Maria vai à escola

PorChissana Magalhães,8 set 2018 11:51

​Quando daqui a pouco mais de duas semanas se iniciar o ano lectivo 2018/2019, entre os milhares de alunos que retornarão às aulas estará Maria, uma sexagenária que mesmo com as sequelas de um AVC decidiu no ano passado começar a frequentar a escola e cumprir assim o sonho de uma vida.

“Passe-me esse caderno e a caneta para eu lhe mostrar que já escrevo o meu nome”.

A mulher pega na caneta, ajeita o caderno e, com grande concentração mas sem esforço, começa a desenhar as palavras: Maria Águida Lopes Cardoso. A letra é bem-feita e cabe com elegância entre as linhas. Longe dos gatafunhos que se poderia esperar de alguém que, aos 61 anos e depois de um violento acidente vascular cerebral (AVC), pela primeira vez se sentou num banco de escola para aprender a ler e a escrever.

“Sei escrever o meu nome, sei escrever o nome dos meus filhos”, declara orgulhosa.

Ela, na verdade, sabe hoje mais do que apenas ler e escrever o seu nome e os dos seus seis filhos. No ano lectivo passado estudou a primeira classe: Língua Portuguesa, Ciências Integradas e Matemática. Teve boas notas a tudo e este ano irá estudar a 2ª classe. Tem contado os dias que faltam para o regresso ás aulas.

É o sonho de uma vida que se cumpre. Em criança os pais não quiseram que frequentasse a escola. Elas e as irmãs foram obrigadas a ficar em casa, a ajudar nos trabalhos domésticos, enquanto os irmãos rapazes iam para a escola. Maria, entre divertida e séria, explica os argumentos da mãe, o mesmo a que tantas famílias recorreram naquela época para manter analfabetas as meninas: “Dizia que meninas só iam à escola aprender a escrever cartas ao namorado.”

Mais adiante na nossa conversa, os olhos baixos e os dedos traçando linhas curvas imaginárias na superfície da mesa, confessa não conseguir libertar-se de um certo ressentimento da mãe, já falecida, por não lhe ter proporcionado a oportunidade de frequentar a escola.

“Tenho uma fotografia dela e às vezes pego nessa foto e fico a olhar para e ela e digo: “Porquê que não me deixaste ir à escola? Porquê?” Mas eu também gosto dela e sinto saudades…”. A revelação é feita com gestos e entoação a imitar o episódio narrado. No fim, ri-se com uma certa tristeza à mistura.

Porque nos conta isso? Talvez por causa da filosofia de vida que decidiu adoptar desde que teve o AVC: não deixar nada por dizer. Parece acreditar que tirar as coisas da boca para fora torna-a mais leve, menos susceptível a adoecer.

Voltando à sua infância, a vontade de aprender de Maria era tanta que desviava-se dos seus afazeres e, arriscando castigo, ia à escola espreitar as aulas.

“Ficava do lado de fora a espreitar, a ouvir. E foi assim que aprendi a dizer o ABC todo.”


Uma universitária na família

A vontade de aprender, a curiosidade, acompanhou-a ao longo da vida. Diz que chegou a aprender a contar em Inglês, até 12. Se mais não foi possível foi porque Maria, de família humilde, quando começou a ganhar o seu sustento tinha já os seus próprios filhos por quem olhar. Com o trabalho de peixeira, e mais tarde vendedeira, mandou todos os seus filhos à escola. Os três rapazes e as três meninas que, praticamente, criou sozinha. O companheiro e pai das crianças muito cedo tomou outro rumo, numa história demasiado parecida a tantas outras neste país.

“Eu não pude ir à escola quando era criança mas os meus filhos… Eu tinha que os pôr na escola. Todos.”

E foram todos. No entanto, um a um, foram desistindo. Menos uma. Sulamita Cardoso é a penúltima filha e aquela de quem a mãe diz: “Sempre teve cabeça para a escola. É inteligente.” O dia em que a jovem terminou o liceu é descrito pela mãe como um dos mais felizes da sua vida. Conta com voz embargada pela emoção o dia em que foi “pôr a fita” à filha finalista.

Sulamita tornou-se na primeira pessoa da sua família a entrar para a universidade. O percurso foi atribulado, com várias paragens devido às dificuldades financeiras, mas este ano terminou o curso de licenciatura em Relações Públicas e Secretariado Executivo. A sua determinação e sucesso foram inspiração para a mãe que viu reavivar o sonho de se educar.

“Às vezes via-a a estudar e aproximava-me. Apanhava o seu livro e começava a soletrar as palavras e perguntava: “Sulamita, como é que se lê isso?” E ela ensinava-me. Agora até estudamos juntas.”

No ano passado, quando alguém de uma associação comunitária lhe sugeriu começar a estudar a sua primeira reacção foi de descrédito. “Já tenho 61 anos, como posso ir agora à escola?”. Mas com a insistência de várias pessoas, acabou por ceder ao desejo que sempre a acompanhou e hoje não poderia estar mais satisfeita com os seus bons resultados.

“Tive 20 a Matemática, 19.5 a Ciências Integradas, e a Língua Portuguesa (como é mais difícil) tive 19. Adoro Matemática!”. E, entre risos, conta também sobre o dia em que chegou em casa com a sua prova de 20 valores e foi mostrar à filha: “Mamã, veja a minha prova”.

Essa inversão de papeis ilustra o respeito e admiração que Maria sente pela filha formada, hoje quase que sua encarregada de educação pois é o seu salário de secretária numa instituição que veio melhorar substancialmente a situação da família.

Maria trabalhou a vida toda, recebe hoje uma pensão do Estado de cerca de 5 mil escudos. Quando jovem, viu fugir por entre os dedos uma oportunidade de emprego nos Correios. O facto de ser analfabeta inviabilizou a oportunidade que um conhecido, que notara a sua inteligência, lhe dava de ter um trabalho seguro, com rendimento garantido ao final do mês.

“Aquilo deixou-me muito revoltada. Quando soube que não podia ficar com o trabalho fui sentar-me nas rochas, perto do mar, a chorar. Fiquei muito triste ao perceber que nunca poderia ter um trabalho assim porque não tinha ido à escola:”

Mas não baixou os braços e com o seu trabalho de peixeira e vendedeira foi garantindo o sustento da família. Com o dinheiro ganho na loteria Maria construiu a casa da família mas, para além de lhe terem roubado grande parte desse dinheiro, também a casa fora mal construída e a certa altura parte desta desabou. Foi uma época complicada em que admite ter mergulhado na tristeza. Mas o pior ainda estava por vir.

Em 2007 aconteceu-lhe o AVC que a atirou para uma cama de hospital com um prognóstico médico de apenas 24 horas de vida. Sobreviveu às 24 horas e aos mais dias que vieram, e então o vaticínio era de que vivesse para sempre com as fortes sequelas: visão turva e desfocada, quase sem poder falar e se mover.

Alguma coisa na forma como nos conta os problemas que foi enfrentando na sua vida revela a fibra desta mulher que aos 61 anos decidiu que não era tarde para realizar o sonho que a acompanhou toda a vida.

“Fui recuperando mas, os remédios eram muito caros e eu não conseguia comprá-los. Decidimos fazer tratamento com “ramedi téra” e também fazia fisioterapia. Felizmente, recuperei bastante. Mas durante uns tempos foi difícil e eu chorava muito.”


O primeiro dia de aulas

As sequelas do AVC ainda se fazem sentir. Para andar precisa da ajuda de canadianas e tem episódios de “bloqueios” mentais em que sente-se a “apagar”. Também sofre de tensão alta e diabetes, e admite que nem sempre consegue seguir uma alimentação regrada. Já lhe aconteceu durante as aulas sentir-se mal e nesses momentos pode comprovar o carinho e atenção de todos para com ela.

“Os meus professores e colegas tratam-me muito bem. Vir para a escola foi difícil, mas também foi alegre. Pensava que não iria conseguir por causa do AVC.”.

Mas conseguiu. Maria frequentou as aulas do 1º ano de segunda a sexta-feira. Das 14 às 17 horas. Da zona de Calabaceira onde mora desloca-se a São Filipe onde fica a escola, de autocarro. Um transporte da escola leva-a de volta à casa.

E, de repente, recorda o primeiro dia de aulas. O quanto estava contente mas também nervosa. O como sentiu-se envergonhada por ser a única idosa na turma de jovens adultos, a maioria na casa dos 30. O como quis desistir ao lutar para escrever as primeiras palavras e os primeiros números mas foi estimulada pelos professores.

Agora diz-se mais focada no quanto lhe encantam os cadernos, a caneta, os números. A matemática que tanto aprecia. Sente-se acarinhada e bem cuidada por todos. Quer ter manuais e livros para estudar mais.

Mesmo os familiares e as vizinhas que, a brincar, troçaram dela quando começou a ir às aulas hoje congratulam-se com os seus bons resultados. E a estudante está tão rendida à aprendizagem que tem insistido com uma das filhas, que interrompeu os estudos na 6ª classe, para que retorne à escola.

Maria já não faz parte dos 13, 5 por cento de analfabetos que Cabo Verde regista. E não põe limites ao seu projecto educativo:

“Vou estudar até onde Deus quiser. Se for para terminar o liceu, eu termino.”


Dia Mundial da Alfabetização, 8 de Setembro

A 26 de Outubro de 1966, na sua 14ª sessão da Conferência Geral, a UNESCO declarou 8 de Setembro como o Dia Internacional da Alfabetização com o fim de criar uma agenda de discussão sobre esta temática e principalmente impulsionar a erradicação do analfabetismo.

Um dos estudos mais recentes da ONU aponta que cerca de 780 milhões de adultos em todo o mundo não sabem ler, escrever ou contar, e cerca de 250 milhões de crianças são consideradas analfabetas funcionais, isto é, decodificam a palavra escrita, mas não conseguem compreender aquilo que lêem.

Em Cabo Verde, com a Independência, foi implementado um programa de alfabetização massiva da população e hoje – conforme os dados mais recentes do INE – a taxa de alfabetização é de 86.5 na faixa dos 15 ou mais anos. O que significa uma taxa de analfabetismo de 13, 5 por cento, com maior concentração na faixa dos 65 e mais anos. Dados considerados positivos e que ajudam aos bons níveis no Índice de Desenvolvimento Humano.

A introdução de um sistema de alfabetização digital é apontada pelo Serviço de Alfabetização e Educação de Adultos como um desafio a conquistar na luta para um dia alcançar uma taxa zero de analfabetismo.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,8 set 2018 11:51

Editado porAntónio Monteiro  em  8 set 2018 11:53

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