Comunidades costeiras como parceiras da ciência
Durante o painel “Acesso ao Conhecimento e Dados Oceânicos – Desafios da Ciência Aberta”, o investigador Paulino Dias defendeu que as comunidades costeiras devem ser envolvidas em todo o processo de produção de conhecimento científico sobre os oceanos — não apenas como fontes de informação, mas também como beneficiárias directas das políticas públicas.
“O meu ponto de vista é que as comunidades costeiras devem ser absolutamente envolvidas no processo de investigação científica e de produção do conhecimento ligado aos oceanos, mas também enquanto fontes de informação e meios de obtenção desta informação”, afirmou Paulino Dias.
Acrescentou ainda que este envolvimento deve ocorrer numa lógica verdadeiramente igualitária, em que as comunidades são vistas como actores críticos e relevantes de todo o processo de gestão dos oceanos, e argumentou que as políticas públicas devem basear-se em evidências científicas sólidas, e não em experiências casuais.
“Somos um país pobre, que não se pode dar ao luxo de estar a experimentar políticas, porque isso custa imenso. As nossas decisões têm de ser fundamentadas em evidências e em dados, fornecidos pela investigação científica”, referiu.
Nesse sentido, apontou boas práticas africanas que podem servir de referência.
“A Guiné-Bissau é um bom exemplo. Utilizou o conhecimento tradicional para desenhar toda a sua política de protecção ambiental, sobretudo no arquipélago dos Bijagós. O envolvimento das comunidades foi decisivo tanto na elaboração como na implementação e fiscalização da lei”, exemplificou.
O investigador salientou ainda outros modelos interessantes no continente, como o caso do Gana, onde as comunidades piscatórias têm chefes comunitários e mecanismos próprios de organização que, embora diferentes dos sistemas democráticos ocidentais, funcionam de forma eficaz e articulada com as instituições formais.
Nova área marinha protegida entre o Fogo e a Brava
O Projecto Vitó, através do biólogo Herculano Dinis, apresentou uma proposta para a criação de uma nova área marinha protegida (AMP) entre as ilhas do Fogo e da Brava.
Conforme explicou o biólogo, a escolha da zona “não foi aleatória, mas fundamentada em dez anos de trabalho de monitorização e colaboração com as comunidades locais e várias instituições experientes em conservação da biodiversidade, que demonstraram o valor ecológico de toda aquela região”.
O estudo integrou dados sobre aves marinhas, pesca artesanal, megafauna (tubarões, raias, golfinhos e baleias), bem como informação sobre tartarugas marinhas, répteis terrestres e flora endémica.
A proposta prevê a criação de uma área marinha protegida de cerca de 10 mil quilómetros quadrados, abrangendo as ilhas do Fogo e da Brava, os Ilhéus do Rombo e uma montanha submarina próxima.
Prevê ainda a criação de duas reservas e um parque natural terrestres na ilha Brava — a única ilha do país que, até agora, não possui qualquer área protegida.
Segundo Herculano Dinis, durante o levantamento efectuado, apenas na Brava foram identificadas cerca de 800 espécies, muitas delas listadas como ameaçadas.
“Na componente marinha há também centenas de espécies na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN)”, disse.
“A criação de áreas protegidas é uma oportunidade para melhorar a gestão dos recursos e da conservação na região, regular a pesca artesanal e garantir que o sustento chegue às comunidades locais”, assegurou.
A proposta, elaborada com base no decreto-lei que permite à sociedade civil apresentar áreas a proteger, contou com o apoio das comunidades e entidades locais, através de cartas de apoio e quase 500 assinaturas – cerca de 10% da população da Brava. Agora, o processo segue para o Governo, que deverá avaliar e decidir sobre a sua aprovação.
“Cabo Verde tem compromissos internacionais importantes em matéria de biodiversidade, clima e desenvolvimento sustentável. Acreditamos que esta proposta pode contribuir para o cumprimento desses compromissos”, afirmou.
Maio Biodiversidade já monitoriza 47 espécies marinhas
Em declarações ao Expresso das Ilhas, a representante da Fundação Maio Biodiversidade (FMB), Benalsy Varela, revelou que o programa de monitorização comunitária dos recursos pesqueiros na ilha já supervisiona 47 espécies desde o início da iniciativa, em 2023.
O trabalho conta com dois locais de embarque e 32 botes acompanhados, num processo em que as mulheres das comunidades costeiras assumem um papel central na conservação marinha.
“As mulheres da Calheta estão a assumir um protagonismo na gestão dos recursos pesqueiros da ilha do Maio. Para isso acontecer, foi todo um processo — desde o fortalecimento da relação com as peixeiras, à capacitação e empoderamento, até à implementação do programa de monitorização comunitária”, explicou.
O programa, que começou por envolver apenas uma comunidade, já mostra resultados concretos e poderá, em breve, ser expandido. “Temos a perspectiva de alargar o programa a outras comunidades da ilha, de forma que vários pontos de desembarque possam ser monitorizados”, reforçou.
Entre os impactos mais visíveis está o envolvimento directo de 38 mulheres, que receberam formação através do programa de literacia oceânica “Maio Selvagem”, o qual lhes proporcionou conhecimentos sobre conservação e sustentabilidade.
Escassez de cavala e garoupa varia consoante as comunidades
A redução na captura de espécies como a cavala e a garoupa é sentida de forma diferente nas várias comunidades piscatórias, revelou Elísia da Cruz, técnica do Instituto do Mar (IMAR), que apresentou o tema “Reforço da Capacidade Educacional e Tecnológica – Ciência Cidadã e Auto-Relato por parte dos Pescadores”.
Segundo a responsável, há zonas onde determinadas espécies praticamente desapareceram, enquanto noutras continuam a ser apanhadas, ainda que em menor quantidade.
“Há sítios onde a pesca é muito mais de garoupa, que nós chamamos em crioulo de pesca de fundo ou pesca de linha. Há regiões diferentes: numa aparece uma espécie, noutra não; há garoupas pequenas, há garoupas maiores, e há zonas onde já não se vê mais nenhuma. Essa escassez varia de comunidade para comunidade”, explicou.
De acordo com Elísia da Cruz, o IMAR tem desenvolvido projectos que envolvem directamente os pescadores artesanais na recolha de dados sobre as suas próprias capturas, para que possam ter voz e expressar o que os afecta. “Trabalhamos em conjunto para resolver os problemas”, assegurou.
Um dos exemplos dessa colaboração é o projecto-piloto de autorrelato de dados da pesca artesanal, desenvolvido em São Vicente e financiado por instituições internacionais. “Demos a cada pescador um telemóvel com um aplicativo. Após a sua faina, faziam a recolha dos dados, que eram enviados em simultâneo ao Instituto, onde o Departamento de Estatística os trabalhava”, explicou.
Segundo a técnica, esta iniciativa visa reforçar a ligação entre o conhecimento científico e o saber tradicional dos pescadores. “Não podemos fazer a pesquisa só nós. Precisamos dos saberes deles, da prática que têm, porque é com esses dados que submetemos propostas ao Governo para a criação de políticas que respondam aos desafios da pesca artesanal e do sector no geral”, reconheceu.
O IMAR tem também em curso o Projecto Mosteiros Resiliente, implementado na cidade dos Mosteiros, Fogo, com a participação directa dos pescadores locais. Neste caso, a iniciativa procurou dar resposta à escassez de espécies naquela zona. “Os pescadores informaram-nos que havia escassez na pesca, e o projecto criou o que chamamos de DCP – um dispositivo de concentração de peixe –, que tem a função de criar um ecossistema num espaço e, assim, facilitar a pesca nessas localidades”, explicou.
Com os dados recolhidos pelos próprios pescadores, Elísia da Cruz diz que o IMAR consegue hoje comparar informações, identificar padrões e apoiar decisões estratégicas para a sustentabilidade da pesca artesanal em Cabo Verde.
Comunidades cabo-verdianas e o desafio da sobrepesca
Embora reconheça que os barcos estrangeiros têm impacto negativo nas águas cabo-verdianas, o presidente da Biosfera, Tommy Melo, afirmou que a maior pressão sobre as zonas costeiras vem das próprias comunidades locais. O biólogo defende uma nova abordagem de gestão sustentável, baseada na autorresponsabilização e no envolvimento directo das populações na preservação dos recursos marinhos.
“O problema é que, infelizmente, vemos muito a narrativa errada de que são os barcos estrangeiros que estão a acabar com as nossas zonas costeiras. Os barcos estrangeiros pescam em Cabo Verde e têm, sim, o seu impacto negativo, mas eles pescam ao largo, em alto-mar. Quem realmente está a colocar uma pressão negativa e uma situação de sobrepesca nas zonas costeiras somos nós próprios”, disse.
Tommy Melo, que apresentou o tema “Gestão Sustentável da Zona Costeira em Cabo Verde”, destacou que é essencial que as comunidades costeiras assumam o seu papel na conservação ambiental.
“É preciso que as comunidades tenham essa autoconsciência e se autorresponsabilizem, para poderem fazer parte dessa nova reformulação de gestão. Essa é uma parte importante dessa nova abordagem”, reforçou.
O biólogo apresentou a experiência da Biosfera na implementação de um projecto-piloto de gestão sustentável entre Santo Antão e São Vicente, iniciado há três anos, em parceria com os Ministérios do Ambiente e do Mar, que procura criar áreas de gestão de pesca especial, uma alternativa mais flexível às áreas marinhas protegidas tradicionais.
O objectivo, explicou, é dar oportunidade ao habitat costeiro de recuperar a sua biodiversidade e integrar as comunidades em processos de cogestão, capacitação e criação de rendimentos alternativos.
ANMCV lança programa para gestão integrada das zonas costeiras
A Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV) vai implementar um Programa de Planeamento e Ordenamento das Zonas Costeiras, com o objectivo de dotar os municípios de ferramentas técnicas e de governação robustas para uma gestão integrada do litoral. A iniciativa pretende conciliar a protecção dos ecossistemas sensíveis com o desenvolvimento económico sustentável e a resiliência costeira face às alterações climáticas.
“Queremos que os municípios disponham de instrumentos eficazes para gerir o litoral de forma integrada, assegurando o equilíbrio entre a preservação ambiental e o desenvolvimento económico”, anunciou o presidente da ANMCV, Fábio Vieira, na sessão de encerramento.
O dirigente defendeu ainda que a implementação do programa só será bem-sucedida com a participação activa das comunidades costeiras.
“Elas são as guardiãs do nosso litoral, detentoras de um conhecimento ancestral profundo e as primeiras impactadas pelas alterações em curso. Por isso, é imperativo envolvê-las genuinamente em todo o processo, desde o planeamento até à execução”, frisou.
No mesmo discurso, Fábio Vieira anunciou a criação de uma Rede de Municípios pelo Oceano, uma plataforma colaborativa dedicada à partilha de boas práticas, experiências e projectos de sucesso.
“Pretendemos que esta rede seja um espaço dinâmico, onde os municípios possam trabalhar em conjunto e implementar políticas públicas locais que protejam e valorizem os recursos marinhos, em estreita parceria com as comunidades”, explicou.
Também no encerramento, o Presidente da República, José Maria Neves, considerou que o país tem ganho dimensão e maturidade no debate sobre a gestão sustentável do oceano, sublinhando o crescimento registado desde a primeira edição da Conferência do Oceano, realizada na cidade do Mindelo.
Para o Chefe de Estado, o encontro constitui um espaço fundamental de partilha de conhecimento e de formulação de políticas públicas.
“Fazemos debates, lançamos ideias para que as universidades, as autarquias locais, o Governo, os cidadãos e a sociedade civil possam apreender a importância do oceano nas nossas vidas”, referiu.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1246 de 15 de Outubro de 2025.