Economistas duvidam da independência do futuro Conselho de Finanças Públicas

A proposta de lei foi aprovada com os votos a favor do MpD e da UCID e com a abstenção do PAICV
A proposta de lei foi aprovada com os votos a favor do MpD e da UCID e com a abstenção do PAICV

O Parlamento aprovou esta sexta-feira, na generalidade, a proposta de lei que cria o Conselho das Finanças Públicas, órgão a quem caberá avalisar as contas públicas, a execução orçamental ou a evolução da dívida pública. Segundo o governo, este conselho será independente, mas Carlos Burgo, antigo governador do BCV, e João Estêvão, professor universitário no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, em declarações ao Expresso das Ilhas, consideram excessivo o peso do governo na escolha dos membros

“O país precisa de uma avaliação independente da gestão orçamental e do risco das finanças públicas”, começa por reconhecer o economista Carlos Burgo, antigo governador do Banco de Cabo Verde, porém, refere ter também “sérias dúvidas se o desenho do órgão na proposta apresentada pelo Governo garante a materialização desse desiderato”.

“A criação do Conselho poderá vir a revelar-se como um importante instrumento de acompanhamento e fiscalização das políticas orçamentais”, refere João Estêvão, “mas, neste caso, o Conselho poderia ser concebido com uma estrutura “leve”, mas com garantia real de independência”.

Segundo a proposta de lei, aprovada com os votos a favor do MpD e da UCID e com a abstenção do PAICV, a missão do Conselho das Finanças Públicas será a de proceder a uma avaliação independente sobre a consistência, cumprimento e sustentabilidade da política orçamental, promovendo ao mesmo tempo a sua transparência, de modo a contribuir para a qualidade da democracia, das decisões de política económica e de reforço da credibilidade financeira do Estado.

Para cumprir esta missão, o conselho terá a natureza de órgão independente, “não podendo, no exercício das suas funções, solicitar nem receber instruções de nenhum órgão político ou administrativo, muito menos, privado, estando vinculado estritamente à Constituição e às leis”.

As personalidades que integram o Conselho de Finanças Públicas devem ter mais de dez anos de experiência e são nomeadas pelo Conselho de Ministros, sendo três sob proposta do Ministro das Finanças, um sob proposta do Tribunal de Contas e um sob proposta do Banco de Cabo Verde. O presidente será uma personalidade de reconhecido mérito na área económica e financeira, com mais de quinze anos de experiência profissional. Os membros do Conselho são designados pelo Conselho de Ministros, por um período de cinco anos, renovável uma única vez.

“O mandato até que é muito amplo e corresponde aos princípios internacionalmente defendidos”, sublinha Carlos Burgo, “todavia, não me parece que um conselho consultivo, funcionando na Chefia do Governo e cujos membros são maioritariamente propostos pelo Ministro das Finanças, incluindo o seu presidente, possa propiciar, no nosso contexto, a emergência e afirmação dessa avaliação independente”. “Em relação aos mandatos dos membros”, continua o antigo governador do Banco Central, “pensa-se que uma duração mais longa, seis ou sete anos, sem possibilidade de renovação, é mais consentânea com a natureza do órgão”.

“O projecto define um organismo com uma estrutura mais “leve” do que no modelo português, mas o articulado legislativo não consubstancia as mesmas garantias de independência perante o poder político”, sublinha o académico cabo-verdiano João Estêvão, “e não se pode afirmar que o estabelecimento de uma relação orgânica do Conselho com a Chefia do Governo permite garantir “algum distanciamento” em relação ao Ministério das Finanças”.

Na proposta de lei, o governo justifica que a independência e o relacionamento orgânico são concebidos no quadro do sistema político-constitucional e administrativo cabo-verdiano, “e de acordo com a nossa tradição de autoridades administrativas independentes, o que é dizer que as soluções não podem ser todas idênticas às encontradas noutros países, tanto mais que devemos levar em conta a necessidade de se evitar criar e pôr a funcionar instituições administrativas pesadas e custosas, quando existem alternativas viáveis e seguras”.

Em Portugal, por exemplo, onde existe desde 2012, o Conselho de Finanças Públicas é igualmente nomeados pelo Conselho de Ministros, mas sob proposta conjunta apenas do Presidente do Tribunal de Contas e do Governador do Banco de Portugal.

“Numa leitura do Projeto de Lei cabo-verdiano numa perspectiva comparada, tomando como referência o CFP português”, diz João Estêvão, “uma diferença de fundo prende-se com a natureza do Conselho definida nos dois casos. Em Portugal, o CFP é uma “pessoa colectiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio” (ECFP, Artigo 1º), enquanto em Cabo Verde a proposta é apenas de criação de um “órgão consultivo independente” e que deverá “funcionar junto da Chefia do Governo” (PL, Artigos 3º e 4º)”.

“O Conselho estabelecido em Portugal tem uma estrutura orgânica que inclui um conselho superior com 5 membros, uma comissão executiva e um fiscal único. Para o desempenho das suas funções, o CFP organiza os serviços técnicos necessários e de acordo com o regulamento interno aprovado pelo seu conselho superior. O Projecto de Lei cabo-verdiano propõe uma estrutura muito mais “leve”, uma estrutura consultiva e constituída apenas por 5 membros. No modelo português, os membros do conselho superior são nomeados pelo Conselho de Ministros, sob proposta conjunta do Presidente do Tribunal de Contas e do Governador do Banco de Portugal, e tomam posse perante o Presidente da Assembleia da República. No caso cabo-verdiano, a proposta estabelece que os membros do CFP são designados pelo Conselho de Ministros, sendo 3 sob proposta do Ministro das Finanças e os outros dois propostos, respectivamente, pelo Tribunal de Contas e pelo Banco de Cabo Verde, sendo que a posse dos membros é conferida pelo Primeiro Ministro”, explica o professor universitário.

“Em ambos os casos, é definido que as receitas e despesas de funcionamento do CFP são suportadas por um orçamento preparado pelo próprio Conselho. No caso cabo-verdiano, as receitas são asseguradas pelo Orçamento do Estado e as transferências de verbas ficam sujeitas ao regime duodecimal, enquanto no caso português o CFP, não só dispõe de receitas provenientes do Orçamento do Estado, como pode constituir receitas próprias e de fontes diversas. O orçamento do Conselho proposto pelo Governo cabo-verdiano fica sujeito à homologação do Primeiro Ministro, contrariamente ao orçamento do CFP português que, dada a sua autonomia, está sujeito ao parecer favorável emitido conjuntamente pelo Presidente do Tribunal de Contas e pelo Governador do Banco de Portugal”, conclui João Estêvão.

No fundo, no caso português, a independência do CFP está assegurada por uma combinação de características que interagem entre si: a natureza autónoma (pessoa colectiva de direito público), membros propostos pelo Tribunal de Contas e Banco de Portugal, independência financeira e sujeição à jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas. É essa combinação de características que tem permitido ao CFP português funcionar com autonomia em relação ao poder político.

“No momento em que Cabo Verde pretende dar esse passo”, diz Carlos Burgo, “impõe-se reconhecer que a experiência com Conselhos das Finanças Públicas praticamente se restringe a países desenvolvidos e nem sempre tem sido inequívoco o seu impacto positivo. Nos países em desenvolvimento, um sério obstáculo é a falta de recursos humanos qualificados, havendo quem defenda que esses recursos devem ser concentrados no Ministério das Finanças na melhoria da informação que é produzida sobre as finanças públicas. Neste domínio, as carências e insuficiências são, ainda, enormes em Cabo Verde”, conclui o antigo governador do BCV.

A criação dos Conselhos nos países da União Europeia foi entendido como um instrumento necessário para acompanhar e avaliar o cumprimento das regras orçamentais dos Estados-Membros. A política orçamental é definida para um horizonte de médio prazo, procurando conciliar as prioridades políticas dos governos com as condicionantes que resultam dos tratados europeus, como o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Por isso mesmo, os Conselhos das Finanças Públicas têm uma missão importante de acompanhamento e avaliação do cumprimento das regras sobre os saldos orçamentais e as dívidas públicas, bem como da sustentabilidade a longo prazo das finanças públicas.

“Deste ponto de vista”, sublinha João Estêvão, “a criação de um CFP em Cabo Verde não parece constituir uma necessidade imediata, nem urgente, em particular, se tivermos em conta, como afirmou o Dr. Carlos Burgo, a carência de recursos técnicos altamente qualificados e a necessidade de uma maior concentração desses recursos no próprio Ministério das Finanças”.

“Contudo”, chama a atenção o professor do ISEG, “a criação do Conselho poderá vir a revelar-se como um importante instrumento de acompanhamento e fiscalização das políticas orçamentais. Neste caso, o Conselho poderia ser concebido com uma estrutura “leve”, mas com garantia real de independência. Uma possibilidade pode ser a criação de um organismo que funcione na dependência conjunta do Tribunal de Contas e do Banco de Cabo Verde, ainda que possa ser “hospedado” pelo primeiro. Um organismo com independência administrativa e financeira, sujeito à jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas, com membros propostos conjuntamente pelo Presidente do Tribunal de Contas e pelo Governador do Banco de Cabo Verde, nomeados pelo Governo e com tomada de posse junto do Presidente da Assembleia Nacional”.

O Conselho das Finanças Públicas cabo-verdiano vai avaliar os cenários macroeconómicos adoptados pelo Governo e a consistência das projecções orçamentais com esses cenários, analisar a dinâmica da dívida pública e a evolução da sua sustentabilidade, avaliar a situação financeira das autarquias locais e a situação económica e financeira das entidades do sector público empresarial e o seu potencial impacto sobre a situação consolidada das contas públicas e sua sustentabilidade.

O Conselho terá acesso a toda a informação de natureza económica e financeira necessária à concretização da sua missão, “encontrando-se todas as entidades públicas obrigadas ao fornecimento atempado de tal informação e aos esclarecimentos adicionais que lhes forem solicitados, especialmente o Governo, que é obrigado a disponibilizar ao Conselho os modelos macroeconómicos utilizados, bem como os pressupostos assumidos, para efeitos da avaliação dos cenários macroeconómicos e a consistência das projecções orçamentais com esses cenários”.

Todos os relatórios elaborados pelo Conselho serão apresentados publicamente e disponibilizados na sua página electrónica. Se o Governo não cumprir o dever de prestação de informação em tempo oportuno, este facto é objecto de divulgação na página electrónica do Conselho e, se considerar que o incumprimento é grave, o Conselho comunica ao Presidente da República, à Assembleia Nacional e ao Tribunal de Contas.

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Autoria:Jorge Montezinho, Expresso das Ilhas,16 nov 2019 11:03

Editado porJorge Montezinho  em  18 nov 2019 8:26

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