Blogs / Esquina do Tempo

O Plano que lê o papel, mas não o país

PorBrito-Semedo7 nov 2025 23:32

 

logo_azul-03-03-03.png

 

Entre feiras e slogans, o Plano Nacional de Leitura continua a folhear relatórios e a ignorar autores. Fala de livros, mas não escuta quem os escreve.

 

Criado em Dezembro de 2017 pelo Ministério da Educação e pelo Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, com o patrocínio da Presidência da República e apoio da Cooperação Portuguesa, o Plano Nacional de Leitura de Cabo Verde nasceu cheio de promessas: democratizar o acesso ao livro, formar leitores e valorizar a cultura. Oito anos depois, o Plano mantém-se imaculado – no papel.

 

A mais recente Grande Feira do Livro, em São Vicente, encheu a praça de tendas, discursos e fotografias oficiais. Durante cinco dias, o país pareceu ler – mas só pareceu. A festa foi bonita, o entusiasmo sincero, a retórica afinada. Mas quando os microfones se desligaram, voltaram as prateleiras vazias, as bibliotecas fechadas e o silêncio de quem nunca foi lido. Em Cabo Verde, lê-se com pompa – mas raramente com política.

 

O próprio Plano admite que não tem lista de escritores nem de obras recomendadas, remetendo para um levantamento antigo, de 2016, que identificou cem títulos sem nomear autores. E, entre todas as páginas, apenas um nome é citado: José Luís Tavares, de passagem por um prémio no Brasil. O resto é silêncio – e o silêncio, aqui, é institucional.

 

O Plano que deveria celebrar a leitura cabo-verdiana esqueceu os escritores vivos. Ignora os poetas que reinventam a língua, os romancistas que pensam o arquipélago, os cronistas que observam o quotidiano e os ensaístas que interrogam o país. Fala de identidade cultural, mas esquece quem a escreve. É uma política de leitura sem literatura – um corpo sem alma, um retrato sem rosto.

 

O país celebra feiras, mas pratica a iliteracia institucional. Exibe-se cultura como cenário, enquanto a verdadeira leitura – a que forma consciência e cidadania – é relegada ao esquecimento. Multiplicam-se campanhas e slogans – Ler é crescer! Ler é sonhar! – belas frases para uma política que lê relatórios, mas não realidades. Inspirado no modelo português, o Plano copiou sem recriar e esqueceu o que faz da leitura cabo-verdiana uma arte viva: a oralidade, a mestiçagem e o diálogo entre as ilhas e o mundo. Ambicionava ser espelho da cultura nacional e acabou reflexo burocrático de outra.

 

Talvez um dia o Plano desça à terra, visite uma escola e abra um livro cabo-verdiano. Até lá, continuará a ser o que é: um Plano que lê o papel, mas não o país.

 

Porque o verdadeiro analfabetismo de um Estado não é o de quem não sabe ler – é o de quem transforma a leitura em festa e escolhe continuar na iliteracia institucional.

 

 

N.A. – Esta crónica faz parte da série Alfinetadas, onde se afinam ideias, se questionam anúncios e se convoca o bom senso, mesmo quando há confettis no ar.

 

 

Manuel Brito-Semedo

 

PorBrito-Semedo7 nov 2025 23:32