Mário Centeno, Governador do Banco de Portugal: “Vamos todos passar um mau bocado” com a política de tarifas dos EUA

PorAndré Amaral,12 abr 2025 9:31

Governador do Banco de Portugal, em entrevista ao Expresso das Ilhas, defende que a política tarifária que está a ser implementada pelos EUA vai ter consequências negativas na economia mundial.

Que riscos é que as tarifas implementadas pelos EUA trazem para a economia mundial? A Fitch Ratings alertou para uma possibilidade de uma recessão a nível mundial.

As tarifas são impostos, e os impostos reduzem a dimensão da economia, implicam recessões, porque a economia encolhe. Isso constitui, do ponto de vista da economia real, o efeito mais directo e quase garantido de se elevarem barreiras ao comércio internacional. Podem ter múltiplos objectivos, quer no âmbito da política comercial, da política económica mais abrangente, ou da política, simplesmente, ao serem um instrumento de política geral — que é, confesso-lhe, aquilo que considero estar actualmente em discussão. Mas, para alguém de um banco central, que obviamente fala menos desta dimensão, o que queria sublinhar era duas vertentes. Uma que já referi: se esta alteração for permanente e, portanto, uma alteração quase estrutural, embora menor, dependendo da existência ou não de retaliação por parte dos diferentes países em relação aos Estados Unidos, pode afetar mais ou menos o mundo e, em particular, os próprios Estados Unidos. Quanto à dimensão económica, é bastante clara. Relativamente à dimensão dos preços, que é aquela mais próxima do banco central, o choque inicial é, seguramente, um choque de aumento de preços — seguramente para os Estados Unidos, porque as tarifas tornam os bens mais caros e, enquanto não decorrer um processo — se é que ocorrer — de substituição, que possa eventualmente encontrar alternativas mais baratas, os preços vão aumentar. Se os preços vão continuar a aumentar, há exemplos do passado que mostram que sim, mas não é uma inevitabilidade. Podemos ter um aumento do nível de preços e, depois, os preços com as tarifas seguirem a evolução que poderiam ter sem as tarifas. Não é crível que seja exatamente assim, mas é possível. Também é possível que as tarifas, ao serem uma barreira, promovam inovações tecnológicas, adaptações, procura de mercados alternativos — quer nos Estados Unidos, quer fora — das quais advenha, desta maior procura, uma tendência à redução do preço pós-tarifa, ou seja, não a redução dos preços face ao que existia antes da tarifa, mas após o efeito da tarifa. Pode, portanto, acontecer que, ultrapassado esse choque inicial, os preços venham a ajustar-se ligeiramente em baixa. Estas são conjecturas que fazem sentido do ponto de vista económico, mas que dependem de múltiplos factores. Já falei da retaliação ou não dos países às tarifas americanas, da abertura dos países que sofrem essas tarifas a colocar os seus produtos noutros mercados. Isto é um processo que leva tempo, e, portanto, o processo adaptativo aqui é o que determina o resultado final. Duas notas. Sendo uma alteração potencialmente estrutural na política comercial global, deve-se dar tempo aos agentes para se adaptarem, que é assim que devemos fazer na política económica, devemos ter alguma paciência adicional. A segunda dimensão é que, se for de facto um choque transitório, não devemos reagir de imediato, por exemplo, do ponto de vista da política monetária, porque o aumento de preços acabará por se dissipar no médio prazo com alguma reversão. Isso significa que a política monetária não é útil para essa reversão da inflação para níveis mais baixos. Sendo que, perante movimentos em que temos de encontrar novas tecnologias, novos mercados, se as taxas de juro subirem, tudo isto se torna mais lento. Devemos, por isso, ser cautelosos para permitir um ajustamento mais rápido.

O primeiro-ministro espanhol anunciou um apoio de 14,1 mil milhões de euros às empresas espanholas que sejam afectadas pelas tarifas. A França também já tomou uma posição, a União Europeia já disse que vai haver uma resposta por parte da União como um todo...

Na verdade, esses são os mecanismos, alguns mais automáticos do que outros, que estão estabelecidos e que podem ser implementados para acomodar um pouco este choque. Sou favorável a que tenhamos todos uma capacidade de ajustamento adicional, que existam almofadas financeiras, poupanças, margens de ajustamento dentro dos mecanismos económicos, e que não nos comprometamos demasiado com mecanismos de ajuda que, no fim do dia, podem ser penalizadores, desde logo para o contribuinte, e que possam criar pressões adicionais na procura. É preciso reagir, mas também deixar que os mecanismos da economia façam o seu papel e, portanto, considero que é um bom sinal que se esteja a pensar, do ponto de vista da política, o que fazer. Mas precisamos mesmo de entender quais são os mecanismos que começam desde logo a funcionar e que permitem esse ajustamento. Não vamos ficar melhores depois das tarifas. Isso não existe.

Nem mesmo nos Estados Unidos?

Principalmente nos Estados Unidos. Não é uma solução, do ponto de vista da política económica, que seja positiva para a economia americana. As razões de ser são um misto de resposta política com determinadas dimensões que até poderiam fazer sentido. Vou dar um exemplo: queremos um comércio internacional justo e livre. E, portanto, gostamos sempre que aqueles com quem transacionamos usem os mesmos padrões no mercado de trabalho, na proteção do trabalhador, nas condições de trabalho, que existem nos nossos países. Isto porque muitos países fazem o que muitas vezes se designa por dumping social — salários baixos, longas horas de trabalho — uma ideia que não é exatamente compatível com aquela que utilizamos no nosso estado de desenvolvimento e nas nossas economias. E, portanto, que existam mecanismos de política comercial, como as tarifas ou outros, que possam, de alguma forma, atenuar estas diferenças, é razoável. Sempre existiram e, aliás, a Organização Mundial do Comércio estabeleceu-se exatamente também para isso: para que se fixassem padrões de comércio comparáveis também nas condições de produção entre países. As tarifas em si não são um tema novo. No início do século XX, eram muito mais elevadas do que hoje. Vamos todos ficar um bocadinho piores, mas, principalmente nos Estados Unidos, o efeito destas tarifas vai ser muito sentido.

E na Europa? Porque a Europa está numa situação de guerra na Ucrânia. Temos a questão do Médio Oriente também a afectar as relações comerciais por causa do canal de Suez. Agora os Estados Unidos entram numa política de isolacionismo…

A Europa tem uma situação peculiar, até para padrões europeus, que vou tentar descrever em poucas frases. Nós, antes da Covid, tínhamos um crescimento na Europa muito forte, também em termos históricos. O crescimento da economia europeia não se distinguia particularmente da economia americana nos três, quatro, cinco anos anteriores à Covid — que, aliás, corresponderam ao primeiro mandato do Presidente Trump. Depois, teve uma reacção bastante positiva à crise pandémica, com graus de cooperação entre políticas orçamentais, monetárias, de supervisão, muito positivos. A recuperação pandémica foi muito bem-sucedida na Europa.

Depois, é exatamente como disse: veio um processo inflacionista, com subida muito forte das taxas de juro, que teve de ser materializada, tendo em conta o perfil da inflação. Começámos, na minha opinião, exactamente quando devíamos ter começado. Mas foram 450 pontos base – 4,5% de aumento das taxas de juro – com uma guerra, como bem referiu, na Europa, porque ela é na Europa, com um impacto muito grande na economia alemã e nas economias de Leste, numa primeira instância. As grandes economias europeias — estou a pensar essencialmente na alemã e na francesa, mas também na italiana; a espanhola tem tido um comportamento bastante mais positivo — sofreram muito e continuam hoje a sofrer com isso. Em particular, no investimento, que é a variável que mais reage à taxa de juro. Mas é precisamente investimento que nós precisamos para responder às tarifas, porque precisamos de encontrar novas formas de produção, de redireccionar mercados, de adaptar a nossa produção a esses outros mercados. Portanto, isto requer adaptação, porque o choque está aí — mesmo que seja temporário — e até pode ser bom fazer esses investimentos para reforçar a nossa capacidade produtiva. Mas a verdade é que é aí que está a dificuldade do crescimento na Europa: investimento. E, portanto, não escondo que este choque pode ser particularmente penalizador para a Europa. Por este motivo. Ou seja, o que temos de fazer é, com a tranquilidade possível, olhar para aquilo que são as condições da Europa para investir, para direccionar as poupanças que a Europa tem para investimentos na Europa, nos desafios que todos conhecemos: o climático, o digital, agora as tarifas, a própria guerra e a defesa. A Europa tem uma série de desafios que só se resolvem com investimento. E a infelicidade deste momento é precisamente essa: o investimento é o canal mais penalizado pela política monetária e pelo nível de incerteza em que vivemos. Portanto, reduzir a incerteza, fazer reformas a nível europeu que promovam o investimento e continuar o ciclo de política monetária — que é importantíssimo que aconteça — para, controlada a inflação, levar a taxa de juro para níveis compatíveis com uma taxa de inflação de 2%, é o conjunto de remédios, digamos assim, que precisamos. Não é fácil, mas acreditando no sucesso que a Europa teve até aqui, acho que podemos conseguir. Depende de nós e, portanto, não se pode dizer que vai acontecer certamente, porque há decisões que têm de ser tomadas. Mas há caminho para fazer, e sabemos qual é esse caminho — o que é a melhor coisa que se pode pedir num momento de incerteza.

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E Cabo Verde? Cabo Verde é um país periférico, com fortes ligações à Europa e à América. Um país onde até a inflação é importada. Que futuro é que esta situação de instabilidade na Europa e agora das tarifas dos Estados Unidos podem influenciar?

Cabo Verde é um pequeno país, aberto, muito aberto. O peso das importações no PIB é enorme, mas Cabo Verde teve a sabedoria de criar mecanismos de estabilidade financeira, cambial e de reservas, de que há poucos exemplos no mundo. Ter um fundo soberano num país que não tem recursos naturais da dimensão que outros países, incluindo africanos, têm, é algo significativo. E a preocupação que, desde há muitos anos, as autoridades cabo-verdianas têm colocado nessa estabilidade — e da qual, também, deixe-me dizer, me orgulho que o Banco de Portugal tenha feito parte, assim como o Estado português, através do acordo cambial e dos mecanismos de apoio, até em momentos de necessidade de liquidez, que felizmente desde 2005 não têm sido utilizados — provam exactamente esta robustez de que estou a falar. É verdade que a inflação é importada, mas também é verdade que o Banco Central de Cabo Verde, como resultado de tudo isto que acabei de referir e do sentido quase cauteloso que tem colocado nos equilíbrios macroeconómicos, apresenta hoje uma inflação muito próxima da área do euro e, felizmente, bastante baixa. É verdade que as taxas de juro são mais altas aqui do que na Europa, mas isso também é a forma que Cabo Verde tem de preservar a dimensão externa, e de não fragilizar a sua capacidade de manter reservas para poder estar presente nos mercados internacionais com uma posição confortável — dentro de uma economia pequena, é verdade, e com recursos escassos, como Portugal, por exemplo, também tem do ponto de vista dos recursos naturais. O caminho que tem sido feito, deste ponto de vista, e olhando para estas dimensões que acabei de referir, é bastante positivo. Não é só a economia que é aberta — temos a diáspora cabo-verdiana espalhada por todo o mundo, que tem uma importância muito grande também no país. Agora, deixe-me dizer-lhe que, na primeira vez que cá vim, em 1990, a ilha do Sal tinha 3 mil habitantes. Hoje tem mais de 40 mil. A ilha do Sal, actualmente, precisa, ela própria, até de migrantes externos a Cabo Verde para funcionar nas suas características económicas. Ou seja, Cabo Verde já é um receptor líquido de emigração, porque os cabo-verdianos têm outras ocupações e, portanto, participa neste conjunto económico global numa posição que, há uns anos, consideraríamos impensável. A aposta na educação, que senti que estava a ser feita, é, mais uma vez, um tema absolutamente crucial para que se reforce esta posição de Cabo Verde no contexto, inclusive, africano. Ou seja, há desafios — não estamos a falar de algo que seja simples, porque nada do que se coloca hoje é simples — mas acredito que já passámos por momentos mais difíceis.

Mas acha que a economia nacional de Cabo Verde vai conseguir escapar a estas ondas de choque?

Vamos todos sofrer. Já disse: não há maneira. Vamos todos passar um mau bocado enquanto este for o registo. Se o registo for permanente, teremos de ter capacidade de nos adaptar. Portanto, aqueles que se adaptarem mais depressa ultrapassarão estas dificuldades mais rapidamente. Pode ser que não seja permanente — há sempre essa esperança. Veja o Brexit. Primeiro fecharam-se as fronteiras à imigração, depois saíram imensas pessoas do mercado de trabalho do Reino Unido, já entraram muito mais do que aquelas que saíram, e agora entram mais do que estavam a entrar antes do Brexit. Quando há decisões que não são óptimas, que não são eficientes, passado algum tempo elas são revertidas. Este meu optimismo quer apenas dizer o seguinte: há um choque, ele merece uma resposta através desse ajustamento, e quem se ajustar melhor responderá melhor. Mas como estamos a falar de ajustamento, estamos inevitavelmente a falar de processos que criam tensões e que não são positivos — não nos iludamos. O que não podemos é soçobrar perante eles. Temos de reagir e temos de encontrar forma de dar resposta. A coisa boa neste momento — se é que posso dizer isto, e isto aplica-se também a Cabo Verde — é que estamos mais e mais bem equipados para isso. Temos uma população mais educada, temos estabilidade de preços que resistiu ao processo inflacionista e retornou ao equilíbrio. Temos poupanças que foram acumuladas em alguns sectores importantes, como as famílias e as empresas, ao longo destes anos. É verdade que temos os Estados, os governos, mais endividados, mas também muitos, incluindo Cabo Verde, fizeram um esforço enorme de redução da dívida em percentagem do PIB. Sem querer, mais uma vez, parecer excessivamente optimista, quero apenas dizer que temos de concitar todos estes detalhes do nosso contexto económico e social para responder a algo que não pedimos, que não nos fazia falta, mas que estamos a viver e que não é positivo.

Falando agora da sua visita a Cabo Verde, entregou no Banco de Cabo Verde materiais de educação financeira em língua cabo-verdiana. O que é que levou o Banco de Portugal a participar nesta iniciativa?

Foi uma junção de factores que coincidiram e que se organizaram para que isto fosse possível. Desde logo a existência de uma dimensão muito forte no papel da literacia financeira do Banco de Portugal, em Portugal, com uma colaboração que surgiu e que foi acarinhada pelo Banco, com uma organização não governamental que é presida pelo Dino d'Santiago e que começou por, numa lógica portuguesa nacional, porque temos uma grande comunidade cabo-verdiana em Portugal, e como esta organização não-governamental faz voluntariado junto de crianças era importante chegar a elas nas diferentes formas como elas pensam, como elas sonham como elas falam e aí colocava-se o crioulo cabo-verdiano. Começou-se a fazer isso para Portugal. Depois, numa conversa em Macau, com o Governador do Banco de Cabo Verde, eu desafiei-o a estender esta iniciativa a Cabo Verde para que pudéssemos ter um conjunto de acções junto de escolas. Esse material foi distribuído a alunos do ensino do primeiro e do segundo ciclo aqui na Praia, e depois tivemos uma sessão com alunos já do secundário. É um movimento de extensão deste braço, digamos assim, voluntário e de literacia financeira que surgiu dessa colaboração com o Dino d'Santiago.

Mostra também a importância da educação financeira junto das camadas mais novas.

Totalmente, totalmente. Como disse no Banco de Cabo Verde, há uma frase: “De pequenino se financia o destino”, que é uma expressão de que gosto e que também já utilizei em Portugal. É muito importante que, desde muito jovens, compreendamos o que é o dinheiro, que não tenhamos medo das questões financeiras. Às vezes parece um papão, porque é uma coisa complexa, que exige muitos números e matemática. Mas é algo com que lidamos todos os dias, que afeta as nossas vidas, e que devemos ter presente e dominar o mais possível desde cedo.

Estes cadernos que começámos agora a divulgar aqui vão desde o período pré-escolar, passando pelo primeiro ciclo, ensino básico e ensino secundário. Promovem uma evolução muito articulada nestes conceitos, tornando-os, obviamente, cada vez mais complexos — à medida que também se tornam mais úteis para nós. E é isso: é, de facto, uma coisa muito, muito importante — a literacia financeira enquanto parte constitutiva da cidadania.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1219 de 9 de Abril de 2025.

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Autoria:André Amaral,12 abr 2025 9:31

Editado porAndre Amaral  em  12 abr 2025 17:07

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