”, conta Tini e um outro colega que não se quis identificar.
A previsão de aumento dos roubos nesta época do ano preocupa ainda mais os criadores. “Podemos esperar que, nesta época de final de ano, o roubo de animais aumente. A polícia já sabe que os bandidos estão por perto e que vão intensificar os roubos. Quando acontece algo e a polícia é chamada, os agentes vêm, mas, se houver risco de vida, chegam quando a panela já está no fogo e a comida pronta”, avançam os criadores.
Santa Cruz
A situação descrita por Tini não é um caso isolado. No concelho de Santa Cruz, Victor, criador da comunidade de Macati, narra a realidade difícil dos criadores e o impacto devastador que têm os constantes roubos.
“As dificuldades na pecuária são muitas, mas o maior desafio que enfrentamos actualmente é o roubo de animais. Não temos amparo nem da justiça, nem do governo. Já desisti de fazer queixa na polícia, porque parece que não faz diferença nenhuma. Tenho também um pedaço de terra onde cultivo uma horta e, só com as queixas da horta, já perdi a conta das vezes que recorri à polícia. A situação aqui é humilhante. Mesmo quando o ladrão é apanhado em flagrante, a primeira coisa que as autoridades perguntam é se eu tenho provas, como se precisasse de mais alguma coisa além do ladrão na minha propriedade.”
Victor recorda um episódio recente que ilustra a impotência dos criadores perante os criminosos. “Um dia deparei-me com um ladrão na minha horta, com um cacho de bananas no saco. Chamei a polícia, que demorou a chegar. Quando ele tentou fugir, eu enfrentei-o. Ele estava com uma faca, mas acabou por correr. Depois de tantos processos, ele foi julgado e eu fui testemunha, mas, no mesmo dia, ele foi sentenciado e solto. É frustrante. A justiça não existe aqui. Esses bandidos sabem que vão para a rua no mesmo dia. Quando somos roubados, acabamos por pagar pela impunidade.”
A ração é cara e a falta de técnicos veterinários e apoio especializado nas delegações do governo torna-se um obstáculo constante. Victor conta que muitas vezes os próprios criadores dão assistência aos técnicos recém-formados que ainda não têm prática para lidar com as emergências.
“É frequente ouvir desculpas ‘não temos carro’ ou ‘não temos gasolina’ para o transporte. Não há suporte para nós. Imagina uma vaca, um animal valioso para a nossa subsistência, a morrer simplesmente por falta de apoio técnico”, lastima.
Outro ponto levantado por Victor é a falta de investimento governamental em raças de animais de qualidade superior, que poderiam valorizar o trabalho dos criadores e até gerar novos empregos.
“Os sucessivos governos deixaram a agricultura e a pecuária para trás. Se tivéssemos investimentos em raças melhoradas, o trabalho na criação tornar-se-ia mais rentável e traria alternativas de trabalho para os jovens, evitando que muitos precisem emigrar para sobreviver. Com uma raça melhorada, um boi poderia valer até 300 mil escudos, mas, sem apoio, quem vai investir nisso?” “Há bons exemplos de raças no estrangeiro. O que impede o governo de trazer esses embriões para Cabo Verde e melhorar a genética dos nossos animais? Falta pesquisa, não só na pecuária, mas também na agricultura.”
No entanto, o que Victor e outros criadores dizem precisar, acima de tudo, é segurança e justiça. Para ele, os roubos seriam combatidos mais eficazmente se houvesse fiscalização mais rígida nos matadouros e nas transações de carne, para impedir a comercialização de animais roubados.
“Hoje, esses ladrões vendem a carne de um animal que vale 200 mil escudos por 50 mil. E quem compra? São os açougueiros, que pagam barato e sabem bem que estão a comprar de ladrões. Se as autoridades responsabilizassem quem compra carne de animais roubados e exigissem compensação aos lesados, esses crimes diminuiriam. Mas, enquanto isso não acontece, só temos prejuízo.”
Victor deixa um apelo às autoridades, não por subsídios ou isenções, mas por uma segurança básica e justiça. “Nós, criadores de animais, não queremos nada do governo. Só queremos justiça. Justiça pelo nosso trabalho, pelo nosso esforço, pelos nossos animais e pelas nossas vidas.”
Desafios da pecuária em Cabo Verde
O agro-pecuarista e presidente da Federação das Associações de Agricultores e Pecuários de Santa Cruz, Cesário Varela, sublinha que a pecuária em Cabo Verde é essencial para a segurança alimentar e para a economia local, mas esta actividade enfrenta desafios críticos, como a seca, aumento nos preços dos insumos e uma onda crescente de roubos de gado. A falta de políticas governamentais eficazes, incluindo uma gestão hídrica adaptada e subsídios mais abrangentes, agrava a situação, deixando os criadores sem apoio e ameaçando a subsistência de várias famílias. A limitada capacidade de compra dos criadores reflecte as dificuldades socioeconómicas do país. Com alto desemprego e falta de apoio social, muitos criadores sacrificam a saúde e o número de animais para sobreviver.
“A ineficiência das políticas governamentais em criar um ambiente económico favorável ao crescimento do sector é alarmante. O governo precisa repensar sua abordagem e priorizar o fortalecimento da pecuária como um pilar da economia rural, proporcionando condições para que os criadores possam prosperar. A insegurança no campo, manifestada pelo aumento do roubo de gado, é um outro problema que tem gerado grande preocupação entre os criadores. A falta de medidas eficazes de protecção e a ausência de uma força policial efectiva nas zonas rurais tornam essa actividade uma presa fácil para criminosos. O governo não pode ignorar que a protecção dos activos dos criadores é essencial para garantir a continuidade da actividade”.
Cesário Varela salientou ainda que a situação da pecuária nacional é crítica e exige uma resposta governamental eficaz e proactiva, que compreenda as necessidades dos criadores. Medidas de segurança, como patrulhas regulares e programas de vigilância comunitária, são, a seu ver, fundamentais para restaurar a confiança dos pecuaristas. Sugere-se, ainda, o controlo de preços dos insumos essenciais com subsídios, apoio económico através de incentivos e cooperativas, além do reforço da segurança rural para combater o roubo do gado. O investimento em tecnologias de irrigação e reuso de água também é crucial. Revitalizar a pecuária é essencial para o desenvolvimento sustentável e a segurança alimentar do país.
Polícia Nacional (PN)
O Director da Direcção Central de Investigação Criminal (DCIC), Roberto Lima, afirma que a PN actua nos casos de desaparecimento ou furto de animais encaminhando todas as denúncias ao Ministério Público, conforme a lei. Os dados da PN mostram que em 2024, os casos de roubos de animais foram “residuais” no interior de Santiago, com apenas dois registros: em São Lourenço dos Órgãos e Tarrafal de Santiago, enquanto na Praia foram três, dos quais dois já foram resolvidos. A PN, porém, encontra desafios na investigação, como a demora na denúncia e a falta de dados precisos sobre o tempo, local e descrição dos animais, o que dificulta o trabalho.
Roberto Lima alerta que, muitas vezes, os proprietários não relatam os casos, o que complica a identificação dos suspeitos. O director da DCIC aconselha aos criadores que tenham mais cuidado com seus animais, evitem deixá-los soltos e conheçam bem o seu número e características para facilitar a identificação. Além disso, enfatiza a importância de denunciar qualquer actividade suspeita, como compradores ou viaturas desconhecidas, e propõe que os proprietários criem vínculos com os matadouros para ajudar na identificação dos animais.
A PN assegura o seu comprometimento em investigar e agir sempre que houver provas para a responsabilização de quem furta ou compra animais roubados, e destaca a necessidade de denúncias rápidas e detalhadas para que o trabalho policial seja eficaz.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.