Aprendeu a nadar aos 24 anos. Hoje, Tatiana mergulha em apneia

PorAndré Amaral,12 out 2025 8:16

O mar, que em tempos lhe inspirava medo, é hoje o cenário da sua maior conquista. Tatiana Mendes, que só aprendeu a nadar aos 24 anos, é actualmente atleta de mergulho em apneia e tem, como record pessoal, um mergulho de 56 metros. A transformação da sua relação com o oceano revela uma história de coragem, disciplina e reencontro com o próprio corpo.

Tatiana Mendes nasceu e cresceu em França, numa pequena localidade próxima de Lyon. É filha de pais cabo-verdianos que deixaram o arquipélago durante os anos 70 do século XX, quando milhares de famílias procuravam uma vida mais estável na Europa.

A vila onde passou a infância tinha pouco mais de quinhentos habitantes e situava-se junto a um lago, ponto central da pequena comunidade onde o tempo corria mais lento. Foi ali, entre o campo e a água, que Tatiana cresceu – rodeada por uma numerosa comunidade cabo-verdiana que recriava, em pleno interior francês, os rituais, os sons e as tradições das ilhas.

As celebrações, as festas, os baptizados, as missas e as longas conversas entre vizinhos funcionavam como uma ponte permanente com o país de origem dos pais. O crioulo misturava-se com o francês nas conversas diárias, e a música de Cabo Verde ecoava nas casas e nos encontros de fim de semana. Apesar de ter nascido em França, Tatiana cresceu imersa numa atmosfera de pertença a uma cultura que não era, na prática, a do território onde vivia.

No entanto, essa pertença tinha fronteiras. Em França, dizia-se-lhe que não era francesa, mas africana. Quando viajava a Cabo Verde, sentia que também não era de cá. As crianças com quem tentava brincar percebiam rapidamente as diferenças: o sotaque, a forma de se vestir, os gestos. Quando corria descalça pelas ruas, como faziam os miúdos locais, sentia que não se encaixava totalmente. “Não era daqui”, lembra. E, ao regressar a França, também não era “de lá”.

Essa sensação de estar sempre entre dois mundos, sem pertencer inteiramente a nenhum deles, acompanhou-a durante a adolescência. Tatiana descreve esse sentimento não como uma crise, mas como um estado permanente de deslocamento — uma identidade vivida no entremeio, onde a referência de origem se mistura com o desejo de integração.

Mais tarde, ao mudar-se para Lyon para prosseguir os estudos, começou a ter uma visão mais ampla do mundo. Pouco depois, decidiu aventurar-se ainda mais longe: mudou-se para os Estados Unidos. Essa mudança marcou uma nova etapa. Foi ali que, pela primeira vez, encontrou um espaço onde o dilema identitário parecia fazer sentido. Ao contactar com a comunidade afro-americana, reconheceu neles algo familiar — uma busca constante pela definição de quem se é, quando as raízes e a história se entrelaçam com o passado colonial e com o sentimento de exclusão.

Nos Estados Unidos, Tatiana encontrou um tipo de acolhimento diferente. Sentiu que as pessoas à sua volta partilhavam, de alguma forma, a mesma necessidade de reconstruir a própria identidade. Enquanto os afro-americanos procuravam reencontrar as suas “raízes”, ela própria tentava conciliar as suas: o país onde nascera e o país de onde vinham os pais. Nessa semelhança, descobriu um sentido de pertença que nunca encontrara nem em França nem em Cabo Verde.

Durante treze anos viveu nesse país, onde construiu uma vida adulta estável. No entanto, as memórias da infância permaneciam presentes, sobretudo a relação com a água. O lago da sua aldeia era um lugar central, mas interdito. As crianças olhavam para ele com curiosidade, mas sabiam que se tratava de um espaço proibido. O medo vinha de casa: os pais não sabiam nadar e consideravam perigoso aproximar-se demasiado da água. A proibição era uma forma de protecção.

Tatiana cresceu a ouvir histórias que reforçavam esse temor. A mãe contava-lhe, por exemplo, como enjoava ao viajar de barco entre as ilhas e como o mar, em Cabo Verde, era também lugar de incerteza e de perda. Falava de pescadores que partiam e nunca regressavam, de famílias que esperavam à beira-mar sem notícias. A água, na sua imaginação, era um território de risco. Assim cresceu, com um respeito misturado com medo do mar por não saber nadar.

Enfrentar o medo

Esse medo acompanhou-a silenciosamente até à idade adulta. O confronto com ele aconteceu de forma inesperada, num dia de praia, já nos Estados Unidos. Estava com um grupo de amigos quando um deles, num tom de brincadeira, lhe disse: “Aposto que não sabes nadar.” A frase, aparentemente inofensiva, teve o efeito de um espelho. Tatiana sentiu o peso do estereótipo — e da verdade que ele continha. Aquilo que ouvira em criança e tentara esconder tornava-se agora visível.

A partir desse episódio, decidiu que era tempo de mudar. Sem recorrer a aulas nem a instrutores, começou a aprender a nadar sozinha, com intuição e paciência. O processo foi lento, mas libertador. Cada mergulho tornava-se uma pequena vitória contra o medo herdado e contra o preconceito.

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A descoberta da água, no entanto, ganhou outra dimensão numa viagem ao México. Foi ali, entre as cenotes – poços naturais de água doce formados em cavernas –, que Tatiana encontrou pela primeira vez um espaço onde o medo se dissipava. As águas eram calmas e transparentes, sem correntes nem ameaças. Podia ver o fundo, sentir-se segura, dominar o corpo. Foi nesse ambiente que, pela primeira vez, se sentiu realmente livre dentro de água.

A experiência tornou-se transformadora.

Fascinada pela serenidade do lugar, começou a interessar-se pelo freediving, o mergulho livre, praticado apenas com o controlo da respiração e sem recurso a garrafas de oxigénio. Um dia, viu uma fotografia que mudaria o rumo da sua vida: a imagem de um mergulhador a descer em linha vertical numa cenote. Naquele instante, sentiu um impulso forte, quase uma revelação. Soube que queria fazer aquilo.

Pouco depois, regressou ao México e inscreveu-se num curso. Ao fim de três dias, já mergulhava a vinte metros de profundidade. A sensação de tranquilidade e domínio do corpo surpreendeu-a. Sentia-se em casa, num lugar que antes simbolizava o medo. Ficou completamente fascinada.

Tinha 32 anos e um emprego estável numa empresa. Mas o entusiasmo pelo mergulho livre coincidiu com a pandemia de COVID-19, que paralisou o mundo. Tatiana aproveitou o confinamento para repensar a vida e traçar um plano: queria continuar a mergulhar e, ao mesmo tempo, encontrar uma forma de viver dessa prática.

Poucos meses depois, decidiu abandonar o emprego e mudar-se definitivamente para o México. A escolha representou um corte com o passado e o início de uma nova etapa. Começou a organizar retiros ligados ao freediving e à descoberta da natureza. O projecto nasceu de forma orgânica: as pessoas que a seguiam nas redes ou viam as suas fotografias mostravam curiosidade pelos lugares que visitava. Tatiana percebeu que podia partilhar essa experiência, convidando outros a conhecer o mesmo sentimento de leveza e harmonia com o mar.

Entre 2020 e 2023, dedicou-se a organizar esses retiros em várias partes do mundo. Colaborou com outros instrutores, promoveu formações e participou em expedições, nomeadamente na Baixa Califórnia, onde mergulhou com animais marinhos e conheceu ecossistemas que antes lhe pareciam inatingíveis. O contacto com o oceano aprofundou-se. Cada mergulho reforçava a ligação entre corpo, mente e natureza.

Durante essas experiências, Tatiana percebeu algo que a marcou profundamente: era quase sempre a única mulher negra nos cursos, nas expedições e nas comunidades de mergulhadores. Essa constatação levou-a a reflectir sobre o significado histórico e simbólico da relação das pessoas negras com o mar — um elemento associado tanto à travessia forçada do Atlântico como à exclusão cultural e social de espaços ligados à natureza e ao lazer.

A sua trajectória tornou-se, assim, uma metáfora de reconciliação. A menina que crescera com medo da água transformou-se numa mulher que faz do mergulho a sua casa. A mesma água que simbolizava o risco e a distância passou a representar liberdade, pertença e equilíbrio.

Tatiana Mendes encontrou na imersão o contrário do medo: a descoberta de si própria. Entre o pequeno lago da infância e as profundezas das cenotes mexicanas, percorreu um caminho interior e físico que reflecte o esforço de quem, durante toda a vida, tentou responder à pergunta: “De onde sou?”

Hoje, o mar é o seu território – não porque precise de lhe pertencer, mas porque aprendeu a habitá-lo sem medo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1245 de 08 de Outubro de 2025.

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Autoria:André Amaral,12 out 2025 8:16

Editado porJorge Montezinho  em  13 out 2025 8:16

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