Na terra onde cada anúncio é um tambor, ecoou mais um: “Cabo Verde terá a primeira Conservatória de Música em África!” – proclamou, em grande estilo, o Primeiro-Ministro, à margem dos Cabo Verde Music Awards, com direito a holofotes, contratos e protocolo com a International Finance Corporation (IFC). Palmas, claro. Tambores, clarins e, quem sabe, até saxofones!
Mas deixem-me puxar da batuta e perguntar: e a partitura? E o solfejo? Onde estão as salas de ensaio, os professores de harmonia, os currículos de formação artística? Que conservatório é este, lançado com um contrato plurianual com os CVMA (que nem conservatório são) como base fundacional? Desde quando se compõe uma sinfonia a partir do cartaz?
Como de costume, estamos perante mais um daqueles “anúncios bombásticos” a que já nos vamos habituando – e de que já vamos ficando cansados. Anúncios que fazem vibrar microfones, mas desafinam no compasso da realidade. O país onde músicos aprendem solfejo por WhatsApp, onde escolas de arte funcionam sem partitura e onde a formação musical depende do voluntarismo de artistas independentes, anuncia uma conservatória continental. É de levantar a sobrancelha, pelo menos.
Há 50 anos independentes, continuamos sem uma Escola Pública de Música de referência. E nem sequer funcionam, como devia ser, as Bandas Municipais – que, em si mesmas, são verdadeiras escolas de música, com capacidade para formar e renovar os seus quadros, envolvendo a sociedade no processo educativo e cultural. Essa ausência diz mais sobre a prioridade dada à música enquanto política pública do que qualquer promessa televisiva.
Não se duvida da importância de investir na música – rainha da nossa identidade. Mas uma coisa é projectar, outra é concretizar. Já ouvimos falar de conservatórios, escolas superiores de artes, festivais internacionais, orquestra nacional, roteiros culturais e até capitais criativas. Mas, no fim do espectáculo, os instrumentos voltam à estante. Silêncio.
Fico com a impressão de que confundimos “show” com sistema. De que a governação cultural se vai fazendo aos soluços, entre eventos mediáticos e brochuras promocionais. E o problema não está nos anúncios, mas na ausência de uma política pública de educação artística séria, consistente e acessível.
Lembram-se da Academia de Artes? Da promessa de São Vicente como capital cultural do país? De tudo isso restam comunicados e fotografias. Nenhum conservatório se ergue apenas com entusiasmo e marketing institucional. É preciso gente qualificada, infraestruturas decentes, tempo e continuidade – ou seja, aquilo que raramente sobrevive entre duas eleições.
Por isso, com todo o respeito, permitam-me um bemol: em vez de nos deslumbrarmos com a primeira conservatória de África, talvez fosse mais honesto começarmos por garantir a primeira escola pública de música com condições reais em Cabo Verde. Ou, para usar termos técnicos, afinar o instrumento antes de dar o concerto.
Afinal, música sem prática é só barulho. E promessas sem chão não educam, nem transformam. Servem apenas para a propaganda – e essa, meus caros, não canta. Grita.
Quadro Comparativo de Conservatórios de Música em África
País |
Nome da Instituição Principal |
Tipo de Ensino |
Equivalente a Conservatório? |
Botswana |
Botswana College of Music (Gaborone) |
Música Tradicional, Coral e Moderna |
Sim |
Costa do Marfim |
INSAAC – Departamento de Música |
Música Tradicional, Africana e Clássica |
Sim (embora não use o nome) |
Egipto |
Conservatoire de Musique du Caire |
Música Clássica, Árabe e Contemporânea |
Sim |
Etiópia |
Yared School of Music (Addis Ababa University) |
Música Etíope e Clássica |
Sim |
Gana |
University of Ghana – School of Performing Arts |
Música Tradicional e Contemporânea |
Sim (modelo universitário) |
Marrocos |
Conservatoire National de Musique |
Música Clássica e Árabe-Andaluza |
Sim |
Moçambique |
Escola Nacional de Música (Maputo) |
Música Clássica e Tradicional Moçambicana |
Sim |
Namíbia |
College of the Arts (Windhoek) – Music Department |
Música Popular, Clássica e Produção |
Sim |
Nigéria |
University of Lagos – Department of Music |
Música Clássica e Popular |
Sim (modelo universitário) |
Quénia |
Kenya Conservatoire of Music (Nairobi) |
Música Clássica, Africana e Educação Musical |
Sim |
Senegal |
École Nationale des Arts (ENA) |
Música Tradicional e Moderna |
Sim (embora não use o nome) |
Tanzânia |
TaSUBa – Bagamoyo Arts and Cultural Institute |
Música Tradicional e Artes Performativas |
Sim (embora mais centrado nas artes) |
Tunísia |
Institut Supérieur de Musique de Tunis |
Música Árabe e Ocidental |
Sim |
Zimbabué |
Zimbabwe College of Music (Harare) |
Música Clássica, Jazz e Música Africana |
Sim |
África do Sul |
South African College of Music (UCT) |
Música Clássica, Jazz, Africana e Contemporânea |
Sim (modelo universitário) |
Nota do autor: Esta crónica faz parte da série Alfinetadas, onde se afinam ideias, se questionam anúncios e se convoca o bom senso – mesmo quando há confettis no ar.
– Manuel Brito-Semedo