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Manuais que Formam Olhares – Leitura crítica dos manuais de Português

PorBrito-Semedo16 nov 2025 2:45

 

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Os manuais escolares moldam a forma como os jovens olham para si, para o país e para o mundo. Uma leitura crítica dos manuais de Português do 9.º, 10.º e 11.º ano em Cabo Verde revela avanços, omissões e oportunidades para um ensino mais plural, mais consciente e mais atento à nossa realidade cultural.

 

Portas de Entrada

 

Os manuais do 9.º ano continuam a ser a primeira grande porta de entrada no universo literário cabo-verdiano. Incluem autores como Jorge Barbosa, Germano Almeida e Corsino Fortes, mas a presença é breve, pontual e pouco contextualizada. Apesar disso, o manual abre também espaço às vozes femininas, ainda que timidamente, com referências a escritoras como Vera Duarte, Dina Salústio ou Fátima Bettencourt – presenças importantes, mas tratadas de forma demasiado rápida para ganharem corpo e significado.

 

A literatura surge muitas vezes diluída entre exercícios de compreensão e blocos gramaticais, não ganhando o espaço narrativo necessário para aproximar os alunos das obras, dos contextos e das sensibilidades que moldaram a escrita cabo-verdiana.

 

O resultado é uma iniciação tímida: reconhecem-se nomes, mas pouco se compreende do seu papel na história literária do país. A ausência de enquadramento impede que os alunos percebam, por exemplo, o pioneirismo de Dina Salústio na ficção contemporânea, a força poética de Vera Duarte ou o contributo sensível de Fátima Bettencourt para uma escrita de interioridades.

 

Este primeiro contacto poderia ser mais forte, mais vivo, mais formativo.

 

Identidades em Construção

 

O manual do 10.º ano avança de forma expressiva ao introduzir a questão da identidade cabo-verdiana. O capítulo “Cabo Verde e a sua identidade africana” abre espaço para reflexões sobre pertença, história e memória – temas essenciais num país arquipelágico, mestiço e atlântico.

 

Contudo, a abordagem permanece limitada. Discute-se a relação com África, mas não se explora devidamente o contributo da literatura – de autores e autoras – para o debate identitário. Falta mostrar que a identidade cabo-verdiana é construída também pelas vozes que escreveram a nossa insularidade, a nossa crioulidade e a nossa diáspora: de Baltasar Lopes a Vera Duarte, de Corsino Fortes a Dina Salústio.

 

A identidade africana surge, mas a identidade crioula – vivida, quotidiana, plural – permanece subentendida. Também aqui, a escola poderia convocar mais obras nacionais, mais olhares, mais diversidade autoral, esclarecendo que a identidade literária cabo-verdiana não é apenas masculina nem homogénea.

 

Diversidade que Abre Caminhos

 

Surpreendentemente, é no 11.º ano que surge a transformação mais significativa. “Da diversidade à inclusão” projecta Cabo Verde no mundo e aborda a pluralidade como valor social.

 

O aspecto mais inovador é a presença de referências à cultura cabo-verdiana contemporânea – incluindo a obra Ilhas Crioulas – que ajudam a situar o debate na realidade presente do país. A inclusão da capa e do nome do autor sinaliza abertura curricular a novas leituras e a novos contributos do pensamento cabo-verdiano.

 

Ainda assim, a diversidade é apresentada sobretudo de forma teórica. O manual poderia aprofundar a diversidade literária interna ao país, incluindo a produção das escritoras cabo-verdianas que, desde os anos 1990, têm alargado o horizonte temático e sensível da literatura nacional. Dina Salústio e Vera Duarte, por exemplo, introduziram noções de género, afectividade, violência simbólica e memória feminina – todas elas dimensões essenciais para pensar a inclusão.

 

Deste modo, o manual abre portas, mas ainda não atravessa a sala: reconhece diferenças, mas não mergulha na profundidade com que a literatura cabo-verdiana – masculina e feminina – tem reflectido essas mesmas diferenças.

 

Em Síntese

 

Os manuais de Português do ensino secundário oferecem pistas, caminhos e oportunidades. Há progressos visíveis: reconhecimento identitário no 10.º ano, abertura à diversidade no 11.º, presença de obras contemporâneas e inclusão (ainda que tímida) de escritoras.

 

Mas persistem lacunas: falta contexto, falta continuidade, falta densidade. A literatura cabo-verdiana é rica, plural e profunda – mas nos manuais aparece fragmentada, muitas vezes superficial, quase sempre insuficiente.

 

A escola precisa de manuais que despertem curiosidade e pensamento crítico, abrindo espaço para perguntas, descobertas e sentidos novos.

 

Mais do que cumprir programas, estes livros devem formar olhares – atentos, livres e capazes de interpretar o país e o mundo com exigência e imaginação.

 

Só assim ajudarão os jovens a lerem-se a si próprios, a reconhecerem a sua história e a habitarem o futuro com consciência, liberdade e confiança.

 

Manuel Brito-Semedo

 

 

PorBrito-Semedo16 nov 2025 2:45