Todos os dias, às seis da manhã, Nácia, de 65 anos, acorda para começar a sua rotina. Cuida da irmã que, há dez anos, perdeu um braço num acidente e, há dois, perdeu uma perna devido à diabetes.
Uma tarefa que divide, quando possível, com a sobrinha que agora está desempregada, mas que em breve deverá voltar a assumir sozinha.
“Faço por amor, mas cansa”, confessa Nácia. A rotina da mulher inclui tarefas que vão desde preparar e dar as refeições, dar banho e lavar a roupa, até limpar e transportar a irmã para as suas necessidades diárias.
“Eu nunca tinha cuidado de alguém nessa situação, tive que aprender. Não é qualquer um que ajuda uma pessoa assim. É um trabalho pesado, só mesmo a família para ajudar”, diz.
Apesar do amor e dedicação, as consequências físicas e psicológicas não tardaram a manifestar-se.
“Tenho muitas dores nas costas e às vezes fica difícil dormir à noite após tanto carregar a minha irmã, mas tenho de fazer. Não posso deixá-la dentro de urina ou outra coisa”, desabafa.
A situação financeira é um desafio constante. Nácia e a irmã vivem da pensão de velhice, que mal cobre as despesas básicas. Medicamentos e alimentação são uma luta diária.
“Quando a médica prescreve um remédio e não temos como comprar, algumas pessoas ajudam com 500 escudos ou com o que podem. Também recebemos apoio de comida dos vizinhos. Graças a eles, não há dias em que a minha irmã não coma”, reconhece.
Conciliar o trabalho e o cuidado
Às 5h30 da manhã, Maria, de 65 anos, já está de pé. É a primeira a levantar-se e a última a se deitar. A sua rotina é marcada pelo cuidado com o marido, diagnosticado com diabetes há 25 anos, e que, há 10, passou a depender dela para quase tudo.
“O maior cuidado que ele requer de mim é a alimentação, mas também controlo os medicamentos e ajudo em tarefas que não consegue realizar sozinho. Quando sente muitas dores, tenho de fazer tudo: dar banho, limpar e organizar a casa, sobretudo depois de uma operação”, narra.
Maria é a única cuidadora disponível na família. As filhas estão no estrangeiro e o orçamento familiar não permite contratar ajuda.
“Se tivesse um familiar por perto, estaria mais aliviada e menos sobrecarregada. Mas somos só nós os dois”, lamenta.
A exaustão é visível. Maria dorme pouco, cozinha todos os dias refeições frescas e adaptadas à dieta restrita do marido, e equilibra as exigências de um trabalho que precisa para sustentar a casa.
“Não posso deixar de trabalhar porque o dinheiro é necessário, mas a exaustão piora nos dias em que não consigo dormir. Se ele come algo proibido, como ontem, as dores vêm, e ficamos acordados até quase amanhecer. Ontem, só consegui dormir às 3h da manhã, por exemplo”, relata.
O custo com medicamentos é outra preocupação constante que tem deixado Maria cada vez mais pensativa. Só para os remédios e insulina do marido, a despesa mensal ultrapassa os seis mil escudos, mesmo com o seguro.
“Às vezes, o dinheiro não chega e temos que recorrer à ajuda de familiares”, conta. Esta situação foi frequente até Outubro, já que Maria esteve de licença sem vencimento no último ano porque precisava cuidar do marido que passava por um momento crítico, após ter sido operado três vezes.
“Durante a licença, dependíamos apenas das remessas das minhas filhas, mas elas também têm a sua vida e os seus problemas”, aponta.
“Comecei a trabalhar com idade já avançada, e por isso não peço reforma, porque o dinheiro não daria para nada. Mas confesso que está cada vez mais difícil aguentar este ritmo”, desabafa.
Principais desafios dos cuidadores informais
Segundo a assistente social Mónica Furtado, o principal desafio para um cuidador informal é a disponibilidade de tempo para exercer, sobretudo, a actividade económica.
“São pessoas que têm sob o seu cuidado alguém que lhes ocupa praticamente todo o tempo. Não conseguem trabalhar, estudar, socializar ou mesmo dedicar-se a actividades de lazer. Isso traz um impacto económico, pois são pessoas que não conseguem ter um emprego, contribuir para a segurança social ou construir uma carreira, afectando todo o percurso de vida”, explica.
A assistente social aponta que a maioria dos cuidadores são mulheres que, além de sofrerem com a falta de reconhecimento do trabalho que realizam, muitas vezes assumem sozinhas a responsabilidade do cuidado.
“As mulheres relatam que, quando há crianças com deficiência, a primeira atitude de alguns pais é abandonar a família, deixando todo o peso nas mãos delas. Se houvesse uma divisão mais equitativa das responsabilidades, seria mais fácil para ambos”, sublinha.
Estatuto do CuidadorInformal: “Temos todas as condições de implementá-lo no próximo ano”
Em declarações ao Expresso das Ilhas, a Directora-Geral da Inclusão Social, Ednalva Cardoso, garantiu que o Estatuto do Cuidador Informal, uma iniciativa que pretende reconhecer e regulamentar o trabalho dos cuidadores informais em Cabo Verde, está na fase final de elaboração e poderá ser implementado já no próximo ano.
Conforme explicou, o processo teve início no ano passado com a consultoria especializada e o levantamento de dados a nível nacional.
“O nosso objectivo principal é garantir que o Estatuto seja uma ferramenta eficaz para os cuidadores informais, que seja adequado e assegure a devida integração no sistema de protecção social”, assegura.
O Estatuto, segundo esclareceu, pretende abranger diferentes vertentes dos cuidadores informais, incluindo aqueles que prestam assistência a tempo parcial e os que se dedicam de forma integral.
Ednalva Cardoso diz que os cuidadores que desempenham a função em regime integral poderão beneficiar de subsídios de apoio no âmbito da protecção social, bem como de incentivos financeiros e acesso a formações específicas.
“Quem venha a desempenhar esse papel de uma forma integral pode beneficiar de um subsídio de apoio atribuído no âmbito da protecção social. Também podem ter apoios que visam a inserção socioprofissional ou o regresso ao mercado de trabalho”, afirma.
A formação e o apoio psicológico também são pilares fundamentais do Estatuto. “Não podemos descurar o quão exigente e complexo é cuidar de uma pessoa numa situação de dependência. Está previsto no nosso Estatuto a oferta de apoio psicológico e emocional aos cuidadores”, sublinha.
Quanto à implementação, a Directora-Geral adianta que será feita uma apresentação pública do Estatuto e que o Governo pretende avaliar o seu impacto a médio e longo prazo, por meio de estratégias de monitorização.
“O objectivo é criar um movimento de consciencialização e apoio ao trabalho dos cuidadores informais, promovendo a valorização destes profissionais tão cruciais para a sociedade”, acrescenta.
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INPS esclarece
Ao Expresso das Ilhas, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) esclareceu que qualquer cidadão tem a possibilidade de aderir ao Sistema de Protecção Social Obrigatório, desde que, no caso dos trabalhadores por conta de outrem, a sua entidade empregadora realize a devida inscrição no INPS.
Este esclarecimento abrange tanto os cuidadores que actuam como trabalhadores por conta própria, quanto os que trabalham para uma entidade empregadora, garantindo que a protecção social esteja disponível para todos os cidadãos.
O INPS afirma que tem implementado diversas medidas com o objectivo de expandir a cobertura do Sistema de Protecção Social, visando abranger toda a população de Cabo Verde. O Governo estabeleceu como meta a inclusão de 66% da população cabo-verdiana até 2026 e, por isso, é do interesse do INPS integrar todos os cidadãos ao sistema.
Para as entidades empregadoras, o INPS lembra que, antes de realizar a inscrição dos seus trabalhadores no sistema, é necessário que a empresa obtenha o registo comercial e realize o registo na Casa do Cidadão. A documentação complementar será solicitada para formalizar a inscrição.
Além disso, os Trabalhadores por Conta Própria (TCP) podem inscrever-se directamente no INPS, utilizando o formulário disponível para tal fim.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.