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Camões reencontrado nas ilhas – Cabo Verde e o Canto V d’Os Lusíadas

PorBrito-Semedo1 dez 2025 23:09

 

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Capa do Fascículo 5 – Canto V, dedicado a Cabo Verde.
Comentado por Dina Salústio, Germano Almeida e José Luiz Tavares, com ilustrações de Yuran Henrique.
(Edição comemorativa do V Centenário de Luís de Camões, Imprensa Nacional / Academia das Ciências de Lisboa, 2025.)

 

 

Nos quinhentos anos do nascimento de Camões, Cabo Verde ganha voz na celebração da língua portuguesa. No Canto V d’Os Lusíadas, o poeta das naus regressa ao Atlântico – não como conquistador, mas como viajante do espírito. Nas palavras de Dina Salústio, Germano Almeida e José Luiz Tavares, o épico reencontra as suas ilhas e a sua humanidade.

 

O coração da epopeia

 

A Imprensa Nacional e a Academia das Ciências de Lisboa lançaram uma colecção de dez fascículos dedicada à releitura d’Os Lusíadas a partir das geografias da língua portuguesa. O quinto volume, confiado a Cabo Verde, é um dos mais simbólicos. Reúne Dina Salústio, Germano Almeida e José Luiz Tavares, com ilustrações de Yuran Henrique, para revisitar o Canto V, o coração da epopeia. É o momento em que Vasco da Gama, perante o rei de Melinde, narra a sua travessia de Lisboa ao Índico – e onde o mito se converte em conhecimento.

 

Esta colecção, promovida pela Imprensa Nacional e pela Academia das Ciências de Lisboa, percorre Os Lusíadas através dos territórios da língua portuguesa – de Portugal ao Brasil, de Angola a Timor, passando por Cabo Verde. Cada fascículo é confiado a escritores e artistas desses espaços, transformando o poema de Camões num arquipélago de leituras e vozes. Assim, a epopeia deixa de ser património exclusivo de um país e torna-se expressão partilhada de uma comunidade linguística e cultural em movimento.

 

Com esta perspectiva, a escolha de Cabo Verde desloca o centro da celebração camoniana para o Atlântico, devolvendo à língua portuguesa o seu rosto mestiço e plural. O Canto V é o espaço da transformação: a tensão entre razão e mito, medo e revelação, homem e mar. Como sublinha Isabel Almeida, autora do texto introdutório, é “exacta simetria e justa mesura” – cem oitavas onde o mundo ganha forma ao ser nomeado. É também o canto de Adamastor, o “oculto e grande Cabo”, símbolo do limite e da fronteira. A sua voz, “de pele preta” e “língua ignorada”, é o primeiro murmúrio africano do poema e talvez o mais moderno. Lido hoje, o Canto V é metáfora da condição atlântica: o mar como espelho do homem, o desconhecido como lugar de encontro.

 

Três vozes e um mesmo mar

 

As leituras cabo-verdianas dão nova vida ao épico. Dina Salústio, em O Rei Camões, regressa à infância para reencontrar o poeta como mito escolar e companheiro de descoberta. O seu texto mistura ternura e ironia: o Camões das estátuas torna-se o Camões das carteiras escolares. Com simplicidade e humor, Dina transforma o herói em presença próxima – símbolo da curiosidade e da aprendizagem.

 

Germano Almeida, fiel ao seu humor e à sua ironia serena, devolve humanidade ao poema e transforma a solenidade em conversa. O Camões de Germano observa o mar com olhos de contador de histórias: perde o elmo e o manto para ganhar o rosto do homem comum. O épico, filtrado pela ironia crioula, reencontra o riso e a dúvida – duas formas maiores de sabedoria. O seu texto desmonta a retórica da glória e lembra que o verdadeiro heroísmo é o da persistência e do olhar lúcido sobre o destino.

 

José Luiz Tavares, em Fala do Fantasma de Luís Vaz nas Ruínas da Cidade Velha, oferece a leitura mais densa e assombrosa. O poeta regressa como sombra à Cidade Velha, lugar do tráfico e do encontro de mundos. O canto da conquista transforma-se em elegia: a palavra de Camões é devolvida à História com o peso da dor e o desejo de reparação. Tavares faz do épico um espelho moral e do Atlântico um espaço de reconciliação.

 

Três vozes, três gerações, um mesmo mar: o Atlântico deixa de ser fronteira e torna-se pertença. O que une estes autores é a certeza de que a epopeia só sobrevive quando é reinventada – quando deixa de ser monumento e volta a ser travessia.

 

Adamastor revisto

 

No centro do Canto V ergue-se Adamastor, o gigante que simboliza o medo e a ousadia. “Eu sou aquele oculto e grande Cabo / A quem chamais vós outros Tormentório” – proclama a voz do abismo. Na leitura contemporânea, essa figura ganha nova luz: o “homem de pele preta”, que “nem entende a nós, nem nós a ele”, deixa de ser obstáculo e torna-se espelho. Adamastor já não é inimigo, mas consciência; o grito já não é raiva, é lucidez.

 

As ilustrações de Yuran Henrique prolongam esse diálogo. Entre azuis profundos e ocres queimados, o artista redesenha o gigante com traços africanos e devolve-lhe humanidade. O mar é memória; o rosto, mapa. Cada imagem traduz a travessia do texto: o Atlântico como casa da língua, a arte como eco da palavra.

 

Ao entregar a Cabo Verde o Canto V, a edição faz mais do que um gesto simbólico: reposiciona o sentido da língua. As ilhas, primeira escala das viagens oceânicas, voltam a ser ponto de partida – lugar de encontro entre Europa, África e diáspora. A língua portuguesa regressa às suas águas de origem: mestiça, criadora e plural.

 

Mais do que homenagem, o Fascículo V é leitura crítica e acto de pertença. Dina, Germano e Tavares não apenas reinterpretam Camões – devolvem-lhe a condição de contemporâneo. O poeta de outrora, que cantou o “mar sem fim”, fala agora em crioulo, em metáfora, em Atlântico.

 

Cinco séculos depois, Camões regressa às ilhas não para ser exaltado, mas para ser compreendido. Entre o mito e a memória, o Canto V respira de novo, iluminado por vozes que o devolvem ao mundo com o sal das ondas e a luz das travessias. E no fim, o mar devolve-nos Camões – não o herói distante das estátuas, mas o homem que escreve e se perde, que teme e ama, que sonha e duvida. Porque é nas ilhas – e não nas metrópoles – que a língua reencontra o seu futuro.

 

 

Manuel Brito-Semedo

 

 

PorBrito-Semedo1 dez 2025 23:09