Benfeito Mosso Ramos - “Sem uma robusta base económica, dificilmente serão efectivados os chamados direitos económicos, sociais e culturais, o que, a prazo, poderá conduzir a uma erosão da confiança na própria Constituição”

PorExpresso das Ilhas,24 set 2022 5:56

Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Que balanço faz dos 30 anos da Constituição da República de Cabo Verde?

Por razões de economia vou incidir apenas na organização do Estado e do Poder Político.

Nesse aspecto pode-se dizer que a Constituição dá acolhimento e reforça o consenso no sentido de se (re)fundar a República no escrupuloso respeito pela dignidade da pessoa humana, assumindo-se a soberania popular como a única fonte legitimadora do Poder Político, bem como a ideia de um Estado, em que o exercício do poder deve se conter adentro das balizas assinaladas pela própria Constituição.

Assente nessas traves mestras, a Constituição de 1992, até pelos limites materiais que impõe à sua própria revisão, veio conferir foros de irreversibilidade ao regime democrático instituído no nosso país, o que é confirmado pelos 30 anos da sua vigência, acomodando, sem crises, alternâncias políticas, quatro Presidentes da República, cada um com a sua visão e leitura própria dos respectivos poderes e, mais recentemente, até um estado de emergência.

Esta constatação permite afirmar que, enquanto garante do regime democrático, e nesta estrita acepção, a Constituição de 1992 impôs-se plenamente, a ponto de não se desejar em Cabo Verde outro regime que não aquele por ela garantido.

Já nalguns aspectos, que não relevam tanto da essência do regime democrático, mas sim da específica conformação dos poderes, a Constituição sofreu uma percetível evolução ao longo desses 30 anos. Refiro-me, nomeadamente, ao sistema de governo, que foi objecto de um certo redesenho com a revisão constitucional de 1999, pela qual se atenuou a sua vertente excessivamente parlamentar, que vinha da versão originária, sendo certo que por essa mesma altura foi criado um Tribunal Constitucional autónomo, embora o mesmo só viesse a ser instalado 16 anos depois, mais precisamente em 2015.

Entretanto, a nossa engenharia constitucional não se tem mostrado muito bem-sucedida quanto à concepção e implementação de um órgão do Estado que, de forma minimamente satisfatória, possa integrar e dar voz, em pé de igualdade, às ilhas e à nossa diáspora. Na versão originária experimentou-se o Conselho para Assuntos Regionais, que foi praticamente um nado-morto. A partir de 1999 esse órgão deu lugar ao Conselho Económico e Social, que também nunca se fez sentir. Associado a essa dificuldade tem estado o tópico regionalização/descentralização, que, afora as euforias momentâneas, continua a repousar em banho maria.

Qual o nível de consenso à volta da Constituição?

Responder a essa questão implica saber em que sentido se está a tomar a palavra “Constituição”. Se for no sentido de Lei Fundamental, garante do regime democrático, atrás já referido, e a fazer fé na observação empírica, creio que o consenso em torno dela se abeira da unanimidade. E não surpreende esse resultado porque, também como já disse, a Constituição de 1992 acabou por absorver uma nova ideia de direito, um “novo ideia na nôs mar”, como anunciava Renato Cardoso em Porton di Nôs Ilha, que já vinha estando em gestação desde pelo menos finais dos anos 80.

Mas, se se tomar a Constituição noutros sentidos, nomeadamente na seu aspecto formal, já se apercebe de algum dissenso que vai sendo manifestado, o que é perfeitamente natural. Fala-se, por exemplo, na excessiva dimensão do Estado, com a sobreposição de instituições e estruturas, com custos de funcionamento aparentemente incomportáveis. São conhecidas as questões suscitadas em sede do sistema de governo, em especial sobre a necessidade de uma certa congruência entre a legitimidade democrática directa do Presidente da República e os correspondentes poderes. A interdição constitucional de bases militares estrangeiras no território nacional, parece já não desfrutar do mesmo consenso de que inicialmente gozava. A regionalização e o eventual governo autónomo para cada ilha ou grupo de ilhas, bem como os contornos da nossa integração regional em África, na nossa sub-região em particular, nem sempre bem compreendidos, também têm sido motivo de compreensível debate.

Finalmente, apercebe-se da necessidade de uma certa racionalização na intervenção da Jurisdição Constitucional, nomeadamente em sede do recurso de amparo, por forma a que o sistema de administração de justiça do nosso país não fique, por excesso de garantias, privado da sua eficácia, como alguns casos mais mediáticos têm posto em evidência.

Que futuras reformas da Constituição da República?

Por princípio sou defensor de que, antes de se pensar em reformas, deve-se fazer uma avaliação objetiva e criteriosa daquilo que existe, nomeadamente proceder ao inventário do que ainda está por implementar, como, por exemplo, a reforma e a modernização da justiça administrativa.

Ousaria ainda acrescentar que, assegurada que está a irreversibilidade do regime democrático, como ficou acima caracterizado, bem como a garantia do respeito pelos direitos fundamentais que qualquer democracia decente reconhece aos seus cidadãos, a nossa preocupação devia se virar para a criação de um quadro jurídico-institucional que propicie a criação de riqueza e a gradual e consistente melhoria das condições de vida do Cabo-verdiano na sua própria Terra, também uma promessa da Constituição de 1992.

É que, sem uma robusta base económica, dificilmente serão efectivados os chamados direitos económicos, sociais e culturais, o que, a prazo, poderá conduzir a uma erosão da confiança na própria Constituição, que se arrisca a ser tida como estando em falta.

E aqui, tendo também em mente outros aspectos de que precisamos cuidar, como o respeito pela lei, a solidez das instituições, a segurança pública, a modernização e a eficiência da Justiça, não resisto a convocar o exemplo de Singapura, um exíguo território, de relativamente reduzida população, desprovido de recursos naturais, mas que em apenas 30 anos, exactamente o tempo de vigência da nossa Constituição de 1992, deu um salto do terceiro mundo para o topo do primeiro mundo, como uma das mais invejáveis sociedades de bem-estar do planeta.

O que é que fizeram para lá chegar? Que opções, prioridades ou sacrifícios tiveram que eleger, ou suportar, no plano jurídico-institucional?

É isso que, com os pés assentes na terra, temos de tentar compreender e ver se, e em que medida, exemplos dessa natureza nos poderão servir de referência inspiradora, tendo sempre presente o ditado, muito português, de que “não se pode ter sol na eira e chuva no nabal”. Isto é, não se pode ter tudo de bom ao mesmo tempo.

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Autoria:Expresso das Ilhas,24 set 2022 5:56

Editado porAntónio Monteiro  em  24 set 2022 6:42

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