Qual é o significado da Páscoa para os cristãos?
A nossa Páscoa cristã, que tem a sua origem etimológica e religiosa também, a partir dos judeus, assumiu uma outra dimensão, quando Cristo, à semelhança do sacrifício pascal que os judeus ofereciam, assumiu sobre si os pecados da humanidade e ofereceu a sua vida para o resgate, como redenção, digamos como preço a pagar pela maldade que nós os homens fazemos, ofendendo uns aos outros, ofendendo a Deus. Então, isto é pecado, é mau. Portanto, deixa a marca, são dívidas que nós contraímos. Quando ofendemos os outros, contraímos uma dívida para com o outro, que é a reconciliação, o perdão, o amor. Então, é preciso reparar esse mal. Cristo, com a sua morte e ressurreição, reparou esse mal. Então, para nós, a Páscoa dos judeus simbolizava a Páscoa de Cristo no início do Novo Testamento e a verdadeira Páscoa é a libertação da escravidão do pecado, e do mal e do demónio e do maligno e rumo à Terra Prometida, que é o encontro definitivo com Deus, que nós chamamos de redenção, que terá a sua plenitude na salvação quando estamos, digamos, no novo céu e na nova terra. Isto é, no novo estágio de vida, com Deus, de uma forma definitiva, sem o risco de o perdermos. Portanto, Páscoa é passagem. Nós hoje devemos celebrar a nossa Páscoa, que recorda a paixão, morte e a ressurreição de Cristo no passado, mas que se actualiza hoje para nós na nossa celebração. Nós, com Cristo, também queremos passar do mal ao bem, do pecado à reconciliação com Deus, à reconciliação com os nossos irmãos, do domínio sobre as tentações, as fraquezas, de todo tipo, para uma vida de dignidade de cidadãos chamados ao Reino de Deus. Por isso, devemos assumir esse projecto de nos libertarmos de todas as amarras que criam conflitos e formas de opressão recíproca entre nós, para passarmos a viver de uma forma mais fraterna, mais familiar, em consonância com a relação de amizade e de amor que Deus quer ter com todos. É um esforço contínuo e Jesus nos ajuda a fazer esse deserto ainda, porque a Páscoa definitiva será quando cada um e todos juntos, qualquer dia, entrarmos no Reino de Deus em infinitivo, com Jesus Cristo no Paraíso.
Como vê o papel da Igreja na sociedade cabo-verdiana de hoje, especialmente devido aos desafios sociais e económicos?
Olhe, a Igreja está no mundo e faz parte do mundo. Cristo dizia, vós estais no mundo, mas não sois do mundo. Portanto, nós vivemos esse ambiente no mundo, aí como Igreja, e naturalmente que tudo o que diz respeito à vida no mundo também nos toca a nós, como cidadãos deste mundo, a caminho da Pátria Definitiva. Por isso é que estamos perante desafios, mesmo que sejamos nós os principais responsáveis e controladores. A Igreja não toma as principais decisões sobre a economia, sobre a política, sobre a justiça social, porque isso cabe às autoridades civis. Mas são coisas que dizem respeito a nós, com as quais nós nos preocupamos e nos ocupamos, porque dizem respeito a nós e a toda a sociedade no meio da qual nós estamos inseridos. E, naturalmente, que a Igreja é mestra e tem uma doutrina social que serve de orientação para todos aqueles que querem incluir a todos, sem deixar ninguém para trás, como se costuma dizer agora, sobretudo sob a proposta da ONU. A Igreja quer integrar a todos como uma comunidade onde todos devem ter condições para viverem com dignidade e por isso a Igreja, na sua doutrina social, inspira os Estados democráticos que procuram ser justos, portanto, a desenvolver a sua política social. Isto como doutrina da Igreja. Mas nós como cristãos, como também cidadãos deste mundo, devemos fazer tudo, alertar, agir em conformidade e, na nossa estrutura formativa, tentar passar esses valores àqueles que nos governam e que hão de nos governar no futuro, no sentido de que todos os seres humanos são cidadãos, têm os seus direitos, têm também os seus deveres, têm também a sua dignidade e é em conjunto que devemos criar condições para vivermos ao nível dessa dignidade de seres humanos, felizes o mais possível neste mundo, mas numa autêntica relação de solidariedade e de fraternidade. Portanto, o sofrimento daqueles que menos têm, é sofrimento da Igreja e deve ser objecto de preocupação também dos nossos governantes e actores sociais, para que todos possam ter as condições aceitáveis para viverem com dignidade. É uma preocupação, que também nos ocupa nas nossas tarefas e nas mensagens que tentamos transmitir.
Quais são as suas reflexões sobre a questão da pobreza e desigualdade social em Cabo Verde e como a Igreja pode ajudar a enfrentar essas questões?
Bom, a questão está em ligação com a temática anterior. Cabo Verde viveu sempre na sua história com muita pobreza. Hoje ainda há uns que vivem muito bem, há outros que vivem muito mal.Portanto, há uma discrepância muito grande entre os que têm suficiente, às vezes mais do que suficiente, e aqueles que não têm o suficiente. Quer dizer, não era preciso que nós estivéssemos nesse nível agora. Portanto, com uma boa política social e com uma boa educação, também na gestão das coisas, nós poderíamos estar num nível mais igualitário, aproximando-nos da média necessária para todos viverem com dignidade. Igualitária, não por baixo, mas ao menos pela mediana. Por isso, a Igreja incentiva a todos no sentido de nós podermos todos dar o nosso contributo para produzir mais riqueza.Portanto, acima da produtividade é a questão da formação, no sentido de que todos possam desenvolver uma profissão com eficiência e eficácia necessária, no sentido também de os próprios governantes terem uma estrutura de fiscalidade e de distribuição de riqueza, de rendimentos, de modo que haja mais equilíbrio. Mas também eu aproveito para fazer um apelo grande de que cada um de nós e todos nós, do pouco ou do muito que possamos ter, aprendermos e nos empenharmos no sentido de fazermos uma gestão mais racional daquilo de que dispomos porque em Cabo Verde há um grande défice de gestão dos meios que temos disponíveis. Os que têm muito fazem má gestão, habitualmente, esbanjando coisas de uma forma desnecessária. Os que têm o suficiente podiam fazê-lo render mais, com uma boa gestão, e até os que pouco têm, ou quase nada têm, também esbanjam desnecessariamente, portanto, em coisas que não são prioritárias. Portanto, nós devemos desenvolver mais, é um esforço colectivo, o sentido de uma gestão racional dos meios que temos à disposição.
Esta situação resolve-se com o aumento salarial que várias classes profissionais estão a exigir?
O aumento salarial na medida do possível, sim. É preciso. Os salários devem ajustar-se constantemente aos meios disponíveis e às necessidades. Hoje uma família de três, quatro, cinco pessoas, eu imagino como podem viver com um ordenado de 40 contos. Cinco pessoas, 40 contos, pagando renda, o que é que fica para a vida da família, educação dos filhos, água, luz e satisfação das necessidades básicas. Portanto, acho que a exigência do aumento do salário é importante para poder corresponder à necessidade, não só das pessoas individuais que trabalham, mas também da família. O saudoso Papa João Paulo II, ele que é um grande protagonista da política social, e, portanto, da justiça social da Igreja, dizia que o salário devia ter em conta não só o trabalhador, mas também o seu agregado familiar. Porque quem trabalha e ganha o ordenado deve ter condições para alimentar e, portanto, cobrir as necessidades básicas da sua família, o que também, para além de resultado do trabalho individual, é uma questão social. Portanto, a família deve ter as condições necessárias para viver com dignidade. O Estado devia providenciar isto. O Estado e as empresas, mas dentro de uma política social feita em concertação.
Que mensagem deixa aos fiéis na semana da maior festa dos cristãos?
A maior festa dos cristãos é o mistério pascal. Cristo, por amor, se ofereceu a si mesmo em sacrifício por todos. Mesmo quando éramos seus inimigos pecadores. Lembremos que mesmo na cruz, antes da morte, rezando a Deus, Cristo disse: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. Àqueles que lhe tiravam a vida, Cristo retribuiu com o pedido de perdão. Porque ama. Quem ama, cuida. Não é? Portanto, é por isso que nós, cristãos, somos de tal maneira agradecidos, reconhecidos a Jesus, que fez por nós o que ninguém mais poderia fazer. Oferecer a sua vida para o perdão dos nossos pecados. Para, digamos, compensar a culpa das nossas más decisões, das nossas más atitudes e más condutas. Portanto, Ele pagou por mim a dívida que eu tinha. Quando se faz o mal, é como quando a gente vai à loja e compra determinadas coisas. Se comprou, é preciso pagar. Quando fazemos o mal, é preciso compensar, é preciso retribuir, é preciso pagar: é uma dívida que nós contraímos, é preciso pagar. Meu Cristo pagou por mim quando eu próprio não podia pagar. Nós estamos muito agradecidos a Jesus Cristo: a Páscoa é uma celebração de louvor e de gratidão a Deus por tudo o que Ele não só fez no passado, mas continua a fazer agora, ao longo da história por mim e por todas as gerações. É por isso que para nós é a maior festa. A maior festa cristã é a Páscoa do Senhor, que nos libertou da escravidão do pecado e nos levou à dignidade de filhos de Deus, herdeiros da vida eterna. A mensagem que eu deixo é que todos nós possamos sentir essa gratidão para com Deus e essa certeza de como Deus nos ama de tal forma que ultrapassa a nossa capacidade imaginativa. Deus nos ama mais do que nós possamos imaginar. Por isso devemos fazer tudo para lhe mostrar o gesto da nossa gratidão. Não só cantando, rezando, louvando, mas sobretudo pedir-lhe a força e a alegria de sermos agentes do bem, protagonistas do bem. Isto para todos. Os pais de família, que tanto se sacrificam para levar para a frente a família com dignidade, se se juntarem a Jesus Cristo, oferecendo o seu esforço a Jesus e pedindo a Jesus força para cumprir a sua missão até ao fim, eles estão a seguir o mesmo caminho de Jesus Cristo. Sacrificam-se para o bem da família, para o bem dos outros, hão-de receber a sua recompensa. As mães de família que tanto se sacrificam para o bem-estar da família, estão a seguir o exemplo de Jesus Cristo. Então, tomem Jesus Cristo como um aliado, como um amigo, como um companheiro de luta de cada dia. A fé só dá novo sentido àquilo que somos chamados a fazer cada dia. Isso nos coloca numa outra dimensão. Então isso nos dá mais genica, mais força e certamente nos traz mais eficácia naquilo que fazemos. Assim como os governantes também, os chefes das empresas que criam trabalhos para os outros e criam riqueza para a sociedade, assim como os catequistas que transmitem a palavra de Deus, os sacerdotes, os religiosos, as religiosas que se consagram ao serviço da Igreja do Senhor para o bem do povo de Deus. Portanto, quanto mais estivermos unidos a Jesus Cristo, mais saboreamos e vemos que é bom seguir Jesus, fazendo o bem a favor dos outros, mesmo sacrificando-nos, porque também, além do sacrifício do bem pelos outros, isto nos enche de alegria, porque fomos capazes de tornar os outros felizes com o nosso sacrifício, com a nossa entrega, com a nossa abnegação, com a nossa disponibilidade, com o nosso amor. Portanto, é reconhecer em Jesus Cristo o modelo para também nós cumprirmos as nossas obrigações neste mundo por amor, como ele cumpriu a nosso favor. E seremos felizes, tornaremos os outros felizes e Deus nos abençoará a todos na sua glória, na plenitude da sua alegria Pascal, com certeza.Porque todos os protagonistas do bem receberão de Deus a sua recompensa. Que o façamos com amor.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1220 de 16 de Abril de 2025.