O lar de Alécia não é uma casa. É um lar, pois é onde vive com os seus quatro filhos menores, mas não se pode chamar de casa. Por fora, é um mamarracho de chapa, pedaços de madeira, plástico, cortinas e papelão. Por dentro, o cenário é semelhante. Um patchwork de materiais frágeis assentes em terra batida, ou, em alguns “cómodos”, cimento.
Aqui não há luz eléctrica nem água canalizada e os buracos por todo o lado reforçam a vulnerabilidade da construção, que não serve de carapaça protectora à família.
Não é o que Alécia Reis esperava quando, há uns anos, trocou a ilha de Santiago, mais especificamente Calheta de São Miguel onde cresceu, pela ilha do Sal, “em busca do trabalho”.
Quando chegou, em 2018, foi viver com o seu companheiro, numa casa razoável, mas a separação do casal mingou-lhe os recursos financeiros. Arrendou uma casa “de bloco” por três mil escudos mensais, porém essa quantia fazia-lhe falta. Foi quando decidiu comprar aquela barraca.
E assim, desde 2022, esta jovem de 31 anos, que trabalha num hotel em Santa Maria, mãe de duas meninas e dois mocinhos, vive em Alto Santa Cruz, numa barraca para cinco.
Realojamento
Alécia veio numa nova “onda” de habitantes que não foram contemplados com o processo de realojamento, suportado pelo Fundo de Turismo, e em curso no Sal. Isto porque os beneficiários são moradores aí cadastrados até 2019.
Alécia
Este processo, faz parte de duas frentes, uma na Boa Vista, outra no Sal, com o objectivo de erradicar as barracas que anos de ausência de políticas públicas, adequadas e atempadas, para a habitação dos migrantes laborais para as ilhas turísticas, deixaram proliferar.
Desde o início, no Sal, se viu a dificuldade em poder controlar um “organismo” que não pára de crescer. Como referido, o processo iniciou-se em 2019 baseado no cadastro social do bairro, que permitia saber que vivia nas barracas, com quem vivia, o que fazia e quais os seus rendimentos, e que datava de 2017. Mas este cadastro, rapidamente, mostrou estar ultrapassado e teve de ser actualizado. 2019 foi pois o efectivo ponto de partida, refeito o cadastro específico para os moradores dos Alto São João e Alto de Santa Cruz, “instrumento fundamental para mensurar os níveis de vulnerabilidades”. Há então um antes e um depois de 2019.
“Tínhamos de encerrar o cadastro, a parte de gabinete, para poder dar início à acção”, explica o vereador Jucelino Lima Cardoso, responsável, entre outros pelouros, pelo Urbanismo na CM do Sal.
Ainda o passado: logo após essa etapa, veio a COVID e um interregno. Em Junho de 2020, referia a então Ministra das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação, Eunice Silva, em entrevista ao EI, que o investimento no Sal era, na altura, de um milhão e trezentos mil contos, só na requalificação urbana do Alto Santa Cruz e Alto São João, com a construção de edifícios de raiz para colocar as famílias e com a absorção de parte das habitações do extinto programa “Casa para Todos”.
Na altura, disse a ministra que o realojamento efectivo começaria em breve, mas, por vicissitudes várias, foi apenas em finais de 2021 que se deu impulso.
Como lembra, no presente, Jucelino Cardoso, o processo de realojamento já havia começado antes, mas com um número muito reduzido. “Em Novembro e Dezembro de 2021, foi feito o realojamento de 111 agregados familiares”. Dito de outro modo: “conseguimos erradicar 111 barracas”, observa.
O processo continuou. De lá até Março de 2025 contabilizavam-se, no total dos dois assentamentos, 441 realojamentos, cerca de três quartos dos quais de agregados de Alto Santa Cruz.
Em termos de gente, os dados cadastrados mostram que já foram realojadas 2205 pessoas. Esperava, nesta terceira fase, em curso, “realojar mais 65 agregados”, abrangendo 325 pessoas.
Assim, os T1, T2, T3 e T4 do programa de realojamento no Sal, passam a ser a casa de um total de 2530 pessoas.
Para Jucelino Cardoso, não há dúvida de que, apesar de todos os desafios e de algumas demoras, o programa está a ser levado a cabo com sucesso. Aliás, o realojamento de São João é o expoente disso. Neste momento, Alto São João “faz parte do passado”, ou seja, todas as barracas foram erradicadas, congratula-se.
Já Alto Santa Cruz, assentamento maior e mais complexo, ainda deverá levar algum tempo. Uma outra fase de realojamento está já contemplada, com a construção de mais 100 apartamentos, avança.
E outros programas para os cadastrados pós-2019 também estão em andamento.
Mas, primeiro, como estão os já realojados? A resposta rápida à pergunta parece ser: satisfeitos. A mais longa: satisfeitos, mas com algumas queixas.
Tecto, luz e…
Euclides é, entre os nossos entrevistados, aquele que há mais tempo foi realojado. Natural de Achada Riba (Santa Catarina de Santiago), chegou ao Sal há 28 anos. “Vim com a minha tia e gostei”. Voltou para Assomada, mas, depois daquela visita, decidiu que era no Sal que queria tentar a sua vida. Acabou por assentar morada em Alto Santa Cruz. Há cerca de dois, “quase três” anos, chamaram-no da Câmara Municipal e disseram-lhe que tinham um T2 disponível para a sua família. Assim, ele, a esposa e os seus dois filhos mudaram-se.
Está satisfeito. A nova morada é muito diferente da que tinha na zona das barracas. “Alto Santa Cruz não tem nenhumas condições. Não tem casa de banho, não tem quase nada. Aqui há luz, água, tem tudo”, conta.
Euclides
Mas água é coisa que nem todos os realojados têm, apesar de todo o perímetro, incluindo as zonas loteadas ainda sem construção, ter as infra-estruturas necessárias.
A maior parte dos beneficiários mais recentes do programa de realojamento continuam sem pingo nas torneiras. Infra-estruturas e ligação, há, confirmam-nos no terreno, mas, não há contadores disponíveis na Electra, empresa com a qual cada morador deve celebrar contrato em nome próprio. Há muito que não os há.
Pelas ruas, o colorido dos “boiões” amontoados em motocargas, que vão encher ao fontanário, denuncia o tipo de abastecimento.
Maria Eunice Gonçalves, mais conhecida por Tina, é uma das moradoras que não tem água, mas não parece muito incomodada com o facto. Vivia no Alto São João, zona que, certifica, está hoje livre de barracas. Mudou-se no ano passado, junto com o seu marido para as casas de realojamento.
A sua antiga habitação, para onde foi viver depois de deixar de conseguir pagar renda, era de “bloco coberta com chapa”. Era grande, mas entrava poeira, pingava em tempo de chuva. Agora está melhor, diz, minorando a questão da falta de água.
Aliás, todos concordam. “Aqui todos estão melhor que na barraca, há mais conforto”, resume. Ninguém quer viver ao sabor das intempéries, pé na lama e cara ao vento.
Sem fim?
Assim, todos aplaudem a iniciativa de se acabar com as barracas, mas os próprios moradores sabem que não é fácil.
Há quem chame aos assentos informais, bairros de génese espontânea. E às vezes parece que são mesmo um organismo que cresce, se adapta e organiza, como se tivesse vida própria, ao sabor das necessidades.
Voltamos a Tina. Natural da Praia, mais concretamente de Tira-Chapéu, chegou ao Sal há já muito tempo. Quantos anos, nem lembra ao certo. “Eu era jovem, agora já tenho 62 anos”, observa, sem contabilizar. Na altura não havia muitas oportunidades na Praia. Encontrou-as aqui, nesta ilha turística, onde começou por trabalhar num hotel. Depois, uma lavandaria. Depois na Cabocan, depois… o currículo é longo, muitas vezes marcado por empregos temporários e intermitentes, um pouco por toda a ilha. Agora está “parada”.
Maria Eunice
Da sua vivência na zona, é conhecedora das dificuldades em erradicar as barracas.
“As barracas não acabam porque quando os moradores de uma saem e esta é derrubada, outros estão a fazer uma nova”, diz. E embora se reconheça que a fiscalização é pouca, também referem que nunca será suficiente. É um jogo de “1,2,3, Macaquinho do chinês”.
“Se o fiscal está ali, eles param, o fiscal vai embora, eles recomeçam...”
O desafio de conter a construção de novas barracas era previsível desde o início do programa, sentido logo no seu arranque. Foi mais fácil, por exemplo, reter essa expansão na Boa Vista, com a circunscrição do Bairro da Boa Esperança. Como o Alto Santa Cruz é mais disperso, o controlo é mais complicado, explicou o governo, na altura.
Do lado da Câmara Municipal, Jucelino Cardoso reconhece que esta não “conseguiu dar toda a cobertura em matéria de fiscalização”. Essa dificuldade deve-se essencialmente às condições para trabalhar nos horários em que se constrõem as barracas, geralmente de noite ou de madrugada. A isto soma-se “um fluxo migratório, sistemático”, o que resultou no aparecimento de novas construções, mesmo após o arranque processo, “mas não muitas”, salvaguarda.
“Ao fazermos a visita, se vemos uma barraca que não estava [no dia anterior] passamos para a demolição”, diz, garantindo que, actualmente, o processo já decorre de forma mais tranquila, havendo já, inclusive, legislação para “disciplinar o processo de forma justa”.
A fiscalização, entretanto, deverá ser intensificada, e “muito em breve haverá uma empresa responsável por controlar todo o perímetro” onde já foram erradicadas as barracas, evitando o surgimento de novas construções ilegais.
Assim, avisa contra a tentação de construir uma barraca esperando receber uma casa. “O que irá receber é uma coima e a barraca será demolida”.
Mão dura para garantir o sucesso de uma iniciativa em que quem mais ganha são as pessoas que vivem naquelas condições, não os políticos, diz.
Olhando o panorama geral, o vereador salienta, pois, que apesar do sucesso do que até agora foi conseguido ser “gratificante”, mas não se pode parar, “dormir na sombra”. O trabalho é contínuo. “Sal é uma ilha que tem Cabo Verde dentro dela, pessoas de todas as outras ilhas, e também da Costa da África. É sempre desafiante, esse boom” de população.
Da parte do governo central e local, sublinha, tudo está a ser feito para esse sucesso, mas “é preciso também a colaboração de todos”, um djunta mon pelo bem comum.
Renda
Ana Maria, de Janela, Santo Antão, veio para o Sal há 25 anos. É mais uma história de quem chegou à procura do emprego que faltava na terra natal. Assentou tralhas e vida em Alto Santa Cruz, onde morou durante muito, muito tempo.
No dia 3 de Julho de 2024, Ana Maria mudou-se com um neto que criou desde pequeno para uma nova habitação. Um apartamento, perto de onde tinha a sua barraca, no bloco mais recente do programa e último (até agora) a ser habitado. Na zona das barracas moravam também seis filhos - “eram sete, Deus levou um”. Todos eles, conta, já haviam ido também “para essas casas”, ou seja, para as casas do programa de realojamento (a que muitos moradores ainda chamam de “Casa para Todos”). “Alguns já foram há quase três anos”, contabiliza.
Ana
Perto de fazer 60 anos, Ana que trabalhou para o Estado, em Santo Antão, e depois como empregada doméstica no Sal, não recebe qualquer pensão ou reforma. Quem paga os três mil escudos de renda da sua casa é o neto com quem mora.
“Aqui todo o mundo paga” renda, conta. Alguns pagam até seis mil escudos, acrescenta um vizinho que, ouvindo o seu testemunho, se junta à conversa.
A renda é sempre uma questão polémica. São muitos que querem casa própria e não arrendada. Embora elogiem a melhoria das condições de vida, é essa a mentalidade que persiste. Mas aqui a principal queixa é o valor que consideram elevado.
Uma opinião que a CM não partilha. O programa de realojamento rege-se por um sistema de gestão de arrendamento de habitação social, sendo que deve ser declarado o rendimento. Com base neste, é determinado o valor de uma prestação mensal, que será, no mínimo de 700 escudos.” É um valor simbólico”, essencialmente para valorizar o espaço ocupado, aponta Jucelino Cardoso. Entretanto, o valor não é estático e vai depender da dinâmica do próprio salário da pessoa, podendo a qualquer momento ser pedida a reavaliação do diagnóstico socioeconómico.
Entretanto, o programa do realojamento não contempla modalidade de compra. O domínio directo é sempre do Estado, sendo que é passado para o morador o domínio útil, ou seja, o direito de usar e habitar a casa, sem que isso implique a sua posse plena.
São contratos de 10 anos, prorrogados em caso de interesse. Mas, na prática, o vereador, “a família fica com a casa, porque vai passando de geração em geração”.
Condomínio
Uma outra queixa, comum na habitação social e também aqui registada, é a questão do espaço privado. Ana Maria, por exemplo, lamenta não é ter um espacinho aberto que seja só seu. “Não tem uma varanda, é só lá dentro. Tudo o que se tem de fazer, tem de se fazer lá dentro”, reclama.
Nem sítio privado há para estender a roupa a secar, acrescenta. Por isso é normal, e vemo-lo em quase todos os novos blocos, os pátios dos condomínios coloridos com muita roupa ao vento, de vários inquilinos.
Além disso, queixa-se ainda, gostaria de ver mais espaços de lazer.
Com o espaço comum – o pátio e zonas exteriores – altamente partilhado, uma questão importante é a vida em condomínio. No bloco de Euclides, um dos mais antigos, moram quatro famílias. Apesar de ter pouco contacto entre os vizinhos, pois trabalha em Santa Maria e passa o dia fora de casa, garante que no seu bloco são todos organizados e “não há nenhum problema.”
Também no bloco de Tina “não há guerra. É cada um em sua casa”. Todos referem a boa vizinhança, mas a Câmara está ciente da dificuldade em gerir espaços conjuntos. Assim, garante que já tem em curso medidas para evitar dificuldades de convivência e manutenção dos espaços.
“Este processo é por etapas. Estamos no processo de realojamento, que queremos concluir. Depois, há uma outra fase do programa que consiste em formar e dialogar com esses beneficiários, organizá-los em Associação de moradores, porque eles vão gerir esse espaço”, especifica o vereador Jucelino Cardoso, avançado que há já um plano para formação em boa vizinhança e como cuidar do património.
“A Câmara vai colaborar, cuidar do espaço verde, a parte exterior, mas a escadaria e o acesso às habitações, serão os beneficiários. Há que ter um sentido de pertença para melhor cuidarem desses apartamentos”, acrescenta.
Pós-2019
O programa de realojamento não é o único em curso no Sal para a erradicação das barracas.
Moradores como Alécia, com quem começamos este texto, que chegaram ao Alto Santa Cruz depois de 2019, e, ficaram de fora do programa, podem ser beneficiários de outras iniciativas, bem como moradores de barracas de outras localidades.
“O Alto Santa Cruz é o epicentro em termos de bairro de génese ilegal. Há outros pequenos focos, sob controle, que estamos a resolver, não fazem parte deste processo de realojamento, mas no nosso programa complementar de habitação”.
Dentro dessas políticas complementares estão a atribuição de terrenos por direito de superfície, um regime mais flexível e moderno do que o aforamento.
Como explica Jucelino Cardoso, esse novo regime adoptado, no caso concreto, consiste na atribuição de um terreno de cerca de 120 metros quadrados, na cintura de Chã Matias Norte, com planta de localização, projecto de arquitectura, projecto de engenharia, assistência técnica, (ou seja, apoio de um engenheiro para acompanhar a construção) e também algum apoio em material.
Vereador Jucelino Cardoso
“Tivemos também uma experiência, em Palmeira, de construir casas com quintais, e futuramente podemos aplicar nessa zona [Alto Santa Cruz], porque o bom crioulo gosta sempre que tenha um espacinho extra na casa”, pondera-se ainda.
No actual bairro Alto São João, também já foi feito o loteamento, dentro dessa política. “São lotes pequenos, 90 metros quadrados, mas tudo será optimizado em matéria de construção, espaços verdes, espaços públicos. Portanto, um bairro a conferir toda a dignidade que se requer.”
Alécia, por sua vez, já foi à CM ver as possibilidades de conseguir um terreno, nunca mais lá voltou para saber quais as suas opções, como nível 1 do Cadastro Social. “Eu não gosto de pedir. Tenho muita vergonha, sempre trabalhei para sustentar os meus filhos, nunca pedi nada... ”. Acredita estar na fila de espera, e enquanto aguarda, vai sonhando com uma casa onde as noites de chuva não sejam passadas em claro e onde o seu codé, Gabriel, não tenha as alergias e os problemas no couro cabeludo que lhe apareceram desde que se mudou para a barraca. “A pediatra disse-me que não podia deixar os meninos brincar na terra. Eu respondi: se eu moro na terra, como os meninos não vão brincar na terra?…”
Talvez em breve possa usufruir das tais políticas complementares, num espaço em que a terra vai dando lugar a blocos e ruas calcetadas. Algo que, sublinha reiteradamente o vereador Jucelino Cardoso, não é cosmética.
“Tudo isto não foi feito para uma limpeza estética, mas sim para conferir dignidade habitacional a essas famílias que ali residiam”, garante. Mas, como lembra o caso de Alécia, ainda há muito a fazer…