Jonuel Gonçalves: “Nos países que ficarem para trás, o tsunami económico é quase inevitável”

PorJorge Montezinho,25 jun 2020 7:48

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Para o economista e professor universitário Jonuel Gonçalves, a primeira conclusão a tirar é a total despreparação do planeta para catástrofes deste género. Por outro lado, o especialista em relações internacionais, realça o uso político que foi feito da pandemia, entre grandes potências, que a transformaram num factor geopolítico.

Ninguém estava preparado para uma crise desta dimensão?

A primeira evidencia aponta total despreparação do planeta para catástrofes deste tipo. A ciência médica e os serviços medico-hospitalares dos países mais avançados não correspondem às ideias que tinhamos deles e continuamos sem explicação para a extraordinária resistência africana após mais de um trimestre. A negligência com a pesquisa cientifica fica bem patente nesta pandemia e talvez venha a ficar mais com a urgência de resposta à descapitalização das pequenas médias e micro empresas – maior parte do tecido empresarial de todas as economias ou mesmo a sua totalidade em muitas – e ao desemprego agravado. Por outro lado, a pandemia foi usada politicamente entre grandes potências que a transformaram num fator geopolítico. Isto induziu muita gente, habitualmente vulnerável à propaganda ideológica, a desejar mortes massivas em países com governos adversos às suas opções. O desprezo pela vida humana que tal atitude representa não foi, felizmente, repetido nos grandes centros de decisão onde os lockdowns e quarentenas significam opção por proteger a vida humana sacrificando lucros empresariais ou de serviços. E as indicações disponíveis até aqui permitem acreditar num movimento de capitais e métodos de ataque á crise como nunca visto na história económica da humanidade.

Projecções para Cabo Verde apontam para uma dívida pública que pode chegar aos 150%, este valor retira espaço ao Estado para ser um dos actores da retoma económica?

O que acabo de dizer sobre métodos de ataque á crise pode trazer vantagens para Cabo Verde, na medida em que o endividamento e sua posterior superação são vistos de forma menos dogmática e mais operativa nos grandes mercados de capitais ou organismos financeiros internacionais. A profundidade desta crise implica endividamento geral, inclusive nos países mais fortes, daí o desenvolvimento nesses países de abordagem mais flexível perante os contextos e as causas de dívida. Ao mesmo tempo são os Estados que aparecem como eixo principal de Garantias e, se souberam negociar, terão mais meios de estímulo e mais tempo para reequilibrar as contas.

Tem sido opinião de políticos e especialistas que baixar rendimentos não é resposta para as crises, que respostas alternativas podemos antecipar?

Baixar rendimentos e impor austeridade significou sempre aumentar a pobreza que é, simultaneamente, uma injustiça e um componente de contração do mercado. Uma crise atacada por esta via é uma crise que muda de natureza, passando a ser dupla. Desde o século XIX existe esta constatação, enfatizada após a segunda guerra mundial. Mesmo assim, surgem por vezes ciclos curtos com prevalência dos formuladores de políticas favoráveis às grandes concentrações de riqueza, que pretendem desconectar as economias dos seus efeitos sociais. Acabam por cair mas fazem perder anos de vida.

Há mais incertezas nas economias emergentes?

Há as mesmas de antes da pandemia, inclusive se são de facto emergentes. Aqui na nossa grande região, que é o Atlântico Sul, não há nenhuma economia emergente. Na primeira década do milênio ocorreram, nas duas margens, ciclos de crescimento seguidos de fracos desempenhos ou mesmo recessões, como já acontecera várias vezes antes. Só algumas economias asiáticas podem entrar nessa categoria de emergentes.

As economias terão evoluções diferentes dependendo da preparação do seu sistema de saúde, da especialização sectorial e da capacidade fiscal para aguentar os impactos. Acha que a recuperação vai aumentar o fosso entre os países mais avançados e as economias emergentes?

Essa projeção está ligada a uma variável decisiva: como vão se comportar os poderes públicos nos países que têm de sair do atraso. Se tiverem a legitimidade indispensável ao diálogo social e visão gestora para saída de crise, o fosso diminui. Ou seja, é possível diversificar as economias classificadas como emergentes – quer o sejam ou não - gerando novos empregos em volume apreciável. Este é o elemento principal na avaliação sobre a conjuntura e o rumo. Alguns governos desta faixa de países na qual estamos inseridos têm inteligência e sensibilidade para fazê-lo, mas a maior parte não tem. Portanto, no capítulo das desigualdades entre países e grupos sociais, as coisas vão continuar muito parecidas com as atuais.

Estamos no momento certo para criar um crescimento mais ético e inclusivo? Ou tem uma visão menos optimista do pós-crise?

As questões da ética e das inclusões têm um link direto com aquilo que eu disse sobre legitimidade e visão gestora. Nesta, incluo a capacidade de entender a evolução tecnológica e empreenderem adequação dos sistemas de ensino – ou a criação de verdadeiros sistemas de ensino - a uma realidade em andamento desde antes da pandemia, quer dizer, os primeiros passos de novo patamar económico mundial.

Se é certo que não podemos prever o futuro, também é verdadeiro que o podemos criar. Como analisa este 'confronto' entre a economia de nova geração vs. Políticos que ainda não conseguiram perceber os novos tempos?

Duvido que a maior parte dos políticos, em todos os continentes, saiba exatamente que patamar é este. Grande parte pensa que digital e novas tecnologias é usar um lap top ou enviar imagens pelo telemóvel. Fale-lhes no crescimento da produção em 3D ou aportes inovadores no sempre estratégico setor agro-industrial e vai constatar como ficam confusos.

E quando terminarem as moratórias e os apoios sociais, é possível que venhamos a ter o 'tsunami' social e económico já antecipado por vários economistas? Ou seja, o pior pode estar ainda para vir?

Nos países que ficarem para trás esse tsunami é quase inevitável. Não só pelo agravamento das condições de vida, ou simplesmente estagnação das mesmas, mas também pela comparação que as sociedades farão com quem recupere e cresça. A minha dúvida é se essa provável agitação será episódica, como foram as revoltas árabes de 2011 e a repressão depois volta a impor a ordem da pobreza, ou se da próxima vez existirá maior e mais durável capacidade de pressão.

Diminuição de remessas e uma extensa informalidade laboral são ameaças à capacidade de recuperação sanitária, social e económica?

Sem dúvida. Por isso buscar alternativas a eventuais baixas nas remessas e criar oportunidades que evitem a precariedade é mesmo um pré-requisto. As possibilidades serão tanto maiores quanto mais mundializadas estiveram as enormes injeções de capital previstas.

É o tempo de políticas extraordinárias?

Se política extraordinária significa provisória, não. Se extraordinária quer dizer novos parâmetros de normalidade, sim. É um debate que vem de alguns anos, desde as crises de 2008 e 2010, quando suscitaram até documentos e livros com títulos de “fim da normalidade”, “criação do normal”, “normalidades mutantes”, etc. Seria extraordinário se fosse aproveitado o presente clima mundial para apagar dívidas transformando-as em investimentos e se houvesse reforço da investigação científica em termos universais coordenados.

Hoje é ainda mais urgente o investimento público em tecnologias digitais e verdes que promovam o crescimento sustentável a longo prazo?

Para países como os nossos, são os motores de arranque e nenhum conquistará sozinho posições em ambos. Novas critérios sobre interatividade e blocos de economias são imperativos se não quisermos perder mais tempo. No fundo coloca-se um problema de mentalidade, capaz de entender que estamos todos no mesmo mundo e que essa conversa das identidades é impostura, hoje muito usada pelos neo-autoritários. A nível económico o seu efeito de fragmentação é devastador.  

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Autoria:Jorge Montezinho,25 jun 2020 7:48

Editado porSara Almeida  em  8 abr 2021 23:21

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