Blogs / Esquina do Tempo

Cabo Verde em Fá de Conta

PorBrito-Semedo19 jun 2025 0:58

 

CVMA.jpg

 

 

Na terra onde cada anúncio é um tambor, ecoou mais um: Cabo Verde terá a primeira Conservatória de Música em África! – proclamou, em grande estilo, o Primeiro-Ministro, à margem dos Cabo Verde Music Awards, com direito a holofotes, contratos e protocolo com a International Finance Corporation (IFC). Palmas, claro. Tambores, clarins e, quem sabe, até saxofones!

 

Mas deixem-me puxar da batuta e perguntar: e a partitura? E o solfejo? Onde estão as salas de ensaio, os professores de harmonia, os currículos de formação artística? Que conservatório é este, lançado com um contrato plurianual com os CVMA (que nem conservatório são) como base fundacional? Desde quando se compõe uma sinfonia a partir do cartaz?

 

Como de costume, estamos perante mais um daqueles “anúncios bombásticos” a que já nos vamos habituando – e de que já vamos ficando cansados. Anúncios que fazem vibrar microfones, mas desafinam no compasso da realidade. O país onde músicos aprendem solfejo por WhatsApp, onde escolas de arte funcionam sem partitura e onde a formação musical depende do voluntarismo de artistas independentes, anuncia uma conservatória continental. É de levantar a sobrancelha, pelo menos.

 

Há 50 anos independentes, continuamos sem uma Escola Pública de Música de referência. E nem sequer funcionam, como devia ser, as Bandas Municipais – que, em si mesmas, são verdadeiras escolas de música, com capacidade para formar e renovar os seus quadros, envolvendo a sociedade no processo educativo e cultural. Essa ausência diz mais sobre a prioridade dada à música enquanto política pública do que qualquer promessa televisiva. 

 

Não se duvida da importância de investir na música – rainha da nossa identidade. Mas uma coisa é projectar, outra é concretizar. Já ouvimos falar de conservatórios, escolas superiores de artes, festivais internacionais, orquestra nacional, roteiros culturais e até capitais criativas. Mas, no fim do espectáculo, os instrumentos voltam à estante. Silêncio.

 

Fico com a impressão de que confundimos “show” com sistema. De que a governação cultural se vai fazendo aos soluços, entre eventos mediáticos e brochuras promocionais. E o problema não está nos anúncios, mas na ausência de uma política pública de educação artística séria, consistente e acessível.

 

Lembram-se da Academia de Artes? Da promessa de São Vicente como capital cultural do país? De tudo isso restam comunicados e fotografias. Nenhum conservatório se ergue apenas com entusiasmo e marketing institucional. É preciso gente qualificada, infraestruturas decentes, tempo e continuidade – ou seja, aquilo que raramente sobrevive entre duas eleições.

 

Por isso, com todo o respeito, permitam-me um bemol: em vez de nos deslumbrarmos com a primeira conservatória de África, talvez fosse mais honesto começarmos por garantir a primeira escola pública de música com condições reais em Cabo Verde. Ou, para usar termos técnicos, afinar o instrumento antes de dar o concerto.

 

Afinal, música sem prática é só barulho. E promessas sem chão não educam, nem transformam. Servem apenas para a propaganda – e essa, meus caros, não canta. Grita.

 

Quadro Comparativo de Conservatórios de Música em África

 

País

Nome da Instituição Principal

Tipo de Ensino

Equivalente a Conservatório?

Botswana

Botswana College of Music (Gaborone)

Música Tradicional, Coral e Moderna

Sim

Costa do Marfim

INSAAC – Departamento de Música

Música Tradicional, Africana e Clássica

Sim (embora não use o nome)

Egipto

Conservatoire de Musique du Caire

Música Clássica, Árabe e Contemporânea

Sim

Etiópia

Yared School of Music (Addis Ababa University)

Música Etíope e Clássica

Sim

Gana

University of Ghana – School of Performing Arts

Música Tradicional e Contemporânea

Sim (modelo universitário)

Marrocos

Conservatoire National de Musique

Música Clássica e Árabe-Andaluza

Sim

Moçambique

Escola Nacional de Música (Maputo)

Música Clássica e Tradicional Moçambicana

Sim

Namíbia

College of the Arts (Windhoek) – Music Department

Música Popular, Clássica e Produção

Sim

Nigéria

University of Lagos – Department of Music

Música Clássica e Popular

Sim (modelo universitário)

Quénia

Kenya Conservatoire of Music (Nairobi)

Música Clássica, Africana e Educação Musical

Sim

Senegal

École Nationale des Arts (ENA)

Música Tradicional e Moderna

Sim (embora não use o nome)

Tanzânia

TaSUBa – Bagamoyo Arts and Cultural Institute

Música Tradicional e Artes Performativas

Sim (embora mais centrado nas artes)

Tunísia

Institut Supérieur de Musique de Tunis

Música Árabe e Ocidental

Sim

Zimbabué

Zimbabwe College of Music (Harare)

Música Clássica, Jazz e Música Africana

Sim

África do Sul

South African College of Music (UCT)

Música Clássica, Jazz, Africana e Contemporânea

Sim (modelo universitário)

 

 

Cabo Verde em Fá de Conta.png

 

 

Nota do autor: Esta crónica faz parte da série Alfinetadas, onde se afinam ideias, se questionam anúncios e se convoca o bom senso – mesmo quando há confettis no ar.

 

 

Manuel Brito-Semedo

 

 

PorBrito-Semedo19 jun 2025 0:58