Acesso partilhado às vacinas é fundamental para vencer pandemia

PorExpresso das Ilhas, Plataforma,10 abr 2021 10:59

Controlar o vírus dentro de um país não controla nada
Controlar o vírus dentro de um país não controla nada

Se a vacinação continuar a duas velocidades, a pandemia nunca se vai resolver. Médicos de Cabo Verde, Portugal e Moçambique avisam da urgência em equilibrar o acesso às vacinas e garantir que chegam aos países mais pobres.

É um facto que a Covax não chegará para garantir que as zonas mais carentes do planeta têm acesso às vacinas de que precisam. O problema do desequilíbrio de recursos económicos que se reflecte na ausência de outros, como os de saúde, exige mais respostas além da iniciativa da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em finais do mês passado, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, criticava o armazenamento excessivo de vacinas contra a covid-19 pelos países desenvolvidos e voltava a apelar para uma partilha com o resto do mundo, a única forma de vencer a pandemia, dizia.

Albertino Damasceno, médico em Moçambique, afirma em declarações ao PLATAFORMA que os políticos precisam de aulas de epidemiologia para perceberem como estão errados. “Países ricos que compram três vezes mais vacinas do que têm necessidade estão a pensar que o problema se resume às suas fronteiras. Controlar o vírus dentro de um país não controla nada. Quanto mais infecções houver, maior é a probabilidade de surgirem estirpes mais perigosas, mais contagiosas, mais graves e que vão tornar as vacinas existentes pouco eficazes”, avisa. “Quando os políticos aprenderem estes conceitos básicos, provavelmente vão começar a apoiar mais os países que não têm, de facto, qualquer possibilidade económica de comprar as respectivas vacinas”, defende.

Ricardo Mexia, epidemiologista, reforça: “Se continuamos a ter episódios da doença, e sabendo que esta não conhece fronteiras, independentemente de haver países com baixa incidência e outros em que é bastante maior, isso interfere no sucesso do combate”.

O presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública portuguesa insiste que é muito importante encontrar soluções colectivas porque se trata de uma ameaça global. “Basta ver como teve origem num e hoje tem uma abrangência que é muito significativa”, vinca, referindo-se à China, onde o novo coronavírus apareceu em Whuhan, em 2019.

Já Danielson Veiga recorda o mote da Covax – “Com uma pandemia de movimento rápido, ninguém é seguro, a menos que todos estejam seguros” (“With a fast-moving pandemic, no one is safe, unless every one is safe”, em inglês).

O bastonário da Ordem dos Médicos de Cabo Verde realça que o programa foi criado para fornecer e garantir o acesso às vacinas da Covid-19 a toda a gente, mas que, de acordo com dados da Duke University, até ao momento, só conseguiu comprar cerca de mil milhões de doses em comparação com as 4,6 mil milhões adquiridas por nações de alta renda.

“Isto tudo traduz a ambiguidade e a falta de transparência perante os compromissos e decisões da parte dos líderes mundiais que muitas vezes não põem em prática o que foi projectado, sobretudo num momento sensível como este onde todos, sem excepção, pobres ou ricos, estão à espera de uma oportunidade para adquirir uma vacina e se prevenir contra a Covid-19”, lamenta.

Damasceno afirma não ter dúvidas de que há politização das vacinas. “Há vários processos para que as vacinas possam ser produzidas em laboratórios do terceiro mundo e isso não foi permitido até hoje, há também a necessidade ou poderia haver o apoio da União Europeia (UE), dos Estados Unidos (EUA) e de Inglaterra aos países do terceiro mundo que não está a haver. Portanto não tenho dúvidas de que o que está a ser determinante na distribuição das vacinas é um critério político e nacionalista”, frisa o médico, que integra a comissão técnico-científica que apoia o Governo e o Presidente da República moçambicanos.

Mexia, do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde em Portugal, salienta que contextos onde haja muita circulação do vírus são mais propícios a novas mutações. Até hoje, conhecem-se a britânica, sul-africana, a brasileira e uma outra detectada recentemente em cidadãos oriundos da Tanzânia, em Angola.

Enquanto a resposta não for uniformizada, é provável que surjam mais e mais perigosas, avisa Albertino Damasceno. “As novas variantes podem ser benignas, mas vão necessariamente surgir outras – no Brasil, em África e em qualquer sítio do mundo onde o processo não está controlado – que poderão ser mais graves e que podem não ser protegidas pelas vacinas inventadas”, alerta.

Danielson Veiga volta a recorrer aos números: “Os países mais ricos já adquiriram a maior quantidade de vacinas que irão ser ainda produzidas neste ano, enquanto os mais pobres não terão doses nem para as populações mais vulneráveis. Estima-se também que cerca de 90 por cento das pessoas em quase 70 países de baixa renda terão poucas hipóteses de serem vacinadas em 2021”, indica.

Ainda assim, o médico cabo-verdiano mantém-se optimista. Realça que é um prognóstico desfavorável, mas que conta com os parceiros, organizações de saúde internacionais, continentais e regionais para que se reverta a tendência. Como? “Confiando na boa vontade e no papel que os países desenvolvidos têm neste mundo globalizado, onde ainda assolam problemas de guerra e de fome, a meio de uma pandemia que de certeza já deixou marcas à nossa humanidade”, responde.

Veiga recorda que a produção actualizada e a distribuição das vacinas a todos os países do mundo assim como a aplicação racional iria garantir imunidade contra a COVID-19, mas não só. “A saúde e a sobrevivência, o emprego ou reemprego. Facilitaria o retorno económico, a continuidade do Plano das Nações Unidas para o desenvolvimento de países pobres e em vias de desenvolvimento, logo reduziria a imigração e a prosperidade de todos”, assinala.

Damasceno faz eco de uma previsão que ganha força e sublinha ser provável que, assim como acontecia com a influenza, a Covid-19 exija uma vacina anual, eventualmente adaptada às estirpes mais presentes em cada país. Para que tal aconteça, realça, é necessário boa vontade e esforço ao nível universal.

“E não acredito que isso vá acontecer. Basta ver o que sucedeu com o HIV, proliferou em África quando nos EUA e na Europa já havia meios para o controlar. As pessoas pensam primeiro no umbigo delas, e depois nos outros”, lamenta.

Insiste no pessimismo, e argumenta que a vacina é apenas uma das facetas do fosso entre ricos e pobres. “Os países ricos são ricos porque vivem à custa dos pobres e os pobres são pobres porque são fonte de matéria-prima cujos preços são determinados pelos países ricos. Enquanto esta ordem económico-social se mantiver, a situação não vai mudar. A vacina não é mais do que uma manifestação dessa ordem mundial”, aponta.

Em Moçambique, foram vacinados pouco mais de 100 mil habitantes numa população de 29 milhões. Por agora, estão a ser administradas as 200 mil vacinas da Sinopharm recebidas da China, mais as 100 mil que vieram da Índia, da marca AstraZeneca, e outras 384 mil doadas no âmbito da iniciativa Covax. Até Maio, são esperadas mais 1,7 milhões de doses.

Damasceno explica que os vacinados foram fundamentalmente os profissionais de saúde – cuja adesão rondou os 90 por cento – e os diabéticos, grupo que representa o maior risco no país lusófono. A expectativa é que mais vacinas – por meio da Covax e da Índia – cheguem no próximo mês, e que se inicie a inoculação a quem tenha mais de 50 anos e viva nas cidades.

Portugal recebeu cerca de dois milhões de vacinas, e espera receber mais nove milhões no segundo trimestre. A estimativa é que a primeira fase da vacinação seja concluída no domingo (11 de Abril).

Em Cabo Verde, há 24 mil doses da AstraZeneca e 5.859 doses da Pfizer, adquiridas ao abrigo da Covax, para uma população de pouco mais de meio milhão de habitantes.

A previsão é de que, “num futuro próximo”, este país africano receba mais 80 mil doses. “Relativamente às perspectivas consideramos que são boas porque no Plano Nacional de Vacinação está previsto a cobertura de aproximadamente 70 por cento da população [em 2021]”, diz Danielson Veiga.

“Não obstante os impactos que as vacinas possam trazer a Cabo Verde, o Ministério da Saúde deixou claro que a população não pode e nem deve baixar a guarda, mantendo as medidas de protecção individual”, ressalva o médico.

Ricardo Mexia antecipa novos problemas além do da desigualdade no acesso às vacinas, agravados pelas notícias sobre a segurança e que levou à suspensão de algumas marcas em vários países.

O médico português esclarece que na UE há um mecanismo de regulação no acesso das vacinas e medicamentos ao mercado assente na segurança e eficácia, e sublinha ter plena confiança nas alternativas disponíveis.

“Não é menos verdade que uma das partes importantes é a fase 4, ou seja, quando a solução já está implementada e acaba por ter muito maior abrangência do que na fase de ensaio. É normal que se identifiquem questões que não estavam previamente vistas. A análise de risco é feita e é dinâmica. Até ver, as soluções que estão no mercado são aquelas que nos garantem segurança e eficácia, e tenho absoluta confiança”, reitera.

Admite que a suspensão mina a credibilidade, fundamental na adesão das populações e antecipa que – quando procura e oferta se aproximarem – se vai notar maior hesitação. Aí, vinca, terá de se reforçar a campanha de informação. “Mas, é muito importante que as pessoas tenham noção de que as vacinas são seguras, mas não são inócuas, há um risco associado. Em Portugal, todos os que nasceram até 2017 foram vacinados com a BCG [vacina que se destina a imunizar contra a tuberculose e é administrada geralmente nos recém-nascidos] e sabe-se que deixa uma cicatriz. Não é inócua, mas as vantagens excedem largamente o sacrifício. A avaliação das vantagens das vacinas está sempre a ser feita, e no caso das destinadas à Covid não pode ser diferente”, sublinha.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Plataforma,10 abr 2021 10:59

Editado porJorge Montezinho  em  13 jan 2022 23:20

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