Olhando para esse percurso, o que levou finalmente à instalação do Tribunal Constitucional em 2015, quase 20 anos depois de estar previsto? E que significado teve para si e para o país a criação de um órgão independente dedicado a defender a Constituição?
O processo de instalação do Tribunal Constitucional foi marcado, objectivamente, por alguma lentidão. Entre os seus diversos momentos, foi decorrendo algum tempo que, porventura, alguns considerariam excessivo. Entre a criação constitucional do Tribunal Constitucional e, posteriormente, a aprovação da lei do Tribunal Constitucional, houve um hiato de seis anos. A lei foi aprovada em 2005. Pensava-se que logo a seguir permitir-se-ia ou ela facilitaria a eleição dos juízes que comporiam o primeiro Tribunal Constitucional, mas, ainda assim, foi necessário aguardar mais 10 anos para que fossem eleitos os juízes e um pouco mais tarde fosse declarada a instalação do Tribunal Constitucional, precisamente no dia 15 de Outubro de 2015. Creio que diversos factores terão contribuído para esta instalação postergada no tempo. Em retrospectiva, se calhar alguns factores são compreensíveis, ou pelo menos serão aceitáveis. Creio que, por um lado, havia grande hesitação. Há uma criação que é feita através de uma lei de revisão constitucional que não terá sido, pelas suas circunstâncias, assumida por todos. Algumas vozes também se posicionaram frontalmente contra a ideia de um Tribunal Constitucional autónomo. Porque eram vozes abalizadas e vozes influentes, propagou-se a ideia do luxo e da inutilidade do Tribunal Constitucional, considerando a dimensão do país, o número de processos, as condições financeiras que poderiam ser alocadas para esta instituição. Houve esta hesitação e não houve uma assunção plena da instituição por todos os actores políticos, jurídicos e constitucionais. Por outro lado, também creio que esta hesitação estará associada a alguma incompreensão relativamente ao sistema constitucional concebido em 1992, sobretudo depois da revisão de 1999. Não era possível termos um sistema que correspondesse ao recurso de amparo, uma figura específica que marca o direito constitucional cabo-verdiano, sem um Tribunal Constitucional autónomo. Isto pela seguinte razão: o recurso de amparo, da forma como ele é concebido constitucionalmente pelo actual artigo 20º da Constituição, acaba por ser, essencialmente, um recurso que se dirige contra decisões dos outros tribunais. Portanto, seria sempre algo completamente circular e que não garantia uma tutela jurisdicional efectiva. E, mais do que isso, deixava os tribunais judiciais, nomeadamente o Supremo Tribunal de Justiça, numa situação muito incómoda, de ter de se pronunciar em sede de recurso de amparo sobre os seus próprios actos tomados enquanto tribunal judicial. Além disto, pressionava depois, e muito, os Tribunais Judiciais, que, para além de todos os processos que têm que apreciar anualmente, eram carregados com processos de natureza constitucional. Parece-me que a situação era efectivamente insustentável, como aliás os próprios órgãos representativos dos Tribunais Judiciais foram dando conta ao longo do tempo, na perspectiva de que as funções de natureza constitucional retiravam tempo importante para poderem assumir efectivamente as suas competências naturais. Seja como for, esta circunstância também de termos uma justiça constitucional transitoriamente assumida por determinados órgãos, criou uma situação de acomodação e de falta de urgência. Como sempre haveria um mecanismo mais ou menos perfeito para dar resposta a questões de natureza constitucional equiparada, foi-se adiando a decisão final para mais tarde. Por outro lado, parece-me que, de certa maneira, parte do atraso será compreensível, considerando que as novas democracias funcionam num cenário de informação imperfeita, portanto, não se consegue projectar integralmente todos os efeitos, todas as vicissitudes, todas as circunstâncias das decisões, e vai-se tentando ajustar ao longo do tempo a partir da experiência vivida. Creio que também terá havido esta tentativa de verificação se efectivamente era necessário um tribunal constitucional autónomo, até que as instituições foram colocadas perante um cenário de quase inevitabilidade na criação de uma instituição desta natureza. O outro factor que também torna isto, de certa forma, compreensível, é a necessidade que se tinha de identificar os juízes com perfil adequado para a primeira composição do Tribunal Constitucional, que é um factor absolutamente decisivo para o êxito deste tipo de instituição, nomeadamente se analisarmos o direito comparado. Não é uma tarefa fácil, como por vezes se faz propagar, nomeadamente em momentos como aquele que nós estamos actualmente.
Porquê?
Primeiro, os tribunais constitucionais de pequenas jurisdições, ou seja, de países que têm população reduzida, sempre têm maiores dificuldades para encontrar, dentro do grupo limitado de juristas, o número ideal para compor estes órgãos e continuamente renovar a sua composição. É preciso encontrar determinados juristas que têm disponibilidade, por um lado, e por outro lado, que têm um perfil. Reunir um perfil adequado de um jurista para um tribunal constitucional é ainda mais difícil num país que não tem tradições académicas.
Parte dos cidadãos que normalmente compõem os tribunais constitucionais acabam por vir da academia, porque são os académicos que garantem aquela densidade teórica, dogmática, que é absolutamente necessária para o exercício de funções constitucionais. Portanto, temos esta questão do perfil, é preciso encontrar um jurista que tenha qualificações suficientes, que tenha uma especialidade em áreas afins ao direito constitucional, ao direito público, ao direito penal, que são as áreas que normalmente gravitam em torno dos processos que são apreciados pelos tribunais constitucionais. Esses juristas, para além das qualificações pessoais de grande profundidade, de grande densidade, têm que ser independentes e em sociedades pequenas temos mais este desafio. A independência é sempre algo, não diria difícil de existir, mas as percepções sobre a independência são sempre diferentes de países onde a impessoalidade é muito maior. E, finalmente, no caso concreto do Tribunal Constitucional é preciso muito vigor, porque o volume de trabalho é verdadeiramente hercúleo. Exige capacidades físicas e mentais extremamente sólidas para se aguentar as exigências deste tipo de posição. Então, juntar estas qualidades numa pessoa e multiplicar isto pelos três [juízes] necessários a compor o tribunal, exige sempre o seu tempo. Penso que terá sido também uma das razões que justificam que se tenha levado algum tempo a se encontrar as pessoas com perfis adequados. Para além do perfil adequado de cada jurista, é preciso ver se esses perfis se integram, porque, em última instância, o Tribunal Constitucional é um colégio. Aquela ideia que aparece em determinados símbolos, em determinadas bandeiras, do e pluribus unum, de criar uma única entidade daquilo que é plural. Mas para que esta entidade tenha a solidez necessária é preciso que aqueles que compõem a sua pluralidade se complementem, tenham qualificações, perfis e trajectórias de vida diferentes, de maneira a poder reforçar o colectivo, que é aquilo que mais interessa para uma instituição com o perfil do Tribunal Constitucional. Portanto, temos este quadro e, por estas razões, também poder-se-á ter justificado o tempo que se tomou para chegar a um consenso.
O Tribunal Constitucional tem várias funções: verifica se as leis respeitam a Constituição, decide litígios eleitorais e pode proteger directamente os direitos fundamentais através do chamado recurso de amparo. Entre estas funções, qual considera mais marcante nestes 10 anos? E pode partilhar um dos dois exemplos de decisões com impacto visível na vida nacional?
O Tribunal Constitucional tem competências muito vastas. Resumidamente, e não vou tomar muito tempo com este aspecto, é uma jurisdição constitucional clássica, mas também é jurisdição eleitoral, é jurisdição político-partidária, é jurisdição política, porque exerce determinadas competências em relação a titulares de outros cargos políticos, e tem também certas competências de natureza tipicamente administrativa. Agora, relativamente àquilo que marca a actividade do Tribunal Constitucional, creio que, embora com uma carga de subjectivismo, dependendo de quem estiver a responder e que poderá destacar um ou outro processo, aquilo que marca a actividade do Tribunal Constitucional nestes 10 anos de existência é, sobretudo, o recurso de amparo. O Tribunal Constitucional conseguiu revitalizar o recurso de amparo, até pela simples razão de se associar à própria necessidade do Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional Autónomo é sobretudo necessário no nosso sistema, em virtude da existência do recurso de amparo. É um recurso importantíssimo que permite uma tutela célere de direitos, liberdades e garantias, que é a categoria mais importante de direitos que estão reconhecidos pela Constituição e, no fundo, é esse tipo de processo que acaba por singularizar a actividade do Tribunal Constitucional nestes 10 anos de existência.
Que balanço faz do Tribunal Constitucional no sistema jurídico e político cabo-verdiano passados estes 10 anos?
É claro que o auto-elogio sempre deve ser, de alguma forma, contido. Naturalmente as melhores avaliações serão feitas por terceiros a partir de uma análise objectiva do percurso do Tribunal Constitucional durante estes 10 anos. A percepção que tenho, creio que temos, no Tribunal Constitucional é que: primeiro, a existência do Tribunal Constitucional, depois de todas as hesitações, depois da desconfiança, acabou por se normalizar. Parece-me que neste momento poucas vozes se insurgem contra a existência do Tribunal Constitucional ou consideram que é um luxo ou uma entidade desnecessária dentro do sistema político-constitucional cabo-verdiano. Isto também por razões muito simples: ao contrário daquilo que se prognosticava, de ser um tribunal que teria meia dúzia de processos durante um ano, se tanto, e ainda assim em períodos correspondentes a anos eleitorais, nós, até à semana passada, prolatamos 750 decisões.
750?
Setecentas e cinquenta decisões. Portanto, por vezes são quase 200 decisões por ano, sobretudo nos últimos anos em que temos tido um aumento de entrada de processos significativo e logo também a nossa resposta tem aumentado de forma considerável.
Quais foram os maiores desafios? Recursos, independência, relação com outros órgãos de soberania? E como é que têm procurado aproximar-se dos cidadãos, em termos de comunicação e transparência?
Nunca tivemos questões a envolver nem os recursos, nem a independência. Tivemos os recursos necessários, naturalmente ajustados à realidade do país. Há uma certa equidade orçamental, distribuição de recursos financeiros e humanos, e isso permitiu-nos efectivamente exercer as funções constitucionais de forma cabal e efectiva. Relativamente à independência, pelo menos desde o momento em que assumi a presidência, e creio que é uma realidade que percorre os 10 anos do Tribunal, não há uma única circunstância de tentativa de interferência com as actividades do Tribunal Constitucional, pelos outros órgãos de soberania. E isto é importante, até porque, em caso contrário, não seria algo que colheria uma reacção passiva por parte do próprio Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional, neste particular, preza muito o princípio da separação e interdependência dos poderes, considera-se um órgão em situação de paridade com todos os outros órgãos de soberania e também preza muito o seu espaço efectivo da actuação. Neste particular, naturalmente, mantém relações protocolares, relações cordiais com todos os outros órgãos de soberania, mas o Tribunal Constitucional mantém-se independente e, no fundo, distante dos órgãos, sobretudo daqueles que têm a natureza política, como me parece ser o adequado para um tribunal constitucional.
Saindo de Cabo Verde, o tribunal participa em redes internacionais,como a CPLP e a Conferência Africana. Que benefícios concretos têm trazido estas parcerias?
Nós, efectivamente, temos feito parte de vários fóruns internacionais ligados à justiça constitucional, no âmbito dos países de língua portuguesa, no âmbito também das jurisdições constitucionais africanas, inclusive por força da nossa ligação aos tribunais constitucionais dos países francófonos, para além da Conferência Mundial de Justiça Constitucional. A perspectiva de actuação do Tribunal Constitucional de Cabo Verde nestes fóruns é uma perspectiva proactiva. Nem sequer abordamos estas relações no sentido de tentar identificar quais são os benefícios que isso traz ao Tribunal Constitucional. Nós também, proactivamente, tentamos contribuir para transmitir a experiência do Tribunal Constitucional de Cabo Verde às outras jurisdições constitucionais. Por esta razão, de um ponto de vista político, todas as participações que o Tribunal Constitucional de Cabo Verde tem nesses fóruns são sempre participações efectivas, com a apresentação de comunicações, com intervenções destinadas a partilhar a experiência do Tribunal Constitucional de Cabo Verde e dialogicamente trocar experiências com os outros tribunais. Isto tem gerado efeitos muito positivos. O Tribunal Constitucional de Cabo Verde é um tribunal considerado pelos outros tribunais constitucionais ou jurisdições constitucionais dos outros países. Por esta razão, conseguiu ser eleito por aclamação para a presidência da Conferência de Jurisdições Constitucionais dos Países Língua Portuguesa, mas conseguiu até transcender o próprio espaço lusófono quando assumiu, recentemente, a presidência do Comitê Executivo da Conferência Mundial de Justiça Constitucional. Isto é, salvo a imodéstia, algo relativamente importante e um feito, diria eu, para um pequeno país como Cabo Verde, uma jurisdição constitucional relativamente jovem, ou até infante, como o Tribunal Constitucional de Cabo Verde.
Outra questão ligada a esta, olhando para o futuro, como imagina o papel do tribunal perante novos desafios como direitos digitais, protecção de dados ou igualdade de género?
Os novos desafios já não dependerão tanto, creio eu, desta composição. Nós estamos nesta fase de transição. É preciso, no fundo, também criar as condições para que a transição se efective de forma correcta e o Tribunal tenha as condições para continuar a percorrer o seu caminho. Dito isto, eu tenho sempre uma perspectiva realista sobre a evolução das instituições. Nós tivemos um percurso positivo até esta data, mas não existem irreversibilidades históricas. Tudo depende de decisões, que são fundamentais, que sejam tomadas neste momento. É um tribunal que já ocupou um papel importante dentro do sistema político-constitucional cabo-verdiano, mas é uma instituição com 10 anos. Portanto, os 10 anos são sempre desafiantes. Tanto pode continuar a crescer, como pode também retroceder. E, de certa maneira, parar, para as instituições, acaba por ser retroceder. Então, vai depender de um conjunto de decisões que sejam tomadas neste momento, relativamente a um conjunto de elementos necessários para que o Tribunal consiga, de alguma forma, dar o salto, do ponto de vista de um aumento da sua capacidade humana, dos serviços de apoio aos juizes e ao próprio Tribunal. Vai depender de haver escolhas acertadas relativamente àqueles que forem escolhidos para assumir o Tribunal Constitucional, com toda a ponderação, com todo o cuidado. Tem sido muito comum em vários países: as primeiras composições dos tribunais são muito sólidas, tenta-se escolher com o máximo de critério os seus integrantes, mas depois há um certo relaxamento. Isto muitas vezes faz com que as instituições retrocedam de tal forma que nunca mais apanham o comboio do progresso institucional.
Neste aniversário, que mensagem gostaria de deixar aos cidadãos sobre o papel do Tribunal Constitucional e a importância de se confiar na Constituição?
O papel do Tribunal Constitucional tem relação com aquilo que eu disse. O Tribunal Constitucional tem um potencial enorme, é uma instituição vocacionada para proteger os direitos do cidadão, nomeadamente, e mais além, do indivíduo, sobretudo os seus direitos, liberdades e garantias. É uma instituição de garante da integridade do sistema democrático, é uma instituição de salvaguarda do Estado de Direito e tem sido também, no nosso caso, uma instituição de protecção da própria identidade constitucional. Se analisar os acórdãos do Tribunal Constitucional, há de ver que o Tribunal faz um esforço hercúleo para enraizar a interpretação da Constituição nos valores nacionais. Quando aplica princípios gerais abstractos - dignidade humana, proporcionalidade, protecção da confiança, justiça - faz um esforço de enraizar esses princípios na realidade axiológica cabo-verdiana. Portanto, deste ponto de vista, é também uma entidade essencial para preservar a identidade constitucional cabo-verdiana e parece-me que tem um potencial enorme, mas a preservação da sua vitalidade não é um dado natural, depende de decisões que sejam tomadas, que sejam efectivas e eficazes e que garantam precisamente a manutenção das condições para que o Tribunal continue a crescer e continue, no fundo, a ocupar esta posição central dentro do sistema constitucional cabo-verdiano.
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Pina Delgado é magistrado, doutorado em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa. Foi professor e presidente do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. Assessor em vários ministérios e desde a instalação do Tribunal, em 2015, exerce funções como juiz conselheiro. Em Dezembro de 2022, foi eleito Presidente do Tribunal Constitucional, cargo que assumiu em Janeiro de 2023, sucedendo a João Pinto Semedo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1247 de 22 de Outubro de 2025.
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