Censo pioneiro traça perfil dos presos cabo-verdianos

PorSara Almeida,3 fev 2019 10:05

​Quantos são os reclusos de Cabo Verde? De onde vêm? Que crimes cometeram e porquê? Estas são algumas das perguntas a que vem responder o I Recenseamento Prisional, divulgado na semana passada. Perguntas necessárias para responder a “Para onde vão, quando saírem da prisão?”, sendo que este censo pioneiro serviu de base para a elaboração do Plano Nacional de Reinserção Social, que está em fase de socialização. Realizado em 2018, o recenseamento prisional vem precisar dados já conhecidos (como a sobrelotação da cadeia da Praia) e expor estatísticas até agora não apuradas como a taxa de reincidência.

“Já temos as linhas-mestras para fazer uma intervenção precisa”, disse a Directora Geral de Serviços Prisionais e Reinserção Social, à TCV, à margem da socialização do Plano Nacional de Reinserção Social, que decorreu no passado dia 17.

Referia-se Júlia Reis aos resultados do I Censo da população prisional, que trouxe dados concretos sobre o perfil sociológico e demográfico da população dos cinco estabelecimentos prisionais do país. O Recenseamento da população prisional foi realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (em coordenação com a DGSPRS) em Março/Abril de 2018 e a recolha dos dados foi feita por entrevista directa a 98,8% da população prisional

Prisões sobrelotadas

O que nos diz então o censo? Em primeiro lugar, que há neste momento 1567 pessoas presas em Cabo Verde o que corresponde a 0,31% da população total do país. Da subpopulação encarcerada, 1521 são homens (97,1%) e 46, mulheres (2,9%). São números que confirmam a percepção comum de uma prevalência masculina no crime.

A cadeia central da Praia alberga 71% do total dos reclusos (1112, sendo 35 do sexo feminino). Segue-se São Vicente com 250 reclusos (5 dos quais mulheres), depois o Sal com 116 detidos (6 mulheres), Fogo com 64 e Santo Antão com 25.

A taxa de ocupação geral dos estabelecimentos prisionais é de 130,9%, muito acima, portanto, da sua capacidade de acolhimento. O pior cenário verifica-se na Praia, onde cada cela com capacidade para 10 reclusos está ocupada por 16 a 17 (ocupação de 165,2%). A Cadeia Regional do Sal, por seu turno, é a única cuja taxa de ocupação (46%) está abaixo da sua capacidade. Mas em relação ao Sal é de referir o exponencial aumento de reclusos, na ordem dos 322%, de 2014 (quando foi inaugurado) a 2018.

Praia no topo

Passando ao Perfil dos reclusos: a idade destes varia entre os 16 e os 78 anos, sendo a média de 32 anos. Interessante referir que essa média sobe para 39 anos quando se contemplam só as mulheres, o que vem mostrar que a criminalidade masculina é “mais jovem”.

Quanto ao local de nascimento, mais de metade da população reclusa é da ilha de Santiago (60,3%), 32,9% nasceu na cidade da Praia e 42% do total de reclusos reside na capital. Questões histórico-antropológicas são passíveis de ser aqui analisadas, mas destacam-se essencialmente dois factores: a maior densidade populacional de Santiago e da Praia em particular, e a urbanidade.

Assim, embora a ecologia urbana certamente absorva os aspectos trazidos pelo êxodo rural, os dados evidenciam “uma clara interligação entre a produção do sujeito recluso e a urbanidade”, aponta o documento de Análise dos dados. Tudo isto mostra a cidade como um “problema central, não somente como lugar de procedência, mas principalmente enquanto espaço de retorno do ex-recluso”.

A nível de relações, o facto de muitos reclusos estar em relação intima ou conjugal, vem relativizá-las como “inibidor de comportamentos desviantes”. Ao mesmo tempo, tendo em conta que 7 em cada 10 reclusos estava a viver com a família no momento da sua detenção, aponta-se que o crime não é explicado pela ausência de um contexto familiar. Isto, salvaguardando que “na sociedade moderna cabo-verdiana, a integração familiar já não assegura, tacitamente, a integração na sociedade”, como aponta o documento de Análise. A jusante, é de realçar que as ligações familiares podem ser vantajosas na questão da reinserção social, “na medida que assegura à maioria dos reclusos uma instância de acolhimento pós-prisão de valor emocional relevante”.

Escolaridade influencia crime

A taxa de alfabetização entre os reclusos (88,1%) está abaixo da média nacional (90%). Além disso, cerca de metade frequentou apenas o ensino básico e só 4,2% chegaram ao ensino superior. A média de anos de estudo é de 6,9 anos. Contemplando só as reclusas, há diferenças assinaláveis, sendo o nível de ensino muito superior. Cerca de uma em cada cinco tem frequência universitária e a média de anos de estudos é de 9 anos.

Mas os dados gerais mostram, pois, que a qualificação escolar da população prisional é média-baixa, e a baixa escolaridade é também verificada a nível dos pais dos reclusos. “Poucos são aqueles que têm pais com nível superior, curso médio ou secundário, enquanto mais de metade provem de meios em que os pais nunca frequentaram a escola ou não passaram do ensino básico”, destaca a Análise.

Os dados mostram então que a maioria da população reclusa “herdou dos pais um capital cultural básico” e o contexto família não parece “preparado para gerar indivíduos munidos de recursos” que permitam uma ascensão social.

É aqui ainda de referir que apenas 3,6% dos reclusos gostaria de voltar a estudar após a detenção.

Pobreza e ausência

Os dados mostram uma fraca presença do pai na vida dos reclusos, principalmente a partir da primeira infância, sendo ainda “de destacar o facto de muitos adolescentes assumirem-se como responsáveis pela sua vida e educação”, aponta a Análise de resultados.

Quanto aos antecedentes criminais no seio da família, quase metade da população prisional (43,1%) teve um parente preso antes da sua detenção e cerca de um quarto teve um familiar detido, depois da sua entrada na prisão. Os dados parecem ser significativos, mostrando ciclos preocupantes.

Este quadro torna-se mais relevante quando se considera que mais de metade da população reclusa tem pelo menos um filho – a média é de 2,6 filhos. “Tal facto acarreta a repetição de uma condicionante estrutural trazida pelo próprio recluso, a ausência do pai na sua educação. Somando-se o número médio dos filhos que estudam, muito baixo, à situação socio-profissional das pessoas que cuidam dos filhos menores dos reclusos, pode-se antever que esses menores não desfrutam das melhores possibilidades de desenvolvimento pessoal e social”, aponta-se.

A pobreza é, incontornavelmente, um aspecto a ter em atenção. Apesar de quase três em cada quatro reclusos (73,6%) ter trabalhado nos últimos 30 dias antes da sua detenção, a maioria dos trabalhos profissionais apontados são de rendimento precário. Esse dado deixa perceber, mais uma vez a “clara correspondência entre o baixo capital social e cultural dos reclusos com o seu baixo capital económico”.

Drogas e influências

A população prisional em Cabo Verde é maioritariamente saudável, sendo que na totalidade foram 240 (15,3%) os reclusos que afirmaram possuir pelo menos uma doença. A doença mais comum é a hipertensão (39,3%), seguida da asma e diabetes (9,6%, em ambas as doenças).

Um dado que chama a atenção, no indicador de saúde e sexualidade, é que 29 reclusos (homens) afirmaram já ter tido relações sexuais na prisão, sendo que quatro deles receberam dinheiro em troca. Ou seja, há infracção dos normativos internos nas cadeias de Cabo Verde.

A existência dessas infracções verifica-se também a nível das drogas lícitas e ilícitas: 21,4% da população fuma e 14,5% consome álcool. Ligeiramente abaixo, está o consumo de drogas ilícitas (principalmente de “padjinha”), 12,6%.

Quanto à frequência do consumo das drogas ilícitas, 36,2% refere fazê-lo todos os dias e 21,3% afirma “sempre que encontrar”.

Quase 1 em cada 5 reclusos receberam ou estão a receber tratamento ao consumo de drogas sendo que destes 38% já são repetentes. Mais de metade dos tratamentos (57%) são feitos pela própria cadeia. O consumo de drogas destaca-se assim como um desafio a ultrapassar nos estabelecimentos prisionais, e o tratamento é fundamental. Ao olharmos os dados sobre as razões que levaram o recluso a cometer o crime, dos 70,1% que admitem a culpa, a maioria (35,3%) refere o efeito das bebidas e/ou drogas como a causa. Segue-se como “justificação” a influência de familiares e amigos (12,3%), as necessidades financeiras (11,0%) e a legítima defesa (10,8%).

Motivação económica domina

A motivação económica é o principal móbil, concretizando-se em crimes contra a propriedade (furto, roubo e assalto), no caso dos homens, e em crimes de tráfico de estupefacientes, nas mulheres.

Olhando então já às tipologias discriminadas por sexo – porque as diferenças são grandes – vê-se que 43,7% dos reclusos homens foram condenados pelos referidos crimes contra a propriedade, seguindo-se homicídios (27,7%) e crimes sexuais (14,3%).

Só 8,3% foram condenados por tráfico de estupefacientes, tipologia em que enquadram quase metade (47,8%) das mulheres detidas. Também em relação a elas, os homicídios surgem em segundo lugar (34,8%) e somente 6,5% é acusada ou condenada por crimes contra a propriedade. A mesma percentagem de detidas por branqueamento de capitais.

Não há mulheres condenadas por crimes sexuais, nem por crimes contra a integridade física, mas há já um caso de detenção por VBG (nos homens esta tipologia representa 5,6% dos presos).

A diferença nas tipologias parece mostrar que as mulheres reclusas são menos propensas à violência física, mas mais letais. Ao mesmo tempo, o facto de apresentarem maior percentagem em crimes mais sofisticados como o branqueamento de capitais, parece indicatório do seu maior nível de escolaridade e idade mais madura.

Há também diferenças no que toca à faixa etária, com os jovens associados principalmente a crimes contra o património (71,2% na faixa 16-21 anos) e os crimes sexuais a destacarem-se a partir dos 50 anos (depois dos 60 anos, regista-se uma taxa de 41,7%).

As discrepâncias entre os estabelecimentos prisionais também são vincadas. As cadeias centrais da Praia e de São Vicente são caracterizadas pelos crimes contra propriedade (42,2% e 46,4%, respectivamente) e contra a vida (30,1% e 32,8%, respectivamente), dizem os dados do INE. No Sal destacam-se os crimes contra a propriedade (46,6%), mas também crimes sexuais (23,3%) e tráfico de estupefacientes (16,4%). Em relação ao Fogo, cerca de um quarto dos detidos estão presos por VBG e em Santo Antão quase metade dos reclusos são acusados de crimes sexuais (24%) e VBG (24%). Estes dados parecem mostrar que asilhas de Fogo e Santo Antão reclamam acções pedagógicas que actuem nos círculos íntimos.

Entretanto, em média os reclusos recenseados foram condenados a 9 anos de reclusão. Nas mulheres esta média eleva-se a 9,5 anos. Há a destacar ainda o número de anos médio de condenação aumenta com a idade o que “evidencia uma correlação entre a maior gravidade do acto criminoso com a experiência de vida dos indivíduos reclusos.” E aqui há a ter em atenção, entre outros aspectos, o facto de o estabelecimento prisional poder constituir, de facto, uma “escola do crime”.

Reincidência

A nível da reincidência os dados, bem como a análise dos mesmos, traz algumas novidades. Embora a maioria dos reclusos (65,7%) já tivessem sido detido, pelo menos uma vez, em uma esquadra, a percentagem dos que já passaram pela cadeia, e portanto são reincidentes, é de 28,8% (451 reclusos).

É de referir que, segundo dados do Conselho Europeu, a taxa de reincidência global na Europa é cerca de 34,7%. No Brasil rondará os 70%, mostra a Análise dos dados.

É certo que estas comparações devem ser relativizadas, mas a taxa de reincidência de cerca 30% situa o país perto da média europeia.

Entretanto, os estudos internacionais mostram também que com o aumento da idade há menos tendência para a reincidência. Assim, olhando o panorama nacional, a idade precoce em que muitos foram presos pela primeira vez (quer em esquadra, quer em cadeia) evidencia que “é de se considerar que a juventude da população prisional em Cabo Verde possa ser um grande desafio para os programas de reinserção social e reabilitação dos reclusos”.

Vida na prisão

O Recenseamento permitiu também conhecer dados sobre a violência nas cadeias, sendo que neste ponto o relatório dos dados do INE realça alguma naturalização de actos que poderão constituir violência, como gritos e ameaças. No inquérito apurou-se que 33% do total da população afirma já ter sido agredida verbal ou fisicamente por colegas e por agentes prisionais.

Foi ainda solicitado que os reclusos avaliassem as condições (em itens como alimentação e sanitários, entre outros) dos estabelecimentos prisionais. Na Praia, a avaliação é negativa para todos os itens contemplados. “Nas outras cadeias a avaliação é satisfatória com as cadeias de Santo Antão, Fogo e Sal a apresentar bons resultados”, refere o relatório.

Depois da reclusão

A percentagem de reclusos que frequentaram acções de formação enquanto presos é apenas de 15,3%, havendo uma relativa insatisfação face às ofertas disponibilizadas. Mas são também poucos (26,4%) aqueles que gostariam de frequentar uma ou uma outra formação. Entretanto, quase metade dos reclusos (46,0%) está disposta a fazer algum tipo de trabalho na prisão. Contudo, as ocupações apresentadas, nomeadamente a limpeza da cadeia, oferecem “poucas possibilidades de transformação em termos laborais”.

Quanto às perspectivas profissionais dos reclusos após o cumprimento das penas, estas não são positivas. Sobre as ocupações profissionais a que aspiram, os dados indicam que são basicamente as mesmas que antes da reclusão. E “isso mostra que o período de encarceramento não proporcionou outras valências laborais”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 896 de 30 de Janeiro de 2019.

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Autoria:Sara Almeida,3 fev 2019 10:05

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  24 out 2019 23:21

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