Mesmo sem nenhuma formação ou equipamento adequado para mergulho, esses homens podem chegar a 20 metros de profundidade com o objectivo de actuar como guias de pesca. Ou seja, guiar os peixes usados como iscas para as redes dos pescadores.
O Expresso das Ilhas foi à Cidade Velha e a Porto Mosquito, dois pontos que acolhem pessoas que entre búzios e iscas para a pesca do atum e de outras espécies encontram o seu ganha-pão. São mergulhadores artesanais, herdeiros de um saber empírico passado de geração em geração.
Em Porto Mosquito, falamos com Fredy Gomes, de 20 anos, que mergulha há apenas dois meses. Com o tempo de experiência já consegue ir até aos sete metros de profundidade, onde fica por, no máximo, duas horas. Aprendeu com o irmão.
Mergulha, conforme conta, para pescar as iscas. O irmão fica no alto mar e, ao primeiro sinal de Fredy, faz sinal aos pescadores que ficam nos botes para lançarem a sua rede.
“Uso garrafa, máscaras, barbatanas e colete”, diz. No jargão local, a “garrafa” refere-se ao cilindro de ar comprimido usado para prolongar o tempo submerso. A garrafa foi oferecida ao irmão por alguém que já não a usava. A condição não é das melhores, mas o jovem garante que nunca teve problemas por causa disso.
“Após mergulhar com a garrafa, por estar enferrujada, bebemos leite para combater a ferrugem que possa ter entrado no organismo. Sabemos das condições da garrafa, mas não temos outra. Uma seminova pode custar mais de 18 mil escudos e, com essa, gasto 500 escudos para encher”, detalha.
Dantes, as garrafas eram enchidas na cidade da Praia. Agora também em Rincão onde alguém decidiu trazer ar comprimido do estrangeiro e vender.
Clau Tavares, também de Porto Mosquito, é pescador, mas mergulha ocasionalmente. “Comecei por necessidade, para apanhar isca”.
Ao contrário de Fredy, Clau não usa garrafas. Ainda assim consegue alcançar 10 a 12 metros de profundidade. O tempo que passa debaixo da água, entretanto, depende da profundidade.
“É cansativo, mas faço manobras rápidas. Às vezes, durante uma hora tentamos juntar as iscas, subindo e descendo. Costumamos ter quatro ou cinco botes à espera da isca”, descreve.
Isto tudo apenas com máscara e barbatanas.
Clau confirma que os pescadores locais não têm treino.
“Há apenas um que tem formação em mergulho, a maioria não tem. E mergulhamos sempre. Já estamos habituados, não sentimos mal-estar. Só cansaço”, afirma.
O tempo no fundo do mar é estimado por instinto. “Descer e subir leva um ou dois minutos. É rápido. Aqui há apenas um jovem que teve um acidente com a garrafa. Apanhado pela rede, a garrafa secou e não conseguiu subir. Foi salvo por outros pescadores que o levaram à cidade da Praia, onde foi internado. Ficou doente durante muito tempo, mas recuperou”, conta.
Como corrobora, nenhum dos pescadores ou mergulhadores de Porto Mosquito tem formação em primeiros socorros. “Aprendemos em casa, com os mais velhos. Foi assim que o jovem foi salvo”, reforça.
Com mais de 40 anos no mar, Clau conhece várias histórias de acidentes. “Em Porto Mosquito não aconteceram muitos, mas oiço sempre casos da cidade da Praia. É um número elevado”, aponta.
Cidade Velha
António, conhecido por Tony de Cidade Velha, mergulha há 22 anos. Começou quando tinha apenas dez.
“Ia com os rapazes mais velhos no bote, colocava a minha máscara e barbatanas e ficava na ‘porta’ para não deixar os peixes fugirem. Mas na altura eu não entendia muito bem o trabalho e, às vezes, o peixe escapava”, recorda.
A experiência foi-se acumulando e hoje trabalha por conta própria. Faz mergulho livre para apanhar iscas vivas – como dobradas, arenques e chicharrinhos. Também pratica caça-submarina com espingarda de mar.
“No fundo do mar, é preciso tomar o oxigénio, concentrar-se e colocar o que puder dentro do corpo. Depois, é ir a libertar aos poucos, senão o pulmão queima com o dióxido de carbono. Aprendi com os mais velhos e fui fazendo pesquisas. Nunca fiz curso de mergulho”, explica.
Tony já atingiu 24 metros de profundidade sem garrafa. Contudo, possui duas, enviadas por uma tia nos Estados Unidos, mas ainda não as usou. “Quero, antes, ter aulas com um profissional. Muitos usam as garrafas sem respeitar as regras e acabam com problemas de saúde”, reconhece.
Num ambiente onde, segundo Tony, não existem normas de segurança, acidentes não são incomuns.
“Conheço um rapaz daqui que ficou com problemas de audição. Ao mergulhar, o ar entra nos ouvidos e ao descer a água comprime esse ar. Se não se libertar, o tímpano sofre”, relata.
Tony já passou por momentos perigosos em baixo da água. “Por vezes, o corpo dá sinais de que é preciso subir, mas resistimos devido a um peixe. Por causa disso, já subi zonzo, só recuperei depois de respirar”, recorda.
Ouvimos também a história de Ricardo de Cidade Velha, como prefere ser chamado, que mergulha há mais de 30 anos. Teve um acidente grave.
“Confiei demasiado em mim e bati no fundo. Quando olhei para cima, vi o quão fundo estava. Tive de fazer todo o esforço do mundo para subir. A cinco metros da superfície, tirei a máscara e o tubo. Quando cheguei acima, parecia que sonhava. Só eu sei o que senti”, narra.
Depois, fez uma exclamação – "Ave Maria" – e perdeu o fôlego de reserva. “Boiava, fazia exercícios de respiração até recuperar. Deus é amigo de quem é amigo dele, sobretudo dos mergulhadores”, salienta.
O incidente deixou marcas. “Fiquei frágil, como alguém que esteve meses numa cama de hospital. Continuei a fumar e a tosse não parava. Estive um mês internado. O meu pulmão abriu-se com o esforço”, relata.
Entretanto, Ricardo continua a mergulhar, apenas com máscara e barbatanas. A sua antiga garrafa foi apreendida no Sal. “Estava velha, não podia ser usada. Mas trabalhava numa embarcação. Expliquei que era de Santiago e só estava lá pelo trabalho. Perdoaram-nos, porque estávamos à procura de pão para os nossos filhos”, diz.
O sistema, denuncia, ignora a segurança. “Quem nos arranja trabalho nos barcos quer saber onde se aluga garrafas, não sobre as suas condições destas. Se não aceitarmos mergulhar com a garrafa velha, mandam-nos sair. Hoje mergulho a peito. Consigo descer até 20 metros e subir mais 20, só com o pulmão”, orgulha-se.
Cidade Velha conta com cerca de 30 mergulhadores
Elísio Correia Lopes, presidente da cooperativa de pesca, turismo e agropecuária de Cidade Velha, diz que a localidade conta com cerca de 60 pescadores e 30 mergulhadores. Quanto aos mergulhadores, confirma que a maioria não possui equipamentos adequados e nem formação para esta prática.
“Temos em andamento projectos que visam ajudar os pescadores e os mergulhadores. Por exemplo, conseguimos o financiamento para a fibragem de 32 botes e restam apenas nove”, exemplifica.
A cooperativa também quer instalar uma loja de pesca. “Não temos uma aqui. Quando precisamos de alguma coisa, temos de ir à Praia. No nosso projecto incluímos equipamentos como barbatanas, máscaras e espingardas, que são caros e muitos não tem condições de comprar. Uma das instituições já garantiu que, se tivermos um espaço, podemos receber financiamento para adquirir esses equipamentos”, complementa.
Para a cooperativa é importante ter essa loja de pesca que vende equipamentos de mergulhos para evitar mortes. Aliás, Elísio Correia Lopes, recorda a morte de um mergulhador atribuída à falta de equipamento e à demora no resgate por ausência de material adequado.
“É um mergulho inseguro e de alto risco”
Joseane Silva é instrutora de mergulho com experiência em formações a nível nacional e tem em andamento o projecto Spritu di Mar que se propõe, no futuro, a ser um espaço de formação e partilha, onde se oferecerão aulas de mergulho, natação, conservação marinha, autoconhecimento, auto valorização e gestão comunitária.
Actualmente, Joseane trabalha com os pescadores, peixeiras e mergulhadores de Porto Mosquito e Cidade Velha e diz-se preocupada com os mergulhos feitos pelos homens e jovens dessas comunidades.
“Para ser sincera, o mergulho praticado por essas pessoas é de alto risco, porque a maioria, para além de não ter formação, não tem noção do quão prejudicial esse mergulho com a garrafa é. A maioria usa a garrafa para lhes permitir estar mais tempo no fundo do mar. Mas o uso da garrafa tem regras”, alerta.
A utilização destes equipamentos sem conhecimento técnico adequado pode ter consequências sérias para a saúde.
“Quando falamos em garrafa, o termo usado por eles, falamos de ar que está ali comprimido e no mar existe uma diferença de pressão relativamente a onde estamos. A maioria dessas pessoas não se dá ao trabalho de saber as consequências dos instrumentos que usam e como devem usá-los”, explica a instrutora.
Segundo Joseane Silva, a falta de paragens de segurança durante a subida, o uso prolongado da garrafa até ao limite e a ausência de equipamentos essenciais como computadores de mergulho e coletes estabilizadores agravam os riscos.
“É um mergulho inseguro e de alto risco. Falamos de risco de morte, principalmente, e muitos deles acabam por ficar paraplégicos”, avalia.
A ambição de garantir um bom sustento leva muitos mergulhadores a ignorar os procedimentos básicos de segurança e o mergulho é feito no 'faxi-faxi'. Ou seja, explica Joseane, quanto mais rápido chegarem ao fundo, fizerem a pesca ou apanha de búzio e encherem o saco, mais rápido sobem para voltarem a descer enquanto tiverem ar na garrafa.
“E muitos deles usam aquela garrafa até secar mesmo”, afirma.
Conforme a mergulhadora, entre os equipamentos considerados indispensáveis para uma prática segura estão o regulador, o computador de mergulho, o colete estabilizador, a máscara, as barbatanas e o cinto de lastro (chumbo).
Mas, na prática, a maioria dos mergulhadores apenas dispõe de uma garrafa, regulador, máscara, barbatanas e uma estrutura para prender a garrafa ao corpo, o que, segundo Joseane, já representa um risco adicional.
“Isso é um primeiro risco porque exige muito esforço no fundo, devido ao peso. A natação fica mais esforçada e é outro contribuinte para uma doença descompressiva quando se faz muito esforço no fundo”, explana.
Joseane diz que a mudança de mentalidade tem sido lenta e que há uma certa resistência em utilizar equipamentos mais modernos.
“Usam um tom de brincadeira para dizer que têm tantos anos de mergulho sem colete ou sem computador”, exemplifica.
Inexistência de uma câmara hiperbárica no país agrava ainda mais o quadro
Para Joseane Silva, a inexistência de uma câmara hiperbárica no país agrava o quadro já que em caso de acidentes de mergulho, como doenças descompressivas provocadas por má gestão da pressão do ar, o tratamento mais eficaz é a oxigenoterapia.
“Acho que uma câmara hiperbárica devia ser uma prioridade. O Governo devia ter sensibilidade em relação a isso porque em casos de acidentes a pessoa vai receber oxigénio a 100%”, defende Joseane.
Além disso, o custo elevado e a difícil acessibilidade aos equipamentos são apontados como barreiras. “Não temos lojas específicas que vendem equipamentos de mergulho. Quem quiser, tem de mandar vir de fora ou procurar um centro de mergulho que queira trocar os equipamentos”, explica.
Esta realidade leva muitos a utilizarem garrafas e outros equipamentos em segunda mão, sem verificação do seu estado. “A maioria das pessoas aqui usa equipamentos em mau estado. Porque são equipamentos passados de tempo em tempo e não sei se fazem a fiscalização, se procuram saber qual é o estado da garrafa”, lamenta.
Também a qualidade do ar fornecido para encher as garrafas deixa a desejar, conforme Joseane.
“Já fui a um local onde os mergulhadores enchem as garrafas e a primeira vez que enchi a minha fiquei desapontada. O ar não era do melhor. Têm que fazer a troca do filtro do compressor e, às vezes, no intuito de poupar, não o fazem”, alega.
Mas, afinal, o que são doenças de descompressão?
Segundo a pneumologista do Hospital Agostinho Neto, Diva Sanches, as doenças de descompressão ocorrem quando os gases dissolvidos no sangue e nos tecidos, principalmente o nitrogénio, formam bolhas devido a uma rápida diminuição da pressão.
Esta situação, explica, acontece geralmente durante a subida após um mergulho, podendo também ocorrer noutras situações de variação brusca de pressão, como em voos de altitude.
A médica divide a condição em dois tipos principais. “A doença de descompressão tipo I tende a ser mais leve, e afecta articulações, pele e vasos linfáticos. Já o tipo II pode pôr a vida em risco, ao afectar órgãos vitais como o cérebro, a medula espinhal, o sistema respiratório e o sistema circulatório”, explana.
Como estas doenças se manifestam varia, mas envolvem frequentemente sintomas como dor nas articulações e músculos, fadiga extrema e, nos casos mais graves, alterações neurológicas significativas.
“A medula espinhal é particularmente vulnerável. Dormência, formigueiro, fraqueza nos membros e até paralisia irreversível podem surgir horas após o mergulho”, alerta Diva Sanches.
Problemas urinários e dificuldades respiratórias também são sinais a ter em atenção.
Conforme a especialista, os sintomas podem surgir entre uma a seis horas após o mergulho, mas nem sempre são imediatamente reconhecidos como uma urgência médica. “É comum começarem de forma subtil e só mais tarde atinjam o seu pico”, acrescenta.
O diagnóstico é feito sobretudo com base na história clínica do paciente e nos sintomas apresentados, embora exames como tomografia computorizada, ressonância magnética e radiografias possam ser utilizados como apoio. No entanto, em Cabo Verde, os recursos para lidar com estas situações são limitados.
“No nosso hospital ainda não temos uma câmara hiperbárica, que é o tratamento de referência nestes casos. Quando recebemos doentes com sintomas compatíveis, recorremos à administração de oxigénio, o que, felizmente, tem tido boa resposta”, afirma a médica.
Apesar da ausência de estatísticas formais, Diva Sanches confirma que podem surgir casos, ainda que muito raramente, entre mergulhadores profissionais ou artesanais.
Os factores que aumentam o risco de desenvolver a doença são diversos, como mergulhos em águas frias, desidratação, viagens de avião após o mergulho, obesidade, idade avançada, subida rápida ou falha nos procedimentos adequados de descompressão.
Quando os mergulhadores profissionais ou artesanais procuram atendimento médico, a pneumologista aponta que são encaminhados para serviço de urgências ou consultas especializadas segundo os sintomas.
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A câmara hiperbárica é um equipamento médico utilizado para realizar a oxigenoterapia hiperbárica, um tratamento no qual o paciente respira oxigénio puro em um ambiente com pressão atmosférica aumentada. Esse procedimento permite que uma maior quantidade de oxigénio seja dissolvida no sangue, acelerando a cicatrização de tecidos. É indicada para diversas condições, incluindo problemas decorrentes de mergulhos, como a doença descompressiva.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1221 de 23 de Abril de 2025.