A identidade cabo-verdiana construiu-se na mestiçagem, não na pureza.
A identidade cabo-verdiana é, por natureza, crioula. Forjou-se ao longo de séculos de convivência entre culturas africanas e europeias, num arquipélago atlântico onde a mestiçagem foi mais do que biológica: foi cultural, linguística e simbólica. Reduzir essa complexidade a uma origem unicamente africana, como se sugere no vídeo recentemente divulgado no YouTube (Cabo Verde é África, ponto final – https://www.youtube.com/watch?v=8OG59sXmVfc), é ignorar a realidade histórica do nosso povo.
Em Cabo Verde – Ilhas Crioulas: Da Cidade-Porto ao Porto-Cidade, demonstro como a nossa identidade emergiu da fusão entre o branco e o negro, o europeu e o africano. A língua crioula, a música, a culinária, a religiosidade e os modos de vida são expressões dessa síntese. Como cantou Manel d’Novas, “nôs raça ê preto má brónque burnid na vent”.
A crioulidade não nega África, mas também não exclui outras matrizes. Cabo Verde sempre se posicionou no Atlântico, entre continentes. A aproximação a África no pós-independência teve um valor simbólico, mas não pode apagar a pluralidade das nossas origens.
Assumir a crioulidade é reconhecer a singularidade cabo-verdiana. Não somos um prolongamento de África nem um reflexo da Europa. Somos uma criação original, nascida do encontro – e da reinvenção – de mundos distintos.
– Manuel Brito-Semedo
Antropólogo, escritor e professor universitário
Autor de Cabo Verde – Ilhas Crioulas (2.ª ed., Rosa de Porcelana Editora, 2024)