Começávamos com a questão das acções conjuntas entre a aviação militar e civil e a sua contribuição para o desenvolvimento sustentável. Quais são as principais áreas de que estamos a falar?
Considero que a aviação não tem essa divisão na realidade, na prática. Existe no papel a acção civil, a acção militar, mas acredito que a indústria da aviação como um todo, beneficia das duas actividades e elas, na verdade, se complementam. Acho que um país como Cabo Verde, um país como o meu, o Brasil, onde temos algumas dificuldades de recursos, de pessoal, de investimentos, esse complemento de uma aviação com a outra, transforma a aviação, que é uma actividade muito cara, muito segura, mas que demanda recursos, de uma forma mais acessível. Falo de mecânicos que podem trabalhar tanto na aviação civil como militar em momentos diferentes, nos pilotos, na utilização dos aeroportos, das pistas de decolagem e pouso. Acho que quando há essa sinergia entre a aviação, os dois ramos civil e militar, o país como um todo ganha, tornando essa actividade – que repito, é uma actividade muito importante para a integração, para a soberania – um pouco mais sustentável. É assim que vejo como pode funcionar essa sustentabilidade entre as duas autoridades.
E é fácil trabalharem uns com os outros? Isto porque estamos a falar de ramos diferentes.
Não, não é fácil, mas é necessário. É necessário e, como falei na minha palestra, precisa ser exercitada, precisa realmente ter colaboração, cooperação e respeito entre as duas autoridades, ter bem definidos quais são os seus papéis. Volto a dizer, eles não competem, mas a sobreposição de um ou outro pode criar algumas arestas que dificultem a execução da aviação como um todo no país. Não é simples, mas é extremamente necessária.
Acha que é uma questão de fazê-los ver, de facto, as vantagens que existem neste trabalho conjunto?
Acho que passa muito por isso. A gente mostrar para ambos os lados que se eles se juntarem, se colaborarem, terão um país mais forte. Falei isso na reunião privada com a ministra, falei isso na minha palestra e falei na reunião privada com a AAC. A gente precisa despir certos preconceitos, certas vaidades, em prol da bandeira de Cabo Verde. A gente tem que mostrar realmente – e acredito que isso é possível – que o trabalho conjunto de cooperação, e não de competição, vai levar um resultado melhor para a sociedade de Cabo Verde. Acho que isso é o objectivo de todo servidor público, de todo cidadão, querer o melhor para o seu país e para o seu retorno para a sua sociedade.
Tem um pé em cada lado, por assim dizer, uma vez que é Major Brigadeiro, mas também está na Agência Nacional de Aviação Civil. Qual é a melhor forma de se pôr uns a falar com os outros?
Acho que é a boa vontade. Acho que é a empatia. Tive o privilégio de trabalhar 40 anos na Autoridade de Aviação Militar e estou há três anos na Aviação Civil no Brasil. Uma pessoa da palestra usou um termo interessante, que eu sou dois em um. É verdade. Acho que isso me dá uma certa tranquilidade de falar das coisas que acredito, porque vivi. Acho que o mais importante é ter a empatia de se colocar na outra função. Aqui [em Cabo Verde] está havendo uma divisão de uma autoridade que está constituída há 20 anos para uma que está iniciando agora. No Brasil, quando participei, foi ao contrário. A aviação civil saiu de dentro da militar. É um conceito um pouco reverso. Mas o que falei para essas pessoas é que dá para viver, é possível, se a gente sempre voltar àquele princípio que eu falei, basilar, a bandeira do país. Por que estamos fazendo essa mudança? Porque ela cabe, ela é necessária sobre o ponto de vista regulatório, tem que ter uma autoridade de aviação militar que garanta as aeronaves de Estado, as aeronaves de militares, essas aeronaves, quando vão sobrevoar outros países, ou seja, elas existem no arcabouço jurídico da aviação internacional, precisam estar bem constituídas, mas precisam ter o entendimento que uma suporta a outra, que uma é complemento da outra. Acho que se tiverem esse posicionamento, e vejo isso hoje mais tranquilamente, acho que é muito mais fácil.
Que exemplos de iniciativas bem-sucedidas desta parceria entre aviação militar e civil podem servir de modelo?
Hoje está muito em moda o uso de drones. No caso do Brasil, temos várias partes para colocar em operação esses drones. Quando um empresário brasileiro vai construir uma empresa de drones, se o drone é para uso civil, precisa registrar na ANAC. Mas no Brasil, a autoridade militar controla o espaço aéreo e para poder ter autorização de voo, de ingresso no espaço aéreo, o empresário tem de apresentar um registro da aviação civil brasileira. Quando um empresário investe para fazer drones, e sabemos que existem para várias aplicações comerciais, ele não está preocupado se está saindo do civil para o militar, ou do militar para o civil. Ele precisa fazer o voo para poder fazer a sua exploração comercial. Isso é um dos exemplos que sempre cito. Para o cidadão brasileiro, para o empresário brasileiro que vai construir a empresa, é indiferente. Mas é um caso real. Se cada um não fizer o seu trabalho, a autoridade militar e a autoridade civil, o empresário não consegue colocar seu produto a voar. E existem vários outros casos assim, uso o do drone porque o drone é bastante comum, mas no Brasil nós temos a autoridade militar que faz toda a administração de acesso ao espaço aéreo. Então serve para várias outras coisas. Se você vai fazer uma actividade de exploração comercial no Brasil, precisa de um registro na ANAC, mas ele vai usufruir do espaço aéreo. Se nós não trabalharmos cada um na sua maneira, eu não consigo prestar o serviço adequado para a sociedade. Em Cabo Verde isso existe no uso do espaço aéreo, no uso dos aeroportos compartilhados; em Cabo Verde não tem uma base aérea, um aeroporto militar separado, então vai ter que compartilhar isso no dia-a-dia, e vai haver momentos que esse compartilhamento pode levar a alguma, vamos dizer, ineficiência do uso do aeroporto, ou do espaço aéreo, se não for bem coordenado entre as autoridades.
De que forma a cooperação entre forças aéreas, militares e civis pode fortalecer a segurança nacional?
Uma aviação forte vai contribuir para o desenvolvimento social, ninguém tem dúvida. Você pega um país como o Brasil, que é um continente, ela faz a integração, ela leva a educação, ela leva a saúde, ela faz o intercâmbio de mercadorias internas, a ligação comercial. No âmbito do militar, essa actividade é uma protecção contra um tráfego ilícito, contra uma ameaça de um drone, por exemplo. Quando você trabalha os dois da mesma maneira, é um jogo de ganha-ganha. A actividade aeronáutica se fortalece pelo viés da economia, do desenvolvimento, isso é intrínseco, na minha opinião, na actividade aeronáutica, mas, por outro lado, traz a responsabilidade da aviação militar proteger esse tesouro, vamos dizer assim, que é essa actividade como um todo na aviação. A aviação é bem característica, o poder dela de desenvolver uma localidade; quando a gente vai de novo para um país como o meu, que tem distâncias muito grandes, quando abrimos um aeroporto, naturalmente, ele traz uma cadeia de serviços, de prestadores de serviços de tecnologia, seja uma oficina, seja combate a incêndio, um centro logístico que permeia toda a sociedade em volta. E, de novo, a aviação militar tem essa característica também, não voltada para o comércio directo, mas quando vai para uma localidade, quando constrói uma base aérea, traz pessoas, traz recursos, traz os salários desses servidores, fortalece a cadeia económica do país, sem dúvida nenhuma. A aviação é um vector de desenvolvimento económico e, por outro lado, projecta a segurança, a soberania do Estado quando domina o espaço aéreo como um todo, como protege quando necessário e como explora comercialmente, que é extremamente necessário para a economia de um país.
Quais consideram os principais desafios, podemos falar de desafios logísticos e tecnológicos para implementar esta aviação integrada?
Acho que o grande desafio é a compreensão das duas autoridades. Precisam estar alinhadas com os princípios basilares da democracia, com os princípios basilares de que quem vai ganhar com isso é o Estado, que tem uma aviação civil e militar bem integrada. Os desafios tecnológicos passam hoje em dia muito por sistemas que permitem o compartilhamento desses dados de forma mais real, de forma mais eficiente possível. Exemplo, o registro dessas aeronaves, exemplo, o acesso ao espaço aéreo quando você tem uma operação militar, ou não, permitindo a liberação de espaço aéreo. Quando a gente tem uma actividade militar muito forte em determinada localidade, às vezes prejudica o tráfego aéreo civil. Isso a gente chama na aviação coordenação civil-militar. Quando você tem sistemas automatizados, quando você tem sistemas computacionais que conseguem fazer essa administração de forma mais dinâmica, a eficiência melhora. Então, vai muito desse desafio de ter essas condições de equipamentos, de softwares, mas o princípio volta a ser aquele que falei. É a cooperação e o entendimento de que o meu trabalho, a minha responsabilidade, seja no lado militar ou no lado civil, não pode trazer consequências que vão prejudicar o outro lado. Esse, para mim, é o maior desafio. Esse entendimento e essa empatia de saber que são complementares e não se atrapalham. A despeito que, muitas vezes pode parecer que em dado momento – uma aeronave decolando para fazer um alerta de defesa aérea, por exemplo – vai interditar a pista, vai passar na frente de um avião comercial, mas é momentâneo. No todo, acho que o país ganha com essa actividade.
Que políticas, que regulamentações são necessárias para não só facilitar esta integração entre a aviação civil e a militar, como também para agilizar?
Vou falar da experiência do Brasil. A política pública correspondente à execução dessa actividade é feita no âmbito dos ministérios. A aviação militar dentro do Ministério da Defesa e a aviação civil dentro do Ministério de Portos e Aeroportos. A política pública tem que ser convergente. Não pode haver duas políticas públicas, uma do Ministério da Defesa e uma do Ministério de Portos, que se conflituam e que a gente não consiga implementar ou tomar o benefício dessa política por ambos os lados. Então, essa coordenação na política pública, no nível político, que é o responsável pela política pública na maioria dos países, tem que ter um alinhamento estratégico de onde o país quer chegar na aviação. De novo, se a gente vai fazer um planeamento de uma base aérea no Brasil, por exemplo, por que não já na política pública de estabelecimento dessa base colocar um acesso a uma aviação civil? Por que não fazer a política pública conjunta? Na execução, por parte da autoridade militar ou por parte da autoridade civil, fica muito mais facilitado e dá uma sinergia para essa política que foi pensada no Ministério. Para mim, de novo, o mais importante é esse alinhamento estratégico. Em relação a Cabo Verde, acho que é um movimento bastante interessante. É uma decisão que não é fácil, desmembrar alguma coisa, uma autoridade, tem custos, mas acho que é extremamente necessário e benéfico para a aviação como um todo. Acredito que é um movimento que, se bem conduzido, trará vantagem para Cabo Verde. Sem dúvida nenhuma.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025.