Jorge Carlos Fonseca - “Nos últimos anos se tem assistido a uma visível extensão e fortalecimento do que podemos chamar ‘cultura da Constituição’ no país”

PorExpresso das Ilhas,24 set 2022 5:54

Jorge Carlos Fonseca, ex-Presidente da República

Que balanço faz dos 30 anos da Constituição da República de Cabo Verde?

A Constituição de 1992, fundante de um Estado constitucional, de direito democrático, em Cabo Verde mostra-se, trinta anos depois, ainda que com algumas revisões - nomeadamente as de 1999 e de 2010 - , perfeitamente adequada às exigências hodiernas e do futuro de construção de um Cabo Verde de liberdade, democrático, erigido em Estado de direito de cariz social. Tem sido instrumento válido e eficiente para assegurar um normal funcionamento das instituições democráticas e garantir as liberdades fundamentais aos cidadãos.

Qual o nível de consenso à volta da Constituição?

Não temos um instrumento de medida, uma espécie de "fita métrica", para definir, com precisão, esse consenso político e comunitário de que deve ser expressão uma qualquer Lei Fundamental. Mas, se partir de uma perspectiva institucional, sobretudo a que se exprime no plano das forças políticas representadas no Parlamento, ao fim e ao cabo, resultado de opções livres dos cidadãos eleitores, tudo aponta para que haja um consenso relativamente alargado sobre a adequação, a funcionalidade e a vitalidade da Constituição vigente. Tanto assim é que as insatisfações individuais ou de grupo relativamente a ela são-no, quase sempre pontuais (atinentes a aspectos específicos e muito parciais) e, diria, sazonais. Nunca se têm manifestado como expressão de rejeição de seus princípios fundamentais, dos valores que a sustentam e definem ou de sua ossatura central.

Por outro lado, creio que - e isso é de uma grande relevância para a dimensão de vitalidade e para a afirmação de um texto constitucional - particularmente nos últimos anos se tem assistido a uma visível extensão e fortalecimento do que podemos chamar "cultura da Constituição" no país, vale também dizer de "vontade de Constituição". Basta ver e sentir que não há movimento sindical, grevista, manifestação pública, marcha, reivindicação de jornalistas, de organismos profissionais, de estudantes e de professores, queixas e insatisfações de munícipes, associações, polícias, ou requerimento de advogado ou decisão judicial, que, de há um tempo para cá, não invoque a Constituição, seus princípios ou seus normativos.

Isso representa um avanço incalculável, mesmo quando possa parecer... natural, pouco visível ou analisado ou comentado. Quiçá, uma das maiores conquistas do Cabo Verde democrático.

Que perspectivas para futuras reformas da Constituição da República?

A Constituição já foi objecto de importantes reformas, particularmente as que atrás mencionei.

No essencial, ela não necessita de grandes alterações, até pela razão enunciada de que tem servido perfeitamente ao funcionamento regular das instituições democráticas e à garantia do exercício dos direitos e liberdades individuais. É natural e compreensível que, mormente em períodos de maiores dificuldades e carências sociais e económicas, haja apelo à mudança das leis, incluindo aqui, a Lei Fundamental; o apelo à fuga para a lei, para se fazer mais leis, mudar as existentes, endurecer o regime penal e prisional, como forma - ilusória - de se dar resposta eficiente aos problemas do emprego, da criminalidade, da insegurança, da educação, ou das injustiças. Outrossim, de vez em quando, aparecem vozes - soltas, bem localizadas, pouco expressivas - a clamarem por mudanças radicais na Constituição, chegando, por vezes, a pugnar pela mudança do sistema de governo. Para o presidencialismo, nomeadamente, mas as mais das vezes sem a apresentação de fundamentos claros e muito menos sólidos para tal. Que seria mais "barato" (o que nunca demonstram e, provavelmente, difícil será de demonstrar) ou mais... eficiente (um "chefe só a “mandar"). Como se pode ver, um misto de ilusão, de falha de avaliação séria e objectiva do presidencialismo de uma forma abrangente (como se o presidencialismo fosse apenas o norte-americano, e não também, entre outros, o brasileiro, o venezuelano, o ruandês, o maliano, o senegalês, o argentino, o cipriota, entre muitos outros) e da não compreensão de que falamos do... presidencialismo democrático e que este, para funcionar bem ou adequadamente, supõe tradição de instituições e cultura democráticas, sociedade civil forte, poder judicial independente e sólido, imprensa livre e pujante.

Se com o sistema que temos, de partilha e de equilíbrio de poderes, o país funciona com normalidade, nunca tivemos crises políticas relevantes que não fossem resolvidas no quadro constitucional, o país vive em estabilidade política e institucional, vamos mudar porquê? Para quê? Moda? Impulso de mudança? O nosso sistema, se exige, para um bom funcionamento, um mínimo de enraizamento dos princípios e regras democráticos, igualmente potencia, favorece um seu aprofundamento.

O que não exclui que a Constituição não mereça aprimoramento, alterações pontuais, capazes de corrigir aspectos particulares de funcionamento do sistema no seu todo. Apenas algumas ideias, alguns exemplos: a) Clarificar o regime de substituição do Presidente da República pelo Presidente da AN, não tendo qualquer justificação nem sentido a prática constitucional actual - de certo modo validade por doutrina do Tribunal Constitucional - que até nos leva a situações ridículas de termos dois Presidentes da República ao mesmo tempo (um a discursar na ONU ou a conferenciar com homólogo, outro a ser PR substituto ou interino, promulgando ou vetando leis). A substituição apenas tem sentido em casos como o de impedimento temporário, solução que, aliás, no nosso entendimento, poderia resultar de uma interpretação adequada dos normativos vigentes e era o regime previsto no anteprojecto de Wladimir Brito; b) Reavaliar as normas sobre o poder judicial, procurando ver se, pela via da revisão constitucional (ou se bastará haver mudanças na lei ordinária), se se obtém uma alteração do que, para nós (opinião defendida há mais de vinte anos, por ocasião, designadamente, do Estudo sobre o Estado da Justiça) é fundamental para melhor a administração da justiça: responsabilizar o sistema no seu todo, evitar excessos de corporativismo e mexer corajosamente na área das inspecções. Aspectos muito particulares: o Presidente da República deve poder nomear os Presidentes do STJ e do CSMJ sem os condicionalismos actuais (na prática, acaba por ter de nomear o magistrado que lhe é indicado pelos juízes que compõem aqueles organismos); c) Deve ser introduzida uma disposição que consagre um princípio de "reserva de código (penal)”, segundo o qual apenas poderão ser aprovadas novas normas penais se consistirem em modificação de dispositivo do CP ou se se se integrarem em leis que regulem integralmente uma matéria determinada. Esta é uma proposta que fizéramos já em 1999, no âmbito de um conjunto de 27 sugestões feitas e apresentadas pela revista "Direito e Cidadania"; d) Igualmente se deverá ponderar criar norma que consagre o princípio de um "direito penal do bem jurídico" (ou de "danosidade"); e) O prazo concedido ao PR para requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade deve ser relativamente alargado (dez dias ou oito dias úteis); f) Deve ser afastado o condicionalismo imposto ao PR para nomear cinco cidadãos para o Conselho da República, até porque a "imposição" se torna quase "romântica", sendo de difícil escrutínio ou verificação (representação de todas as sensibilidades políticas com expressão parlamentar).

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Autoria:Expresso das Ilhas,24 set 2022 5:54

Editado porAntónio Monteiro  em  24 set 2022 6:43

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