“Não podemos viver num mundo em que a verdade e a objectividade não existem” - Primeiro-ministro

PorSara Almeida,31 jul 2025 12:02

Por ocasião do último debate sobre o Estado da Nação desta legislatura, que acontece amanhã, 31, o Primeiro-ministro apresenta um balanço inequivocamente positivo da sua governação e do percurso do país nos últimos anos. Graduação a país de rendimento médio-alto, taxa de desemprego de um dígito, crescimento do PIB acima dos 7%: os números, objectivamente, estão do lado do governo, defende, confrontando percepções com dados. Ulisses Correia e Silva recusa a ideia de que existe um fosso entre o crescimento económico e a realidade sentida pelos cabo-verdianos, acusando a oposição de fabricar narrativas para desacreditar os resultados alcançados. Nesta conversa, o PM defende o modelo económico escolhido, justifica as opções polémicas nos transportes e antecipa as apostas futuras do país. Um retrato do Cabo Verde de hoje, visto pelos olhos de quem governa.

De uma forma geral, como avalia o Estado da Nação cabo-verdiana?

Cabo Verde está hoje muito melhor a nível de crescimento económico, redução do desemprego e da pobreza. Culminámos com a graduação a país de rendimento médio-alto, o que representa o percurso daquilo que é um país resiliente, a crescer, a desenvolver a sua economia e a fazer com que essa economia beneficie as pessoas.

Que impacto real tem a reclassificação de Cabo Verde como país de rendimento médio-alto para o país e os cabo-verdianos?

Coloca Cabo Verde numa posição mais atractiva perante os mercados, os investidores e os parceiros. Há sempre a tendência de vender mais a pobreza do que o sucesso, o progresso… Os países que crescem criam maior capacidade para aumentar a confiança daqueles que investem, que fazem parceria e das instituições financeiras internacionais que emprestam o seu dinheiro, que deve ser depois pago. Essa é a grande vantagem para o país. Em segundo lugar, internamente, significa que o crescimento económico, de forma sustentável e robusta, é o caminho para podermos criar melhores condições para aumentar o rendimento das famílias, o rendimento do trabalho, reduzir o desemprego e reduzir a pobreza. Em terceiro lugar, isto está associado a mecanismos que são devidamente ponderados. Cabo Verde é um Pequeno Estado Insular em Desenvolvimento (SIDS), com vulnerabilidades económicas, climáticas e ambientais e elevada exposição a choques externos. Precisamente por isso, os SIDS beneficiam de uma cláusula de salvaguarda para garantir que os empréstimos concessionais e condições favoráveis ao financiamento do seu desenvolvimento continuarão. Isto garante que Cabo Verde continuará a ter acesso a boas condições de financiamento e terá, ainda, muito melhores condições de acesso a financiamento nos mercados e à atracção de investimento directo estrangeiro.

Temos essa reclassificação e temos um crescimento revisto do PIB para 2024, de 7,2%. Mas por que razão é que os cabo-verdianos, na prática, à mesa, ainda não sentem esse crescimento económico? A oposição até fala de paradoxo...

Sentem, sim. O paradoxo construído é uma narrativa. O PAICV repete isso e cria essa narrativa. Depois, a comunicação social acaba por reproduzir.

Mas há dados que mostram que muitos cabo-verdianos não conseguem sequer fazer três refeições.

Vou chegar lá. Primeiro, é narrativa. A narrativa é fabricada para poder criar uma outra realidade, que depois é difundida, transmitida e repetida. As pessoas sentem, sim. Se a economia cresce, o país tem maiores rendimentos. Maiores receitas fiscais para investir na educação: as pessoas sentem. Há financiamento e subvenção na educação e isso vai directamente para as crianças e jovens. Na saúde, a prestação de cuidados de saúde, fornecida pelo Estado, é financiada com receitas fiscais: as pessoas sentem. Essas receitas existem porque o país cresce. A isenção da taxa moderadora de saúde é benefício directo às pessoas. O emprego é gerado: as pessoas sentem. Há um conjunto de benefícios sociais que aumentou de uma forma significativa, que só existe porque o país está a crescer. Agora, não temos ainda taxa de desemprego zero, nem pobreza zero. Os problemas deixariam de existir se alguma vez tivéssemos. Nenhum país tem. O facto de termos reduzido a pobreza de 35,5% em 2015 para 24,7% em 2023 significa que uma parte significativa de pessoas saiu da pobreza. Na pobreza extrema, tínhamos 4,5% em 2015 e, em 2023, 2,3%. Embora não seja zero, este número representa também uma redução significativa. Essas pessoas podem dizer que não sentem os efeitos do crescimento económico, mas são muito menos do que antes. Portanto, esta narrativa tem que ser desconstruída, porque o PAICV, é claro, tem interesse em dizer que o crescimento não afecta as pessoas. O crescimento afecta as pessoas, afecta a economia, disponibiliza recursos para o Estado investir na administração, na saúde, na segurança, na justiça. Tudo isto é reflexo de um país que cresce e que aplica o resultado desse crescimento em benefício das pessoas.

A taxa de desemprego baixou para um digito. Porém, 83% dos cabo-verdianos [dados da Afrosondagem] consideram que o governo falhou na criação de empregos e muitas vezes se recorda a promessa dos 45 mil postos de trabalho. Como avalia, hoje, essa promessa?

Essa promessa vem do programa do governo de 2016 a 2021. O governo foi avaliado e ganhou as eleições. De 2021 a 2026, não avançámos com a promessa dos 45 mil postos. Avançámos com a redução da taxa de desemprego para níveis até menos baixos do que os actuais. De uma previsão de chegar, talvez, a 10%, chegámos a 8%. Reduzimos de forma significativa. De 2016 a 2024, foram criados cerca de 39 mil postos de trabalho. Não foram mais porque houve destruição de postos de trabalho devido à seca, à pandemia, à guerra na Ucrânia e às crises associadas. Portanto, a narrativa do PAICV, que a comunicação social gosta de repetir, ao fixar-se nos 45 mil postos, baseia-se numa meta definida em 2016, não deste programa do governo. Quanto à Afrosondagem, é apenas uma entre várias sondagens, cujos dados variam. Não deve ser tomada como regra absoluta, até porque os resultados de hoje podem ser diferentes dos de daqui a alguns anos. É com essa perspectiva que analisamos estas questões, com tranquilidade.

Associada a esta questão, fala-se muito da emigração. As migrações estão a aumentar, com fluxos nos dois sentidos. Mas o que está a falhar na retenção de talentos em Cabo Verde?

Para falar de retenção de talentos, é preciso primeiro demonstrar que esses talentos estão realmente a sair. Não está demonstrado que quem está a sair são os altamente qualificados, com remunerações elevadas aqui em Cabo Verde. Em segundo lugar, não é uma questão de falhar. Este fenómeno acontece em todo o mundo. Esse movimento existe: assim como os cabo-verdianos saem, há quem venha para Cabo Verde, do Senegal, da Guiné-Bissau e de outros países. Entretanto, há um acordo de mobilidade entre Cabo Verde e os países da CPLP, sobretudo Portugal, que criou mais facilidades para a mobilidade, quer de pessoas que vão procurar emprego, quer para reagrupamento familiar, quer para tratamento de saúde, etc. Esta facilidade provocou esta onda. Reter talentos e reter mão-de-obra, de uma forma geral, significa, em primeiro lugar, mais oferta de emprego e de emprego mais bem remunerado. Porque não é só um problema de desemprego, é a remuneração. É a diferença entre o que um país paga e o que outro oferece que torna o outro mais atractivo. Está-se a atingir esse nível. Quanto mais Cabo Verde cresce, melhores condições criamos para pagar melhor o trabalho. Mas, quem remunera o trabalho não é apenas o Estado. É essencialmente o sector privado, e este também tem as suas limitações. Muitas vezes, sair é também uma vontade de conhecer o mundo. É a atracção pelo novo. Vai um, chama outro, cria-se uma corrente.Enfim, é preciso não dramatizar. A realidade é que há algum movimento de retorno. Alguns dos que saíram, estão a regressar e há interesse por Cabo Verde por parte da nossa diáspora bem qualificada.

A mão-de-obra qualificada vai-se renovando?

Naturalmente. E nem sequer é um problema de quantidade. É possível e desejável atrair quadros da diáspora, não necessariamente para residirem em Cabo Verde, mas para investirem, estabelecerem ligações e trazerem competências em áreas como a medicina, as tecnologias, a academia.

Há vários médicos formados cá no desemprego…

Não estão no desemprego. Até porque estamos a fazer a reintegração com o PCFR. Estão agora a ser colocados. Mas esse défice vai existir sempre. Cabo Verde, até por uma questão de escala, não conseguirá ter todas as especialidades de que necessita. Por isso, se conseguirmos criar condições para que médicos da diáspora, altamente qualificados, possam exercer no país, mesmo sem aqui residirem, ganhamos em conhecimento, em valências técnicas, em áreas em que ainda temos lacunas. É uma vantagem: amplia a qualidade e a capacidade do nosso capital humano. Cabo Verde tem de ser um país fluido neste aspecto. A nossa essência sempre foi de quem emigra, vai e volta. Então o que precisamos é de transformar isso num quadro de maior facilidade, onde conseguimos atrair o capital humano, lá onde ele existe para que contribua para o país.

O capital humano tem sido sempre apontado como uma das maiores riquezas de Cabo Verde, daí a importância da educação. Como vê as reformas em curso, nomeadamente as línguas e o digital?

As reformas no ensino básico e secundário, basicamente, já foram feitas. Agora, é preciso tempo para que produzam efeitos. Por exemplo, antecipámos o ensino do inglês do 7.º para o 5.º ano a partir de 2019-2020 e vai até ao 12.º ano. Só em 2026-2027 é que se poderá avaliar o perfil completo dos alunos formados com o novo currículo. O mesmo se aplica a outras áreas como a matemática e as ciências. As reformas educativas não produzem resultados imediatos. Produz-se é para o ciclo. No 12.º ano teremos, sim, o perfil de saída desse novo estudante: com mais competências em línguas, matemática, ciências, tecnologias. Com o tempo, essas competências vão-se sedimentando.

E depois saem para a universidade. Qual a visão para o ensino superior e o acesso ao mesmo? Recentemente foram entregues as residências universitárias. Em que medida é que isso se insere nessa estratégia?

Saem para o ensino superior ou para a formação profissional. Aliás, essa é outra reforma que fizemos, criando condições para que, já no 8.º ano, quem quiser ir para a formação profissional, tenha uma via técnica devidamente estruturada. No ensino superior, aumentámos a dotação orçamental para regularização das propinas de estudantes de famílias que, por algum motivo, tiveram problemas de rendimento e acumularam dívidas. O programa, que vai abranger cerca de 500 estudantes, vai permitir a regularização, para que possam ter o seu certificado e para que as universidades recebam os valores em falta, para poderem pagar aos professores e manter o seu funcionamento.

Mas não vão fazer o mesmo que fizeram para a formação profissional, de tornar gratuita aos inscritos no Cadastro Social Único?

Não é a nossa opção, e é importante explicar porquê. Com as bolsas de estudos, o Estado já apoia os estudantes, quer escolham uma universidade pública, quer privada. O que normalmente falta complementar são os custos associados à vida académica: residência, alimentação, deslocações, sobretudo para quem estuda fora da zona de residência. O que estamos a fazer é reforçar as bolsas de estudos. Para as famílias, isso já representa gratuitidade, porque não pagam a universidade. E estamos a complementar esse apoio com residências universitárias, porque é aí que está o encargo adicional maior para a família. As residências são pagas, mas a preços muito inferiores aos do mercado. A oferta que temos hoje na Uni-CV, é limitada. Então, estamos a afectar 233 casas que estão a ser concluídas na Praia e em São Vicente, para receber estudantes, a preços sociais a ser acordados com as universidades. Esse é o mecanismo. Depois, pretendemos introduzir subvenções para famílias cujos rendimentos não permitam suportar o preço da residência universitária. É dentro deste quadro que trabalhamos, e é importante esclarecer essa ideia de lançar slogans de ensino superior gratuito, sem ver o conteúdo. A bolsa de estudos representa gratuidade para quem a recebe. Se temos hoje uma procura ainda não satisfeita no ensino superior, a resposta é aumentar o número de bolseiros e criar condições para que o número de residências seja razoável para atender os estudantes que se deslocam das suas zonas de origem.

Em relação aos transportes, a situação tem sido algo caótica: privatização, desprivatização, a TACV a abandonar e depois a retomar os voos inter-ilhas. Reconhece que os modelos escolhidos falharam?

Não. Não falharam e não tem nada de caótico. O essencial aqui é se você mantém oferta ou não de transportes.

Mas foram opções que não deram certo.

Mesmo durante a covid e outras crises, não houve descontinuidade, não houve disrupção na oferta. Nos voos inter-ilhas houve até aumento de passageiros, frequências e ligações. O mesmo se passou nos transportes marítimos. Isso, sem prejuízo de momentos em que houve, e tem havido, avarias, problemas de manutenção e atrasos. O processo de privatização deu resultados, quando foi implementado. Apanhámos uma companhia que estava a falir, em estado vegetativo e conseguimos recuperá-la. Com o parceiro privado, funcionou bem até à covid, com vários voos internacionais a partir do Sal; quatro destinos para o Brasil; Lagos, na Nigéria; Dakar; vários destinos na Europa e Boston e Washington nos EUA. Funcionou. Com a pandemia, os aparelhos ficaram no chão, acumularam-se prejuízos, e foi necessário refazer a contratualização com a Iceland Air. Infelizmente, devido aos problemas que estavam a acumular na Islândia, não foi possível fazer a recuperação e o cumprimento da segunda contratualização estabelecida com a empresa. Decidimos descontinuar essa privatização. O Estado assumiu o capital alienado e a empresa na totalidade. Nos transportes aéreos inter-ilhas, tivemos a Binter, e depois a Bestfly, que teve alguns problemas no seu funcionamento, mas mesmo com esses problemas todos, das companhias, não deixou de haver voos e ligações.

Agora o Governo vai criar uma nova companhia. Chegaram à conclusão que não podem sair do negócio inter-ilhas?

Sempre vocacionámos a TACV para transportes internacionais. Num determinado momento funcionou nos transportes inter-ilhas e internacionais. Agora, tomamos a opção de colocar o TACV efectivamente nos transportes internacionais e criar uma outra companhia, Linhas Aéreas de Cabo Verde, apenas para os transportes inter-ilhas. Neste momento, a TACV continua a operar inter-ilhas de forma transitória porque detém o licenciamento para fazer as operações. Quando a nova companhia obtiver as licenças, será ela a operar essas ligações. Então, não há absolutamente nada de caótico nem de modelos que não funcionaram. Fizemos opções, tivemos de descontinuar essas opções por factos que são muito evidentes: a covid e uma crise internacional muito forte nos transportes aéreos. Reajustámos e estou convencido de que vamos estabilizar os transportes, tanto inter-ilhas como internacionais, e alcançar uma normalidade duradoura e permanente.

A construção de um aeroporto em Santo Antão justifica-se, tendo em conta que já existem ligações marítimas regulares com São Vicente?

Justifica-se. Temos estudos que apontam para isso.

Mesmo sem turismo de massa?

Não tem que ser turismo de massa, mas tem que ter escala suficiente. Hoje temos cerca de 50 mil turistas e não se consegue ter impacto no turismo. Precisamos de um mínimo de escala e essa escala vem com o ponto a ponto. Temos já até a disponibilidade de investidores de referência na construção de hotéis, que está dependente de termos ou não o aeroporto. E Santo Antão precisa de escala, mesmo mantendo o tipo de turismo que temos.

E para quando no Maio?

No Maio, com o projecto Little África arrancando...

O Little África sempre vai avançar?

Vai.

Todos esses processos parecem muito lentos. Quase se pode pegar numa entrevista de um ano passado e voltar a fazer as mesmas perguntas.

Sim, só que as entrevistas não fazem investimento… É um operador privado, o investimento é elevado e esses empreendimentos não dependem apenas de um único investidor. Depois é preciso captar um conjunto de financiadores para ‘fazer acontecer’. Mas o Maio está bem posicionado.

Falou do Little Africa. E como está o empreendimento do Djeu, da Macau Legend, na Praia?

Estamos num processo que já foi despoletado junto do promotor, relativo à reversão da concessão. A concessão implica realizar investimentos e fazer esse investimento funcionar. Infelizmente ficou estagnado. O investidor foi notificado e recebeu um prazo para apresentar uma solução, prazo esse que está já no fim. Agora, dentro dos trâmites legais, temos duas opções: ou retoma-se o investimento, o que é considerado pouco provável, ou o Estado obtém a reversão e procura novos investidores para o empreendimento. Estes novos investidores podem apresentar propostas diferentes, inclusive quanto à ocupação do espaço.

Foram atribuídas subvenções aos voos para as ilhas periféricas. Como têm funcionado?

A subvenção, actualmente para Maio e São Nicolau, e que é de 40%, tem tido um impacto muito grande. As taxas de ocupação de aparelhos são muito superiores ao que eram e isso, por si só, vai viabilizar o aumento da regularidade. No caso da Brava, a subvenção aplica-se aos transportes marítimos, e já foi regulamentada, e aos voos até ao Fogo. Quem parte da Praia, por exemplo, faz trânsito no Fogo e segue para a Brava e, aí sim, obtém o desconto da subvenção na passagem.

É possível termos bilhetes a 500 escudos nas ligações marítimas e a 5 contos nas ligações aéreas? Que impacto teria essa medida?

Se alguém lança números assim, podemos perguntar: porque não 100 escudos? Os transportes têm custos, e esses custos têm de ser suportados. O mais importante, e que as pessoas esperam. é garantir regularidade e frequência. E depois, ter os custos subvencionados por causa da insularidade e por termos ilhas com situações diferentes. Aquelas que têm menos menos população, menos fluxo e menos turismo têm maiores dificuldades em viabilizar a mobilidade. É nesses casos que fazemos subvenções e subsídios cruzados, que têm a ver até com o próprio processo de concessão.

Mas os preços, para todas as ilhas, continuam elevados. Conseguimos viajar mais barato para fora do país do que cá dentro.

Normalmente, nas ilhas isso acontece.

Nas Canárias e nos Açores, por exemplo, há subvenções altas para todas as ilhas

É subvencionado e nós subvencionamos, através do subsídio cruzado. Os bilhetes nas rotas com maior fluxo, ajudam a subsidiar as rotas com menor procura. Tomamos essa medida para as ilhas que chamamos de mercado diminuto, precisamente para poder criar níveis de viabilidade das ligações e das frequências e começar a ter fluxo de turismo e de viajantes. Estamos a trabalhar o resto do pacote, estudando até que ponto podemos ir relativamente à subvenção. Isso vai fazer parte do programa de concessão de serviço público, que define rotas obrigatórias, frequências e o nível de subvenção que é necessário, porque as companhias não podem fazer isso. O Estado é que tem, na base da política de transportes, que juntar as duas coisas. Se só é rentável fazer um voo por semana para o Maio, a companhia só faz um. Se queremos três, é preciso subvencionar. É este o esquema: subvenção associada à frequência e regularidade para garantir o melhor preço possível, e a parte que o Estado vai assumir. Nos transportes marítimos, a mesma coisa. Mas nunca nessa perspectiva de lançar números para ver no que é que dá.

A segurança continua a ser uma preocupação, e temos picos de criminalidade. O que tem sido feito para reduzir a insegurança e como avalia os resultados?

As medidas que temos adoptado têm produzido resultados, de forma sustentada ao longo do tempo. Isto não significa que não haja picos. Em cidades pequenas, onde todo o mundo se conhece, a informação circula rápido, e havendo um crime mais grave, dispara o sentimento da percepção da insegurança. Mas, temos trabalhado de uma forma consistente, nomeadamente com operações especiais que têm resultado, porque a criminalidade está muito ligada à droga, álcool e armas. Aumentámos o controlo e punição das armas e munições, com uma lei do Parlamento, com fiscalização reforçada, incluindo nas alfândegas, onde instalámos scanners para fechar o cerco. Temos vindo a realizar operações especiais em Praia e São Vicente, com maior colaboração da Procuradoria-Geral para garantir buscas autorizadas pela justiça. Também reforçámos o sistema judicial para combater a sensação de impunidade. O ‘Cidade Segura’, com videovigilância, contribuiu, e muito, para melhorar a eficácia da acção policial. Paralelamente, trabalhamos o outro lado do problema: a prevenção; a assunção da responsabilidade social e os jovens que caem nesta rede de problemas de delinquência, recuperando-os e evitando reincidência através do trabalho que está a ser realizado nas prisões.

Em relação à Transparência e Corrupção. A percepção dos cabo-verdianos, e dados da Afrosondagem mostram-no, não parece alinhar-se com os bons indicadores dos rankings. O que é que o Governo tem feito nesta, que é outra área criticada?

Já foi feito muito e continua a ser. Porque tomarmos apenas a Afrosondagem como referência e ignorarmos outros, como a Freedom House? Sem desprimor, é preciso relativizar.O quadro institucional hoje é muito mais forte na transparência financeira, na gestão do orçamento do Estado, na divulgação de dados. O Tribunal de Contas hoje tem competências mais fortes, mais auditores, melhores condições de funcionamento e maior orçamento. Temos o Conselho de Prevenção da Corrupção, que funciona. Institucionalmente, temos os dados. Agora, há narrativas interessadas que repetem e acabam por criar esse sentimento de que “isto corresponde à percepção dos cabo-verdianos”. As narrativas e as percepções não são neutras. Se faço essa abordagem, sistematicamente, que a comunicação social cobre, as pessoas começam a formar uma ideia. E formam a ideia, não com base naquilo que é objectivo, mas naquilo que é a informação que recebem. Isso acaba por influenciar os índices de percepção.

Tem falado em narrativas. Sobre desinformação, que é um problema que se amplificou com as redes sociais, que medidas para a combater, tendo em conta não apenas a imagem do governo, mas o impacto que pode ter na sociedade?

É um combate que não é só do governo e das instituições. A própria comunicação social tem esse papel. Já assinamos o contrato de concessão de serviço público da rádio e televisão.

Essa concentração de recursos só no serviço público não é má para a pluralidade de vozes?

Não é, até porque essa pluralidade existe. Agora, o grande problema é que o serviço público de rádio e televisão deve assegurar pluralismo, objectividade e imparcialidade. E deve ser um líder na desconstrução dessa desinformação por narrativas fabricadas e produzidas para chegar a um determinado fim. Por isso é que a objectividade é muito importante. Não é exigido, por exemplo, a um órgão privado que o faça, mas o público deve fazer, precisamente para não alimentar a chamada pós-verdade, em que tudo é relativo.

O privado também de fazer isso. São regras básicas do jornalismo.

Tem, mas o Estado não obriga. É um princípio editorial de cada órgão privado. Quanto à desinformação e às mensagens populistas extremistas, que circulam não só nos órgãos de comunicação social, mas sobretudo na internet e redes sociais, é um combate que não é fácil. Não é um problema apenas do governo, é um problema da sociedade. É um problema de educação e de literacia digital para que, particularmente para os jovens, possam distinguir a verdade. Isso não se limita à política, entra em várias outras matérias, que têm a ver com a percepção das pessoas, até perante a vida. As redes sociais apresentam desafios complexos, que exigem uma regulação. Essa regulação não é fácil e, internacionalmente, não foi conseguida, mas não significa que não se deva dar a devida atenção a essas matérias, porque não podemos viver num mundo em que a verdade e a objectividade não existem. E, depois, tudo é posto em causa em função de interesses ligados a esses fenómenos, que são largamente alimentados.

Quais são os maiores pilares em que o governo está a apostar para atingir a diversificação da Economia?

Primeiro, o próprio turismo, que ainda tem margem suficiente de diversificação. Cada ilha pode ser um destino distinto, explorando melhor as potencialidades no turismo de natureza, rural, cultural e de eventos, áreas que têm ainda muito espaço para crescer. Depois, a economia digital é um sector com grande potencial para criar emprego qualificado e bem remunerado, sobretudo para os jovens, e exportar serviços digitais a partir de Cabo Verde, aumentando a sua contribuição no PIB e no emprego. Estamos no caminho certo nesse domínio. Só o Parque Tecnológico da Praia já criou 400 postos de trabalho relativamente bem remunerados. Jovens continuamente qualificados para prestar esse serviço em qualquer parte do mundo e empresas instaladas com potencialidade de crescimento. Em São Vicente, a mesma coisa. E continuar a investir nas infra-estruturas da internet. Temos que ter o 5G, porque aumenta significativamente o potencial de posicionamento de Cabo Verde, com cabos de fibra óptica submarinos. Já temos o EllaLink e [as ligações de fibra óptica vão] aumentar. Temos também a economia azul, com várias acções em andamento. Há duas áreas principais. O Transhipment [transbordo de contentores], com a expansão do Porto de Mindelo com financiamento do Global Gateway, que vai aumentar a capacidade de Cabo Verde para prestar serviços, com dinheiro a entrar no país e criação de emprego. E a pesca: a pesca industrial, a indústria ligada à pesca e à aquacultura. A aquacultura está bem posicionada, com espaço de desenvolvimento, com produção para exportação. Na pesca, estamos a apostar em ter barcos de pesca industrial registados com bandeira cabo-verdiana para fortalecer a pesca e abastecer a indústria nacional. Portanto, este sector está a desenvolver-se e com o planeamento previsto, vai aumentar significativamente a sua contribuição para o PIB.

Entrando na recta final, face às grandes crises e mudanças globais recentes - como a pandemia, a guerra na Ucrânia e a redução de ajudas externas - , como Cabo Verde pretende posicionar-se no mundo? E sabendo que quem traz o dinheiro impõe agendas, como o país defende os seus interesses próprios?

Temos ideias muito claras sobre isso. Primeiro, o nosso posicionamento na questão da segurança, que é o que, em termos de geopolítica, sofre mais pressões. A nossa localização coloca-nos na confluência entre Estados Unidos da América, América Latina, África Ocidental e Europa e a nossa opção, que está no Conceito Estratégico de Defesa e Segurança Nacional, é apostar na segurança marítima colaborativa, com parcerias sólidas e boas alianças para combater fenómenos como tráfico de droga, de pessoas e pirataria marítima. Uma série de fenómenos que são colocados na nossa rota, e é fundamental estarmos seguros e contribuir para essa segurança. Em matéria de cooperação, o nosso posicionamento reflecte a nossa localização e historial. Cerca de 80% do comércio externo, grande parte do investimento estrangeiro directo e do turismo provêm da União Europeia e do Reino Unido. A nossa moeda está ligada ao euro desde 1998, e a diáspora está concentrada na Europa e nos Estados Unidos. Isso significa que, de uma forma quase natural, em termos de relações económicas, há um peso muito grande da ligação entre Cabo Verde e a Europa. Isso tem a ver também com as nossas opções em termos de cooperação, mas não elimina a cooperação bilateral com vários outros países. Temos uma boa relação com a China, um bom parceiro para o desenvolvimento, que é uma potência mundial. No continente africano e quanto à integração na CEDEAO, não é por falta de vontade nossa que as coisas não avançam. Hoje, a CEDEAO é um espaço com vários problemas e conflitos, que estão fora do quadro de integração económica que se desenhou. Ficou-se quase num quadro de gestão de conflitos e de problemas. Claramente, isto dificulta uma cooperação económica mais forte e intensa na região, mas esta não deixa de ser o nosso espaço natural de integração e de relação, incluindo em questões que têm a ver com segurança e segurança cooperativa. É dentro desse quadro que temos que procurar, nomeadamente nas relações económicas, identificar os países da África Ocidental, e da África Lusófona, com os quais nós podemos intensificar as nossas relações. Uma coisa é a CEDEAO, outra coisa, os países que estão lá e são-nos mais próximos. É o caso de Senegal, Guiné-Bissau ou Costa de Marfim: países que têm potencial suficiente para podermos aumentar as nossas relações económicas.

E para finalizar, está satisfeito com o Estado da Nação?

É o Estado da Nação que temos. A satisfação é que produzimos resultados na base de um percurso, e consideramos ter conseguido dar respostas muito efectivas. Não podemos ignorar os desafios que enfrentámos: a pandemia em 2020 e, em 2022, a crise despoletada pela guerra na Ucrânia, que provocou uma inflação muito grande. E não se pode ignorar tudo aquilo que fizemos em termos de recuperação e relançamento. Entre 2021 e 2024, crescemos em média 9% ao ano, logo após a pandemia. Fechamos 2019 com 6,9%. Depois caímos para -20,8% por causa da pandemia e em dois anos recuperamos. Em comparação: na crise subprime de 2007-2008, o país demorou mais de seis anos para se recuperar, alcançando apenas cerca de 1% de crescimento anual em 2015. A crise da pandemia foi muito mais forte e recuperámos muito mais rapidamente, atingindo em 2024 um crescimento de 7,3%, o que é um bom indicador para o futuro próximo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1235 de 30 de Julho de 2025

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Autoria:Sara Almeida,31 jul 2025 12:02

Editado porAndre Amaral  em  1 ago 2025 8:19

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