Paulo Veiga, Presidente da Fundação Carlos Albertino Veiga: “O mar somos nós e nós somos o mar”

PorManuel Brito-Semedo,7 nov 2025 8:10

Em Cabo Verde, o mar é mais do que uma paisagem ou um horizonte longínquo – é memória, sustento e futuro. Desde sempre, o oceano moldou a forma de viver e de pensar das ilhas, determinou rotas e encontros, e continua hoje a ser a principal referência da identidade cabo-verdiana.

É nele que se espelha a história de um povo insular que aprendeu a ler o vento, a viver das marés e a enfrentar a incerteza das ondas com resiliência e engenho. É neste contexto que surge o Ocean Summit 2025, a realizar-se a 7 de Novembro, em São Vicente, sob o tema “Literacia do Oceano e Participação das Comunidades Costeiras”. O encontro propõe-se aprofundar o diálogo entre ciência, economia e cidadania, aproximando o conhecimento académico da sabedoria das comunidades que vivem do e com o mar. Neste episódio do podcast Vozes e Histórias, o convidado é Paulo Veiga, presidente da Fundação Carlos Albertino Veiga e ex-ministro da Economia Marítima, que se tem dedicado à valorização do oceano como eixo estratégico de desenvolvimento sustentável. Com ele, navegamos entre o passado e o futuro, para redescobrir o mar não apenas como território físico, mas como espaço de identidade, inovação e esperança para Cabo Verde.

Paulo Veiga, bem-vindo ao terceiro podcast. Como é que o mar moldou a nossa forma de viver e o desenvolvimento das comunidades costeiras?

Eu acho que a primeira coisa que temos de alterar é não falar do mar como se fosse uma coisa distante. É do mar que vem a vida, é do mar que vem o oxigénio, é do mar que este planeta consegue capturar o dióxido de carbono, é do mar que vem a maioria da proteína que nós consumimos. É do mar que vêm as soluções e os avanços medicinais que temos. E, portanto, o mar somos nós e nós somos o mar. É engraçado que o planeta Terra tem mais de 70% da sua superfície coberto por água. E o corpo humano? Qual é a percentagem que tem? É incrivelmente o mesmo. Temos mais água do que qualquer outra matéria no nosso corpo, portanto, quando perguntamos como é que nos moldou, é porque nós fazemos parte do mar e, infelizmente, devido a outros conceitos e devido à nossa história, é que nós somos um país onde existimos porque fomos descobertos e depois fomos povoados por castigo, contra a vontade. A verdade é essa. De África trouxemos escravos, mas mesmo os portugueses que cá chegaram e os europeus que cá chegaram também vieram como uma forma de castigo. E esta é a nação cabo-verdiana. Por isso é que há muita confusão. E eu acredito que a nossa história tem de ser contada como ela é e não consoante os interesses, porque aí é que está o nosso problema. Nós somos uma nação com um povo e uma cultura, separados dos continentes, estamos no meio das ilhas e foi a junção de dois povos: quem estava no continente achava “ok, não estás a portar-te bem no continente europeu, mandamos-te para ir gerir Cabo Verde”; pois, e em África compravam escravos que eram vendidos pelos próprios africanos e traziam-nos para aqui; depois, a história toda que eu deixo – e que o Brito-Semedo sabe melhor do que nós todos – mostra que daí nasceu um povo resiliente, um povo que foi ensinado a não gostar do mar e a pensar no mar como um factor de separação, um factor de tristeza. Eu costumo dizer, é só ir aqui ao bairro Brasil, na Achada Santo António, para ver quantas casas é que têm janelas voltadas para o mar. Nós somos o mar. E é por isso que a Fundação e eu acreditamos plenamente que temos de fazer a literacia do oceano para podermos voltar a ser aquilo que somos.

O mar sempre foi parte da nossa identidade, feito de viagens, encontros e saudades. Em síntese, do mar nós herdamos memória e identidade. A pergunta que vem a seguir, o que é que distingue o Ocean Summit 2025 e como envolve as comunidades?

O objectivo aqui parece simples, mas, pelos vistos, é mais complexo. Porquê? Porque, quando falamos da literacia do oceano, concluímos que é uma expressão pouco comum. Eu estive a procurar para saber, na gíria, como é que se diz “literacia”, e não é muito utilizada. Mas o que é isso da literacia? É conhecer, saber e agir. E como é que nós, no contexto do oceano, fazemos isso? Quem conhece realmente o oceano? De certeza que eu conheço pouco, mas nasci na Prainha, portanto devo conhecer um pouco. Mas não há ninguém que o conheça mais do que o pescador, o surfista, a peixeira e as comunidades costeiras, que sofrem não só com a mudança climática, as tempestades ou o que acontece sempre quando o mar está revolto, mas também com a acalmia, com a paz que traz, com o som e com os recursos que nós extraímos do mar. E, portanto, temos de ouvir essas comunidades, temos de envolver essas pessoas. Depois, temos os investigadores, os cientistas, as universidades, os navios de exploração – como o Explorer X –, que já estiveram em Santo Antão a estudar a montanha e já nos mostraram o que é que temos no fundo do mar. Até levaram o nosso Presidente da República a 500 metros de profundidade, para conhecer um território nosso que a maioria dos cabo-verdianos não conhece, e provavelmente nunca conhecerá, porque ainda é muito dispendioso chegar lá. Mas tudo isto está no nosso planeta, e os países desenvolvidos, infelizmente, gastam triliões para conhecer o espaço, quando ainda não conhecemos 10% do nosso oceano, do que temos no nosso próprio planeta. E, portanto, o que nós queremos fazer é dar a conhecer, criar curiosidade. Ir para o espaço dentro do nosso próprio planeta. Um dia haveremos de viver no fundo do mar. Haveremos de entender a linguagem dos golfinhos e das baleias; haveremos de perceber que há outras inteligências e que pode haver outras formas de vida e outros sistemas, como vamos descobrir. Todos os anos se descobre um coral novo, uma esponja nova, que pode curar o cancro e outros tipos de doenças, ou que pode ser usada na cosmética e para outros fins. Portanto, nós estamos num sistema que, infelizmente, resolvemos organizar em silos, quando somos todos interligados. Tudo o que nós fazemos aqui afecta tudo o resto, e tudo o que acontece no resto nos afecta. E é esse o objectivo da Fundação com o oceano e com a literacia: conseguir envolver mais pessoas e iniciativas, fazer com que todos estejam conscientes do que podemos fazer de diferente e do quanto podemos conhecer melhor o nosso planeta.

E, se o conhecermos, podemos apaixonar-nos; e, se nos apaixonarmos, já sabemos – um ser humano apaixonado defende sempre.

Pode dar um exemplo concreto da participação comunitária?

Olha, eu tenho várias, mas gosto especialmente de uma. Vivi em São Vicente durante seis anos, enquanto membro do Governo. E há uma comunidade a que tenho de admitir que levo muito carinho: é a comunidade de Salamansa, que é uma referência. Os pescadores de lá usam um motor de popa apenas quando não há vento. Eles fazem os botes de pesca artesanal, usam a vela para ir a Santa Luzia pescar e, para regressar, só usam o motor para isso. Enquanto fui membro do Governo, tivemos um teste-piloto de mobilidade eléctrica marítima, que consistia em testar um motor eléctrico para ir a Santa Luzia e voltar. Fomos a Salamansa, e foi aí que nos disseram: “Nós já somos sustentáveis.” E eu disse: “Podemos ser ainda mais sustentáveis… vão à vela, mas, quando precisarem, usem um motor eléctrico, que não usa combustível.” E, portanto, eu acho que esta comunidade é um exemplo que deve ser replicado e levado, especialmente, às escolas. E, quando eu digo escolas, não falo de liceus nem de secundárias; refiro-me às escolas primárias, porque é aí que mudamos a nossa mentalidade consumista – a mentalidade de conservar o planeta e proteger o meio em que vivemos, porque, muitas vezes, não temos essa consciência.

É bonito ver a ciência e o saber popular a partilharem o mesmo palco. Uma peixeira que descreve as mudanças do mar dá uma lição tão valiosa quanto um cientista, certamente. Tal como nos faluchos de outrora, onde cabiam capitães, mestre-capitães e marinheiros, hoje precisamos de todos – precisamos que todos embarquem, das escolas às comunidades costeiras.

O Ocean Summit mostra o mar como espaço de ciência e de comunidade. Que futuro podemos desenhar quando juntamos conhecimento, economia e mar?

Eu acho que há um futuro brilhante se conseguirmos envolver todos. Acho que é essa a verdadeira importância: perceber por que razão as comunidades costeiras – que têm os pescadores, as peixeiras, os agricultores –, que sobrevivem disto e que possuem o conhecimento e o know-how, defendem arduamente o que fazem. Se associarmos a isso, sem qualquer sentimento de superioridade, a cientificidade das coisas e a tecnologia – para sabermos, por exemplo, que já pescámos muito chicharro ou cavala e precisamos de pescar outra espécie; ou para sabermos onde está uma e porque razão não devemos pescar outra, ou proteger os tubarões que estão na lista de espécies em perigo –, então, se conseguirmos ligar tudo isto, com a protecção contra o plástico e contra a poluição, o que é que acontece? Não se tira a economia, não se retira o sustento; cria-se, sim, um valor adicional para as gerações vindouras. E isso é algo que me parece fundamental, porque no mundo de hoje estamos a viver apenas para o presente e a esquecer o futuro.

Se tivesse de escolher, então, uma prioridade para amanhã, uma, qual seria?

Eu, se tivesse de escolher uma prioridade para amanhã, teria de escolher duas. Portanto, a primeira seria introduzir, já amanhã, nas escolas primárias de Cabo Verde – e em todas as escolas – a educação sobre o oceano, sobre a natureza e sobre o funcionamento do ecossistema. Mas de forma prática, levando peixeiras, pescadores, surfistas e ambientalistas às escolas, para sensibilizar, para mostrar a realidade sobre isso. A outra seria ensinar todos os cabo-verdianos a nadar, que é uma coisa que me é muito cara. Tenho miúdos que conheci em criança e que, infelizmente, já não estão cá neste mundo porque se afogaram. Nós passamos nove meses dentro do ventre materno e não nos afogamos. Como é possível que vivamos rodeados de água, num país onde mais de 90% é mar, e ainda tenhamos cabo-verdianos que não sabem nadar? E o número é assustador. É assustador porque não há um estudo concreto, mas estima-se que mais de 60% dos nossos pescadores não saibam nadar, porque nunca aprenderam, nunca lhes foi ensinado. Há alguma escola de natação que conheça? Consegue nomear escolas de natação? Portanto, somos nove ilhas – e quantas piscinas, sejam elas naturais ou construídas em terra, existem em Cabo Verde? Quantas piscinas municipais? Que escola é que ensina natação? Portanto, temos de mudar a nossa mentalidade nesse sentido. E isso seria, no fundo, antes de ensinar sobre o mar, ensinar a estar com o mar.

Paulo, eu tenho dito às pessoas que isto tem a ver com a nossa identidade, e é o seguinte: Cá em Santiago, se formos recuar em termos de história, as coisas más – os ataques dos piratas – vieram pelo mar. Do mar não vieram as coisas boas, vieram as más. E é só vermos como o reflexo disso está na arquitectura: as casas são construídas de costas voltadas para o mar. A própria cidade da Praia, depois dos ataques à Ribeira Grande (Cidade Velha), foi construída como cidade de defesa, e por isso está virada para dentro, de costas para o mar. São Vicente é o contrário. As coisas boas sempre vieram pelo mar, e a cidade nasceu por causa do porto. Abraça tudo o que chega. É diferente. Por isso, quando deu o exemplo da escola, recordei uma experiência que houve cá, logo a seguir à independência, com gente vinda de São Vicente, com essa mobilidade que chegou a abrir um clube naval. Penso que era o Clube Naval. E desapareceu. Nós não temos desportos náuticos na Praia, por exemplo; vai surgindo alguma coisa, enquanto São Vicente é diferente.

Agora falou da minha infância: havia o Clube Náutico, o Clube Náutico aqui na Gamboa.

Sim, é esse mesmo.

Eu e um amigo meu, em 2000, tomámos o Clube Náutico para o reactivar. E foi encerrado em 2003 pelo município, porque iam nascer hotéis à volta dele. Portanto, temos de mudar esta mentalidade – e isso aplica-se a todo o Cabo Verde. Porque eu acho que é verdade que São Vicente é mais voltado para o mar, mas continua a não estar voltado o suficiente.

Claro, claro.

Precisamos de assumir o mar como nosso. Temos de conhecer o que temos, até para o desenvolvimento do país, para a sustentabilidade do país e para tudo o resto. Falamos em tecnologia, falamos em robótica – que país melhor do que os ilhéus para desenvolver robótica marítima? Vamos desenvolver robótica espacial? Nós temos aqui as condições para ser líderes a nível mundial em muitos aspectos. O nosso oceano é muito rico, e isto aprendi graças ao tempo em que estive no Governo: temos zonas mortas, ditas zonas de zero oxigénio, em várias partes do nosso oceano, mas também temos vários vulcões activos, que são fonte de vida no nosso fundo oceânico. Nós podemos ter riquezas enormes e, se voltarmos a investir e construirmos as futuras gerações para serem engenheiros, economistas – mas tudo ligado ao mar e ao oceano – nós conseguiremos explorar, de forma sustentável, o nosso maior território.

Se o oceano foi a nossa escola de resistência, ele pode ser a nossa universidade do futuro. Assim como outrora os faluchos cruzavam as ilhas, hoje nós podemos cruzar saberes, linguagens e experiências. Entre tradição e inovação, o mar é o nosso maior capital. Cabo Verde pode ser ponte atlântica de ciência, economia e desenvolvimento. Que mensagem gostaria de deixar aos cidadãos sobre o mar como futuro de Cabo Verde?

Eu acho que aqui o importante é consciencializarmo-nos de que não há Cabo Verde sem o mar. Cabo Verde... seja 99,3%, 99,7% ou 99,9% mar, Cabo Verde só existe por causa das correntes e dos ventos alísios que trouxeram as caravelas até aqui. Seja qual for a versão histórica – se foram caravelas asiáticas, europeias ou vindas do nosso continente africano –, a história há-de esclarecer quem realmente descobriu estas ilhas; mas o certo é que a navegação fazia-se de forma sustentável, através do vento e das correntes, e assim chegou-se à descoberta de Cabo Verde. Temos tudo para ser o centro deste espaço atlântico. Não é por acaso que mantemos há mais de 200 anos relações com os Estados Unidos da América. Foi aqui que se estabeleceu o primeiro consulado no continente africano. Porquê? Porque precisavam de caçar baleias e de obter óleo para energia. Hoje precisamos de outras coisas – terras raras, recursos e potencialidades que ainda não descobrimos. E, como eu disse, gastamos triliões a explorar o espaço, quando temos tão perto o fundo dos nossos oceanos. O nosso território marítimo é maior do que a França, e temos de o conhecer e de o explorar. E isso só será possível através da cooperação, da investigação e do interesse do próprio povo cabo-verdiano – das nossas gentes, não apenas dos académicos, atenção, mas de todos. Se voltarmos a olhar para o mar, tenho a certeza de que Cabo Verde será um país de sucesso, sustentável e um exemplo a nível mundial, porque todos vão precisar de nós.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1249 de 05 de Novembro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,7 nov 2025 8:10

Editado porAndre Amaral  em  9 nov 2025 8:37

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