
Arrepia-me os cabelos – e olhem que sou calvo – cada vez que oiço um artista, escritor ou académico brasileiro aterrar em Cabo Verde e entrar, ainda na escada do avião, num êxtase telúrico de “ancestralidade” e “energia africana”. Vêm prontos para encontrar a África mítica das novelas, dos tambores que só tocam quando eles passam e das raízes que acreditam reconhecer à primeira vista.
É ternurento, sim, mas ingénuo. Confunde-se Cabo Verde com um altar étnico onde a autenticidade se serve ao balcão e a ancestralidade se distribui em doses individuais. Ignoram que estas ilhas nasceram de ruptura, mistura e reinvenção; que nada ficou intacto à espera de visitantes emocionados; que a crioulidade é obra dura da História, não souvenir espiritualizado para consumo rápido.
Sim, temos África nas veias – mas África recriada, atlântica, mestiça, trabalhada pelo mar e pela memória. A outra, a dos delírios românticos, essa não mora aqui.
Por isso, quando alguém desembarca a declamar ancestralidades instantâneas, dá vontade de sugerir – com toda a humanidade possível – que troque o arrepio pela leitura.
Há quem venha procurar raízes. Nós, por aqui, continuamos ocupados a fazer frutos.
N.A. – Esta crónica faz parte da série Alfinetadas, onde se afinam ideias, se questionam anúncios e se convoca o bom senso, mesmo quando há confettis no ar.
– Manuel Brito-Semedo
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