Na sua conferência, na Praia, começou por falar sobre histeria digital. Esta histeria deve-se a quê?
Quando temos uma nova realidade, especialmente uma nova tecnologia, isso gera expectativas de crescimento, desenvolvimento, eficiência, até mesmo justiça, e ao mesmo tempo faz disparar os medos noutros sectores da população: perda de emprego, erosão da democracia, desinformação. Haverá certamente um período, como houve antes, de inverno, de pouco desenvolvimento e aí teremos a oportunidade de ver quem tinha mais razão.
Levantou ainda outra questão: será que a inteligência artificial é assim tão inteligente?
A questão não é tanto se é inteligente ou não, mas se estamos perante um tipo de capacidade que podemos comparar com a nossa inteligência. O que está provado é que existe uma grande capacidade de computação, de gestão de dados, de processamento de informação, que os humanos não têm, mas pelo contrário, nós, humanos desenrascamo-nos muito bem em ambientes ambíguos, com poucos dados e tomamos decisões relativamente boas, tendo em conta a complexidade da situação. A minha proposta é que não consideremos estas duas coisas semelhantes, mas sim duas coisas diferentes que podem ser complementares, dependendo da forma como as articulamos, como as regulamos, como lidamos com elas.
Tivemos uma geração que era completamente analógica, uma geração que fez a transição do analógico para o digital e hoje somos cada vez mais digitais. O que traz este novo espaço público?
É um espaço público mais democrático que o anterior, mais horizontal, mais igualitário, com maior acessibilidade para todos, mas ao mesmo tempo gera enorme ruído, algazarra, caos, confusão e desorientação. A minha proposta é que mantenhamos a nossa conquista de horizontalidade e acessibilidade do espaço público, mas que sejamos capazes de estabelecer novas autoridades, provavelmente menos poderosas que as anteriores, mas que sirvam para estabelecer um critério e não pereçam no lixo da desinformação.
A inteligência artificial está a assumir cada vez mais importância na sociedade. Que influência pode a inteligência artificial ter na tomada de decisões?
Na parte das decisões relacionadas com problemas em que a quantidade de dados é significativa, onde não existe ambiguidade, onde existe pouca incerteza, a inteligência artificial e a governação algorítmica podem ser extremamente úteis. A questão é que certos tipos de decisões são excluídos desta categoria: as relacionadas com valores, fins e objectivos finais, para os quais a inteligência artificial não é adequada. Este tipo de decisões deve ser reservado para humanos, bem informados, bem apoiados por outros tipos de gestão de dados.
A inteligência artificial é também um meio de propagação de desinformação. Como nos podemos preparar para filtrar o que é informação válida e o que é desinformação?
Essa é a grande tarefa que temos de empreender individual e colectivamente. Por exemplo, a maioria das crises que vivemos neste século não foi detectada pelos nossos radares. Nem a crise financeira, nem a pandemia, nem os actuais conflitos armados estavam na agenda. Isto significa que somos uma sociedade enormemente distraída pelo presente e muito desatenta à natureza latente daquele que será provavelmente o lugar onde se constroem as crises ou os futuros que teremos de enfrentar.
Que perigos pode a inteligência artificial representar para a privacidade dos cidadãos?
É uma tese muito comum que a inteligência artificial está a fomentar o que alguns chamam de capitalismo de vigilância, vigilância excessiva das nossas vidas. Isso é verdade, e é por isso que existe, por exemplo, uma regulamentação de privacidade muito sofisticada na Europa. E é aí que temos de lutar, pela protecção da privacidade. Mas há duas dificuldades. A primeira é que a privacidade não é apenas uma questão individual, mas uma questão colectiva, porque por vezes, em determinados assuntos, o nível de exposição que eu individualmente aceito pode condicionar a exposição de outros, cujos dados podem ser deduzidos da minha própria exposição. Estou a pensar em questões relacionadas com a composição genética ou rendimento, dependendo do bairro em que vivo, etc. Por isso, a gestão da privacidade deve ser considerada dentro da lógica dos bens comuns. É uma questão que vai para além do direito privado. E a outra coisa é que, por um lado, é verdade que eles sabem muito sobre nós, mas, por outro lado, também é verdade que, em alguns tópicos, gostaríamos que eles soubessem mais. Por exemplo, em tudo o que se refere à prevenção de doenças, ou riscos em geral, ou atenção às nossas particularidades em diversas áreas da vida. Tivemos a experiência da pandemia em que gostaríamos de ter tido uma maior compreensão das particularidades pessoais enquanto sociedade para termos enfrentado melhor esta crise.
Voltando à sua conferência. Também disse que não concorda muito com a ideia de que a inteligência artificial vem substituir os humanos. Porquê?
Não é que não deva substituir os humanos, é que não pode. Porque executa tarefas muito diferentes das nossas. Vou usar uma analogia um pouco simplista, mas acho que pode ajudar a perceber. É como pensar que os migrantes nos vêm substituir. Pensar que a minha posição como professor universitário é ameaçada por uma pessoa que chega num pequeno barco é completamente absurdo. Teremos de pensar mais nas tarefas do que nos empregos. E há tarefas dentro de cada trabalho. Cada um de nós desempenha muitas tarefas: jornalistas, professores, políticos — desempenhamos muitas tarefas, e as máquinas desempenham algumas delas melhor. Acredito que nos devemos concentrar em fortalecer as áreas nas quais não podemos ser substituídos por máquinas e confiar que as máquinas nos ajudarão com o resto, como fizemos com a revolução industrial, no meio de alguns conflitos sociais muito difíceis.
Estamos a viver um período de receios idênticos?
Não é idêntico, mas pode-se pensar nisto em analogia. A automação não é a mesma coisa que a aprendizagem automática. A automação tem a ver com processos mecânicos que são controlados de alguma forma; mas podemos fazer uma analogia entre uma revolução industrial e a revolução digital, no sentido em que são momentos disruptivos da história da humanidade, em que surgem novas tecnologias e não sabemos bem o que fazer com elas, e isso obriga-nos fundamentalmente a iniciar debates, discussões e, sobretudo, nestes momentos históricos, a não ceder à tentação de conceder às grandes corporações tecnológicas o poder de decidir sobre as nossas vidas para além do estritamente tecnológico. Por exemplo, assumindo papéis políticos que não lhes correspondem.
“Somos uma sociedade enormemente distraída”
“Neste momento estamos num mundo caótico”
Olhando para a situação política internacional, há espaço para a democracia no nosso futuro?
Não só há espaço, como temos de democratizar mais coisas que não democratizámos antes. Temos de democratizar o dinheiro, temos de democratizar o trabalho, temos de democratizar a migração, temos de democratizar os algoritmos. Ou seja, surgem coisas, umas novas, outras nem tanto, que tínhamos configurado de forma autocrática, opaca. E neste momento há muitas questões na agenda das coisas a democratizar, que sem dúvida cresceu. Se seremos capazes de o fazer, isso já é outra questão.
A desinformação contribuiu imenso para a desconfiança das pessoas em relação às instituições democráticas. Como se luta contra isso?
Construir confiança é uma tarefa complicada, porque não se trata de tentar que confies em mim, mas sim que eu tenha certas qualidades que os outros consideram fiáveis. Para ser fiável e atraente para a população, um sistema democrático deve oferecer um futuro igual para todos. A democracia não pode funcionar com base em sucessos passados, ou mesmo numa boa situação actual. Tem de oferecer um futuro. E esse futuro tem de ser partilhado. Temos de compreender que estamos a jogar com destinos comuns, e tem de ser igualitário, porque há pessoas para quem o futuro será melhor do que para outras. E esta desigualdade em termos de expectativas futuras é que produz uma enorme desconfiança na população.
A falta de engajamento da sociedade civil, a apatia, são ameaças à democracia?
Depende. Há um certo grau de apatia que é perfeitamente compatível com a democracia. As pessoas não têm de estar igualmente interessadas, empenhadas e participativas nos assuntos públicos e comunitários. Não temos uma cidadania engajada em que as pessoas se filiam em partidos políticos e sindicatos e votam. Isso não é realmente importante. O importante é que todos compreendamos até que ponto o futuro individual está ligado ao futuro colectivo. E devemos saber isto quando se trata de pagar impostos, quando se trata de não poluir, quando se trata de proteger o espaço para conversas públicas ou colectivas. Acho que isso é muito mais importante, perceber o quanto o meu destino individual está ligado ao destino colectivo e vice-versa. Muito mais importante do que a participação activa nos processos democráticos.
A desigualdade económica é outra ameaça à democracia. Tivemos uma situação semelhante no século XX, nas décadas de 1920 e 1930, quando a Alemanha criou um dos piores regimes que conhecemos após um período de enorme desigualdade económica.
A analogia com os anos 30 não funciona muito bem. As pessoas que foram para a guerra, que invadiram países naquela época ou que votaram no nazismo, eram pessoas que tinham menos a perder do hoje. Hoje somos sociedades mais interdependentes e, por isso, existem mais mecanismos de resistência a expansionistas ou a qualquer outra aventura negativa. Estamos a vê-lo agora com o fenómeno Trump, um líder eleito democraticamente, mas com um estilo e uma agenda autoritários. Isto provoca uma enorme quantidade de reacção e uma enorme quantidade de resistência, tanto dentro da sociedade americana, como vemos isso com o aumento da inflação, a resistência das autoridades públicas, até mesmo dos líderes empresariais à expulsão de migrantes. Como globalmente, porque os Estados Unidos operam hoje num cenário global onde, apesar de serem uma grande potência, enfrentam outros actores que têm as mesmas ambições de moldar o futuro colectivo e que, por isso, o enfrentarão ou resistirão de alguma forma. Não é assim tão simples resolver o problema palestiniano de Gaza ou a invasão da Ucrânia, independentemente do poder que se tenha por detrás.
Quando veremos um declínio deste populismo actual?
Só há soluções democráticas para o problema colocado pela extrema-direita. Por conseguinte, excluí-los da participação no governo, ou mesmo bani-los, são questões limítrofes que não resolvem o problema de fundo. Numa sociedade democrática, este tipo de problemas só pode ser resolvido conquistando o apoio popular dos sectores da população que neles votam. E, para isso, devemos levar a sério os receios que esta parte da população manifesta com o seu voto ou a sua insatisfação, sabendo que as soluções que procuram votando em partidos de extrema-direita são completamente ineficazes. No dia em que formos capazes de compreender o medo das pessoas que votam nestes partidos, mas sem recorrer à sua linguagem e métodos, nesse dia começará o seu declínio. Mas, enquanto isso, continuarão a ser forças poderosas.
Mas acha que a democracia, no panorama actual, está em risco?
Existe um risco, mas não é o risco típico a que estamos habituados, que é o dos golpes militares e da ocupação de instituições. A última encenação ridícula disso foi a invasão do Capitólio. Em vez disso, o tipo de risco a que a democracia está hoje exposta é o risco associado à sua apatia, à sua estagnação, à sua incapacidade para abordar problemas como as alterações climáticas ou os provocados pelas novas tecnologias. Ou seja, a falta de vigor para produzir as transformações sociais que um novo mundo exige.
E neste contexto, que papel pode ter a Europa?
A Europa está num momento delicado de reflexão interna, de redefinição das suas prioridades e também de análise das coisas que não tem feito bem. Ao mesmo tempo, parece-me que a Europa também precisa de ter mais autoconfiança, porque o que a Europa tentou articular entre as esferas económica, social e política é algo que pode ser melhorado, mas que não tem paralelo no resto do mundo. Em nenhum lugar se conseguiu uma articulação tão bem-sucedida, ainda que parcial, de desenvolvimento económico e tecnológico, desenvolvimento social e governação política democrática no meio de uma enorme complexidade, porque se trata de uma área pequena, relativamente pequena em população, com duas grandes potências, e num mundo em que outros continentes também aspiram a desempenhar um papel de liderança. Neste contexto, a Europa deve redefinir o seu lugar.
Estamos a caminho para um mundo multipolar?
Neste momento estamos num mundo caótico. A multipolaridade sugeria uma certa ordem, e agora, tudo o que posso dizer é que estamos num ambiente bastante caótico, bastante desordenado, onde há processos que não terminaram. Temos de ver como evoluem os Estados Unidos de Trump, como acaba a guerra na Ucrânia, o que acontece a Putin, ao Médio Oriente, tudo isto no meio das alterações climáticas que não estamos a abordar com a urgência que deveríamos. O que temos, atualmente, é uma desordem global.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1216 de 19 de Março de 2025.