Profissionais de saúde não estão preparados para atender sobreviventes da MGF

PorEdisângela Tavares,15 fev 2025 9:49

O primeiro estudo sobre a Mutilação Genital Feminina (MGF) em Cabo Verde, realizado no âmbito do projecto “Conhecer e Capacitar para Melhor Intervir”, revelou que os profissionais de saúde do país têm conhecimento limitado sobre a prática e não estão devidamente preparados para atender sobreviventes. De todos os profissionais inquiridos, apenas um afirmou ter identificado uma criança sobrevivente, embora não tenha ficado claro se a prática ocorreu no país de origem ou em Cabo Verde.

A MGF, que consiste na remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos por razões culturais e tradicionais, é reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos.

Apesar de ser proibida em muitos países, incluindo Cabo Verde, há indícios de que a prática ainda possa ocorrer, especialmente entre comunidades imigrantes.

De acordo com o estudo, a reação inicial dos profissionais de saúde ao atenderem sobreviventes da MGF é, muitas vezes, de espanto, surpresa e constrangimento. Como não possuem formação específica sobre o tema, lidam com os casos de maneira improvisada.

Dos profissionais entrevistados, apenas um afirmou ter identificado uma criança sobrevivente, mas não soube especificar se a prática ocorreu no país de origem da família ou em Cabo Verde. Nenhum dos entrevistados conseguiu classificar corretamente os diferentes tipos de MGF.

Principais desafios

A ausência de formação adequada faz com que muitos profissionais de saúde recorram ao senso comum para tentar explicar o que é a MGF. Embora tenham consciência de que a prática não tem fundamento religioso, mas sim cultural, ainda há dificuldades em abordar o tema de forma informada e sensível.

O estudo aponta que a falta de diretrizes específicas dentro dos serviços de saúde contribui para que o tema só seja abordado quando surge um caso concreto, sem que haja fóruns internos para discutir a melhor forma de lidar com essas situações.

Além disso, o conhecimento sobre a legislação que proíbe a MGF é bastante limitado entre os profissionais da área, o que dificulta a identificação e o encaminhamento adequado dos casos. Adicionalmente, não há um sistema de registo adequado para documentar os casos, dificultando a obtenção de dados sobre a real dimensão do problema em Cabo Verde.

As barreiras linguísticas e culturais também são apontadas como factores que dificultam o atendimento. As sobreviventes, na sua maioria, são detectadas durante a fase de gravidez e pré-natal e, muitas vezes, os maridos acompanham as consultas, o que pode inibir a comunicação e comprometer a qualidade dos cuidados prestados.

Impactos físicos e psicológicos

Entre as quatro sobreviventes que aceitaram falar abertamente sobre o tema, todas relataram dores e complicações durante o parto; dores nas relações sexuais e falta de vontade sexual; ausência de orgasmo; confusão ao perceber diferenças em relação a outras mulheres e depressão.

Os demais entrevistados apontam ainda a ausência de prazer, dores nas relações sexuais, ausência de orgasmo, baixa autoestima e perda de autonomia das mulheres em todas as suas dimensões.

Sensibilizar as pessoas

Em declarações à imprensa, a presidente da Alta Autoridade para a Imigração (AAI), Carmen Barros, ressaltou que a abordagem da MGF exige compreensão, pois, com o aumento da mobilidade internacional, todas as sociedades acabam por se deparar com essa realidade.

“A mobilidade e a circulação internacional fazem com que as pessoas carreguem consigo a sua diversidade cultural – são conhecimentos, habilidades, crenças e visões de mundo. Portanto, o trabalho com a imigração deve também contemplar essa vertente, na perspectiva de prevenir riscos para a existência desta prática, que acarreta graves consequências para a saúde física, sexual, emocional e psicológica de mulheres e meninas”, afirmou.

A presidente da AAI enfatizou que Cabo Verde já dispõe de um quadro legal que criminaliza a MGF, tanto no Código Penal como na Lei Especial de Violência Baseada no Género (VBG), embora isso não seja suficiente.

“Estamos a falar de uma prática complexa, sensível e que exige uma actuação mais estruturada”, frisou.

“Chamamos sempre a atenção para que o nosso trabalho junto das comunidades imigrantes não gere generalizações ou preconceitos contra mulheres sobreviventes desta prática ou contra comunidades imigrantes. A imigração não traz apenas desafios, mas também contribuições valiosas para a sociedade, e essa distinção precisa ser clara”, acrescentou.

O projecto “Conhecer e Capacitar para Melhor Intervir”, no qual o estudo está inserido, tem como foco informar, sensibilizar e formar, e o estudo piloto abrangerá quatro ilhas, servindo de base para uma investigação mais abrangente sobre a prevalência da MGF no país.

O estudo

A primeira parte do estudo sobre a percepção da MGF em Cabo Verde e dos seus impactos na saúde sexual e reprodutiva foi apresentada na Universidade de Cabo Verde, numa cerimónia presidida pela secretária de Estado da Inclusão Social, Lídia Lima.

Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem essencialmente qualitativa, que visa conhecer a percepção sobre a prática da MGF em Cabo Verde e os seus impactos na saúde sexual e reprodutiva sob diferentes perspectivas.

A investigação tem ainda como grupos de análise os profissionais de saúde, mulheres sobreviventes, representantes das ONG de imigrantes, representantes das instituições públicas e ONG nacionais, assim como mulheres e maridos dos imigrantes.

No entanto, com excepção dos profissionais de saúde, os estudos relativos aos outros grupos serão posteriormente apresentados. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1211 de 12 de Fevereiro de 2025.

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Autoria:Edisângela Tavares,15 fev 2025 9:49

Editado porAntónio Monteiro  em  15 fev 2025 11:57

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