Gravidez ainda condiciona percurso profissional das mulheres em Cabo Verde

PorSheilla Ribeiro,24 mai 2025 8:46

A legislação cabo-verdiana determina que qualquer empregador que afaste uma mulher grávida do trabalho ou provoque instabilidade para forçá-la a sair pode ser punido com uma coima equivalente até um ano de salário. Apesar de serem minoritários, casos de despedimento de mulheres grávidas ainda ocorrem em Cabo Verde, sobretudo em contextos laborais mais precários.

Keila (nome fictício) tem 23 anos, trabalha como empregada doméstica desde os 17 anos, sem a providência social. Entretanto, em Abril passado, perdeu o emprego por estar grávida.

No início da gravidez, ao informar a patroa sobre a sua condição, a mesma sugeriu que interrompesse a gravidez.

“Chegou até a oferecer pagar pelo procedimento numa clínica privada. Fiquei chocada, fiquei triste e até hoje arrependo-me de não ter respondido como deve ser”, lamenta.

A jovem afirma que mesmo depois da proposta continuou a trabalhar naquela casa porque precisava de dinheiro para realizar os exames pré-natal e preparar a chegada do filho.

Contudo, ao decidir continuar a trabalhar com a sua patroa, de quinze mil escudos, passou a receber apenas dez mil escudos mensais, trabalhando de segunda a sábado, oito horas diárias.

“Contratou outra pessoa que passou a receber aquilo que eu recebia. Isso em Dezembro. Desde então eu era cada vez mais colocada à parte, o que doeu ainda mais do que a proposta de abortar”, ressalta.

Segundo a jovem, a gravidez seria inconveniente para a patroa, já que muitas vezes ficava até muito mais tarde no trabalho, por vezes dormia em sua casa para lhe ajudar com um ou outro assunto.

“Inoportuno e cruel”

Nesta reportagem também ouvimos a história de Milene (nome fictício) que começou a trabalhar numa instituição pública ligada à saúde com um contrato de prestação de serviço, inicialmente válido por seis meses, mas depois foi renovado.

Grávida e em pleno desempenho das suas funções, nunca suspeitou que, nove dias após dar à luz e ainda em ambiente hospitalar, receberia uma carta de rescisão.

“Tive o meu filho. Uma semana depois, fomos internados porque o bebé estava com uma infecção no rim. Após estar internada, ligaram-me da instituição. Disseram que tinham um documento para eu assinar e que o condutor ia ter comigo. Quando abri o envelope, encontrei a carta de rescisão”, conta.

O momento foi, segundo Milene, “inoportuno e cruel”. “Imagine, no pós-parto, com o seu filho internado, sem saber o que ele tem. Foi nesse momento que recebi a carta de rescisão”, lamenta.

Além da dor emocional de ver o seu recém-nascido lutar contra uma infecção, Milene enfrentou a insegurança de ficar subitamente sem rendimentos. “Durante aquele tempo todo, eu dizia a mim mesma que não podia chorar, tinha de me focar no meu filho. Mas, por dentro, estava em frangalhos. Sentia-me inútil”, lembra.

Ao receber a rescisão, a jovem foi informada que teria direito a férias, mas nunca as recebeu. Decorrido três meses, até considerou lutar pelos seus direitos. Entretanto, foi informada por amigos que já tinha passado muito tempo, então nada podia fazer e que uma vez que tinha apenas um contrato de prestação de serviço era normal esse procedimento.

“A expectativa era que eu falhasse por ser mãe”

Luísa (nome fictício), engenheira de energias, vive hoje um momento de estabilidade profissional. Trabalha e concilia a vida profissional com a maternidade de uma filha de sete anos. No entanto, nem sempre foi assim.

Ao Expresso das Ilhas, Luísa conta que foi alvo de insinuações e implicações por ser mãe, algo que pesou na decisão de deixar o emprego.

“No início, até parecia que estava tudo normal. Mas, ao fim de algum tempo, começaram as implicâncias por eu sair no meu horário para ir buscar a minha filha. Embora compensasse qualquer atraso, isso nunca foi tido em conta”, relata.

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A engenheira recorda que esta pressão foi crescendo ao ponto de a gerente, também mãe, questionar reiteradamente as suas saídas “às pressas”, mesmo quando estas ocorriam após o fim do expediente.

“Terminar o turno e sair passou a ser mal visto. Cheguei a ser chamada pela gerente para justificar porque não ficava além da minha hora”, lembra.

Luísa menciona ainda que, em certa ocasião, quando a filha adoeceu e precisou levá-la ao médico, apresentou o devido comprovativo médico. Apesar disso, sentiu que a situação gerou mal-estar.

A discriminação não se limitou ao seu caso. Conforme conta, quando a empresa iniciou um processo de recrutamento, Luísa testemunhou a exclusão de candidaturas femininas com base no género e na parentalidade.

“Disseram-me claramente que não iam contratar mulheres porque, segundo eles, mulheres têm limitações físicas e emocionais, e se tiverem filhos, pior ainda”, declara.

Embora nunca tenha sido ameaçada de despedimento de forma directa, Luísa confessa que sentiu pressão suficiente para considerar sair. “Levaram-me ao limite. Só não pedi demissão logo, porque ser mãe também me deu força. Sabia que tinha alguém que dependia de mim”, complementa.

Hoje, com outro percurso e novas responsabilidades, Luísa refuta a ideia de que a maternidade compromete a competência profissional. “As acções falam por si. Cumpri tudo o que me era pedido e mais ainda. A expectativa era que eu falhasse por ser mãe, mas os resultados mostraram o contrário”, comenta.

Entidades representativas confirmam casos

A presidente da Associação de Trabalhadores Domésticos de Cabo Verde, Maria Gonçalves, confirma que a associação recebe algumas queixas de mulheres que são demitidas devido à gravidez.

“Temos recebido algumas queixas de empregadas domésticas que perdem o emprego devido à gravidez. São trabalhadoras que procuram a associação a pedir apoio e denunciam que não recebem o direito estipulado pela lei”, afirma Maria Gonçalves.

Conforme explica a responsável, as empregadas são demitidas logo após anunciarem a gravidez aos patrões ou perdem o posto de trabalho durante a licença de maternidade.

“Ou seja, aquelas que não perderem o emprego devido à gravidez, também não recebem o que têm direito durante o período de licença de maternidade, correndo até risco de perderem o emprego. Vão ter o filho e quando regressam não são aceites de volta”, aponta.

A presidente da associação comenta que a maioria das empregadas domésticas conhece os seus direitos, mas evitam denunciar irregularidades às autoridades competentes por receio de represálias ou pela morosidade da justiça.

“A maioria conhece os seus direitos. Mas mesmo assim, com a morosidade da justiça e o medo de sofrer represálias, acabam por não denunciar situações que violam os seus direitos e por isso muitas situações não são do conhecimento público”, enfatiza.

Por seu turno, o presidente do Sindicato da Indústria, Agricultura, Comércio e Serviços Afins (SIACSA) afirma que ainda há mulheres grávidas ou no pós-parto despedidas, particularmente no comércio e hotelaria.

“Temos algumas queixas recorrentes de mulheres demitidas pela gravidez. Principalmente mulheres que trabalham nas lojas chinesas; quando os patrões percebem que as mulheres estão grávidas, rescindem o contrato”.

“E também quando voltam da licença de maternidade; para não darem a dispensa de amamentação, acabam por demitir as mulheres”, relata o sindicalista.

Segundo Gilberto Lima, este tipo de prática também verifica-se nas unidades hoteleiras, onde a gravidez continua a ser vista como um impedimento para o desempenho de certas funções.

“Alguns hotéis não toleram que as mulheres engravidem porque, quando engravidam, não podem trabalhar, por exemplo, como camareiras ou fazer trabalhos mais pesados”, explica.

Embora admita que o número de queixas formais não seja elevado, o presidente do SIACSA alerta que é um número expressivo e que há sempre o risco de aumento.

Além disso, refere que muitas situações não chegam a ser denunciadas. “Em Cabo Verde, em termos de denunciar situações, sobretudo por parte das mulheres, é um pouco complicado. As pessoas não gostam de dar a cara para denunciar”, enfatiza.

Quando o sindicato recebe situações do tipo, Gilberto Lima diz que o SIACSA dialoga com a entidade empregadora e que alguns acabam por retroceder na sua decisão.

“Mas nem sempre isso acontece, e quando assim é, dirigimo-nos à Direção-Geral do Trabalho e pedimos apoio para resolver o problema”, explica.

Apesar dos entraves, o sindicato tem conseguido resolver vários casos, recorrendo ao diálogo e, quando necessário, à negociação.

“Já ganhámos vários casos nesse sentido. Saímos vitoriosos de um caso que aconteceu na Praia, temos casos na Boa Vista, no Sal, em São Vicente…temos que negociar, mostrar que é um acto desumano. Ninguém pode ser impedido de engravidar e muito menos de perder o emprego devido à gravidez ou no pós-parto”, diz.

Outra situação frequentemente reportada ao sindicato diz respeito ao tempo de dispensa para amamentação, que, segundo a lei, deve ser de 90 minutos diários.

No entanto, muitos empregadores interpretam a lei de forma errada ou deliberadamente restritiva.

“Quando as mulheres têm o seu bebé e vão pedir licença para amamentar, os patrões alegam que por trabalharem num turno têm direito a apenas 45 minutos, quando a lei diz que a mulher tem direito a 90 minutos, uma hora e meia. Isso tem acontecido”, denuncia.

Assédio lidera queixas laborais no ICIEG, mas entre empregadas domésticas há relatos de despedimento por gravidez

Enquanto as queixas laborais recebidas directamente pelo Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) se concentram, sobretudo, em casos de assédio, entre as trabalhadoras domésticas, o cenário é um pouco diferente.

“A experiência que temos tido no ICIEG, em termos de queixas e denúncias directas, prendem-se com situações de assédio, exclusivamente. Não temos tido queixas de outras situações, seja em que sector for, porque as mulheres procuram, e bem, outras entidades com maior responsabilidade nessa matéria, como a Direção-Geral do Trabalho, a Inspeção Geral de Trabalho, os sindicatos e/ou advogados especializados nesta matéria”, afirma a presidente da instituição.

Relatos informais recolhidos pela instituição durante as formações e campanhas de sensibilização indicam situações de despedimento de empregadas domésticas por gravidez, por terem filhos pequenos ou pressão para interrupção da gestação, que raramente são formalizadas por medo, dependência económica e desconhecimento dos seus direitos.

“O ICIEG tem conhecimento de situações de despedimento de trabalhadoras domésticas por motivo de gravidez, inclusive de relatos que indicam pressão para interrupção da gestação. Embora haja subnotificação, isto é, situações que ocorrem, mas não são formalmente reportadas às autoridades, temos recebido relatos informais e directos em acções comunitárias, formações e encontros promovidos com lideranças associativas”, informa.

Sem denúncias IGT não pode agir

Contactado pelo Expresso das Ilhas, o Inspector Geral do Trabalho (IGT), Anildo Fortes, aponta que a principal dificuldade da entidade é a ausência de denúncias formais, o que limita a sua capacidade de intervenção.

“Relativamente às empregadas domésticas, não podemos entrar nas casas das pessoas para fazer fiscalização. Se houver alguma violação, as pessoas afectadas terão de se dirigir à IGT, solicitando a nossa intervenção”, explicou.

Segundo o responsável, sem o conhecimento de casos específicos, a IGT não pode agir.

“Até prova em contrário, o despedimento de uma mulher grávida ou a amamentar é ilegal e a IGT não tem recebido muitas queixas neste sentido”, afirmou.

Ou seja, explana, o patrão tem que provar que o despedimento não foi devido à gravidez ou por estar a amamentar.

Anildo Fortes garante que a IGT não tem registos recentes de despedimentos de mulheres grávidas. Entretanto, relata um caso no ano passado resolvido, com todos os direitos da trabalhadora sendo pagos.

Nos últimos cinco anos, não houve mais registos significativos, embora casos isolados possam surgir.

Também refere que sempre surgem conflitos relacionados à licença de maternidade ou à falta de inscrição no INPS.

Quando o medo de perder oportunidades profissionais leva mulheres a adiar maternidade

Cristina tem 30 anos e trabalha como gestora operacional. Não pretende ter filhos, pelo menos para já. A razão, conta, está ligada às ambições profissionais e à forma como o mercado de trabalho trata as mulheres, especialmente as mães.

“Tenho planos de vida ligados ao meu trabalho, ao desenvolvimento profissional, e acredito que pensar agora na possibilidade de ter filhos é quase impossível”, afirma.

Do seu ponto de vista, ser mãe representa um entrave para quem deseja progredir na carreira. Como exemplo, cita o caso de uma antiga colega de trabalho, mãe, que era constantemente forçada a pedir licença para acompanhar a filha em tratamentos médicos.

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“Isso causava muito constrangimento no trabalho e era mal falado. Chegaram até a considerar despedir a minha colega por essa razão”, relata.

É por tudo isso que, neste momento, adiar a maternidade é uma escolha consciente.

“Quero alcançar uma estabilidade, crescer profissionalmente e só depois pensar no próximo passo. Preciso saber que não seria despedida por ser mãe”, afirma.

Para Cristina, entretanto, a mudança precisa de ser mais profunda e envolver toda a sociedade.

“Os dois fizeram [o filho], então só um não dá para cuidar. A mãe também precisa de descanso físico e psicológico. A presença paterna ajuda muito tanto o bebé como a própria mãe”, argumenta.

Cristina defende que a sociedade cabo-verdiana ainda carrega uma mentalidade antiquada, que atribui à mulher toda a responsabilidade pelos cuidados com os filhos. Algo que acredita, precisa de ser revista.

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Despedimento de grávida em situação de vulnerabilidade pode desencadear problemas mentais graves

O despedimento de uma mulher grávida, especialmente em contextos de maior vulnerabilidade, como o trabalho doméstico informal, pode ter consequências devastadoras, alerta Maria Dias, psicóloga perinatal.

“Sentimento de desvalorização pessoal, sentimento de injustiça, impotência, principalmente se não tiver como contestar a decisão, pode levar a um quadro depressivo e com todas as consequências para a mulher e para o feto/bebé”, explica.

A gravidez já é um factor de risco para a saúde mental, e o despedimento agrava esse cenário. A insegurança financeira e o stresse geram sentimentos de culpa e afectam a autoestima das mulheres, podendo resultar em complicações como depressão perinatal, ansiedade e até maior risco de parto prematuro.

Maria Dias também destaca a importância de uma legislação mais rigorosa para proteger as trabalhadoras grávidas, especialmente no sector informal. “É fundamental existirem políticas públicas que garantam apoio financeiro e jurídico para essas mulheres”, conclui.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1225 de 21 de Maio de 2025.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,24 mai 2025 8:46

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  26 mai 2025 9:39

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