Num momento em que o mundo desespera por pontes, e só vê erguerem-se muros, o primeiro mês de pontificado de Leão XIV fica marcado por insistentes apelos a “uma paz verdadeira”, de proximidade e empatia.
Uma e outra vez, o novo líder da Igreja Católica destacou-se por gestos simbólicos e discursos que evidenciaram a preocupação em deixar claro que o Evangelho está no centro da acção da Igreja. É no Evangelho que Leão XIV tem procurado argumentos para contrariar algumas das grandes rupturas do nosso tempo, das guerras às desigualdades, da exclusão à perda de referências éticas.
Nas últimas semanas, as primeiras de uma liderança que se estima longa – Robert Prevost tem 69 anos – ganhou corpo a ideia de uma Igreja de esperança, acolhimento e reconciliação.
D. Ildo Fortes, Bispo do Mindelo, lembra que o programa da Igreja “já existe”.
“Se a Igreja não anunciar o Evangelho, não está a cumprir a sua missão (…) Mas nos tempos que correm, onde há tanto sofrimento, tanta miséria, tanta injustiça, se a Igreja não vier para o terreno e não mostrar ‘eu estou do lado das pessoas, eu quero ajudar as pessoas’, ela não é credível”, afirma.
Leão XIV, nome escolhido pelo cardeal norte-americano, carrega consigo parte importante da tradição Católica dos últimos cem anos. Leão XIII foi o autor da encíclica Rerum Novarum, de 1891, o primeiro documento oficial a tratar de problemas sociais e económicos, fundador da Doutrina Social da Igreja.
“A um pobre, eu vou-lhe falar do Evangelho, sem lhe matar a fome?”, questiona Ildo Fortes.
Não são esperadas rupturas no rumo da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) – não estão na sua essência. No discurso e na acção, notam-se sinais de continuidade. As primeiras nomeações para cargos relevantes no Vaticano sugerem isso mesmo. Três exemplos: a confirmação da irmã Tiziana Merletti como secretária do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada; a decisão de confiar o Pontifício Instituto João Paulo II ao cardeal Baldassarre Reina; e Renzo Pegoraro na liderança da Pontifícia Academia para a Vida.
Aura Miguel, veterana vaticanista e jornalista da Rádio Renascença, que acompanhou da primeira fila os pontificados de João Paulo II, Bento XVI e Francisco, antecipa um papado marcado, precisamente, pelos sinais que foram dados no primeiro mês.
“Não é uma paz qualquer, não é uma paz meramente baseada na negociação, é mais profunda. É a paz de Cristo, desarmada e desarmante, humilde e perseverante (…). Creio que este é o grande foco do Papa Leão XIV e por isso é que ele escolheu o nome Leão XIV”, nota.
Grandes e pequenas disputas
Uma Igreja mediadora e conciliadora, não só de grandes conflitos, mas também perante pequenas disputas. É assim que, por seu lado, o director da Escola Universitária Católica de Cabo Verde, padre José Eduardo, posiciona a ICAR neste capítulo da sua História, que agora começa.
“Realmente, o mundo está à beira de uma guerra mundial (…) mas também diria que, mesmo internamente, encontramos muita gente com problemas de relacionamento com os outros, com os vizinhos, com os familiares. Creio que o papel da Igreja é ser mediadora de conflitos”, prioriza.
A Igreja Católica enfrenta, ela própria, desafios internos e externos, incluindo o da manutenção da sua relevância. No dia seguinte à eleição, perante o Colégio Cardinalício, na homilia da missa pro Ecclesia, Leão XIV admitiu não faltarem “contextos em que a fé cristã é considerada uma coisa absurda, para pessoas fracas e pouco inteligentes”.
Para o padre José Eduardo, é missão da Igreja preparar o ser humano para o mundo actual.
“Fazer com que, de facto, a Igreja exerça um papel de referência para as novas gerações, que estão mais voltadas para as novas tecnologias e nem sempre têm disponibilidade para fazerem experiência espiritual. O papel da Igreja é moldar o Homem todo, é preparar o Homem numa visão holística”, aponta.
Abusos sexuais
Perante um dos maiores escândalos da sua história, o mundo católico vive há anos ensombrado por revelações de casos de abuso sexual de menores.
Em 2021, a Igreja actualizou o Livro VI do Código de Direito Canónico (equivalente ao Código Penal), passando a incluir uma menção explícita ao abuso sexual por padres contra menores e pessoas com deficiência. Francisco pediu regularmente perdão e reuniu com sobreviventes. Mas este é um dossier longe de estar fechado.
Aura Miguel está convencida de que o assunto será mantido na agenda do novo Papa.
“O Papa ainda não falou disso concretamente, mas certamente que, como é um homem do terreno e muito realista, reforçará este caminho que começou já no fim do pontificado João Paulo II, mas foi sobretudo consolidado por Bento XVI e depois tornado mais abrangente, para o mundo inteiro, com regras ainda mais apertadas, por Francisco. E sendo ele canonista [especialista em Direito Canónico], não tenho dúvidas de que Leão XIV vai prosseguir, se não reforçar, todas as medidas, também do ponto de vista jurídico”, confia a vaticanista.
O tempo ajudará a perceber que Papa será Leão XIV. Para já, aparenta caminhar algures entre o gesto largo e riso fácil de Bergoglio e a timidez de Ratzinger. Nas suas primeiras semanas na ‘Cadeira de Pedro’, em repetidas ocasiões, Prevost evocou o Papa argentino, gracejou e quis estar. Porém, não deixou de sinalizar a vontade de trilhar um caminho próprio, como tão bem sinaliza o facto de ter reassumido símbolos do poder papal abandonados por Francisco, dos quais a mozeta sobre os ombros será o melhor exemplo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1228 de 11 de Junho de 2025.