De África e do mundo. Pelo meio a poesia. Sempre a poesia que diz que é a primeira coisa que lhe nasce de cada vez que se senta para escrever.
Na conversa de ontem [entrevista gravada no sábado, dia 10] falou da contradição que há nas pessoas, de sermos todos múltiplos. Como vê isso em si e como usa isto na sua escrita?
Mesmo sem ter consciência disso, me apercebi que ter um único modo de me identificar era um modo de me empobrecer. Sempre pensei que eu tinha que ter várias profissões e distribuir-me por vários tipos de vida. Isto ajudou-me, acidentalmente, no meu percurso. Comecei por querer ser médico, psiquiatra, fiz uma parte do curso de medicina, fui jornalista; voltei para a universidade e sou biólogo, trabalho como escritor há trinta e tal anos, fiz teatro junto a uma companhia e, a certa altura, eu pensei que estas janelas múltiplas que eu abria ao meu redor me ajudavam a ser feliz. Não há aqui um projecto, uma receita. Para mim, resultou muito bem. Vejo que tenho dificuldade em me apresentar. Por exemplo, no momento inaugural na relação entre pessoas, quando as pessoas têm que se identificar e alguns dizem o nome, outros a profissão, a nacionalidade ou outra coisa qualquer…Esta primeira coisa que nos define não pode matar as outras. Ninguém é só uma coisa.
Sente que essa sua multiplicidade é bem aceite? Nunca lhe cobram?
Às vezes sim. Agora pior. Agora há uma obsessão pela coisa identitária. Nós temos que dizer quem somos e esta coisa tem que nos guiar numa luta de afirmação. Tomo as palavras de Wole Soyinka que diz que o “Tigre não precisa proclamar a sua tigritude (…)”. Ele é tigre e pronto. Não preciso proclamar e afirmar a minha moçambicanidade. Não preciso afirmar a minha postura política e ideológica. Ela vai parecer, aparece naturalmente. Isso é uma coisa que me parece uma certa doença hoje, de cobrar às pessoas essa definição exclusiva e excludente também, que nos obriga a ser uma coisa só.
Ontem, a dada altura, falava de como hoje muitos jovens já começam na escrita pela publicação de um livro, e de como no seu caso foram ainda alguns anos a publicar em jornais, etc. Em que momento se descobriu [também] escritor? Nessa fase em que ainda escrevia em um ou outro jornal, em que não tinha ainda publicado um livro, já se sentia escritor?
Sim. Sim. Eu sabia que eu era… Na minha casa, a minha mãe queixava-se muito do meu pai (de uma maneira boa), porque ele era poeta e não tinha jeito para as coisas práticas. Se era preciso arranjar uma coisa qualquer em casa tinha que se chamar um carpinteiro ou assim. Ele não tinha essa afeição pelas coisas práticas. E a minha mãe dizia: “só espero que nenhum dos filhos tenha ficado poeta”. Mas ela logo adivinhou; ela disse: “não, esse aqui não tem salvação” (risos). Eu assumi isso com muito gosto, porque eu era como o meu pai e tinha um grande orgulho disso. Escrevia versos e depois mostrava ao meu pai. Um dia ele pegou num desses versos e, sem me consultar, publicou num jornal. Eu fiquei zangadíssimo. Achei que quilo era uma invasão, era uma afronta… E logo nesse dia houve um espectáculo com uma declamadora que vinha de Portugal e fez declamação de poemas de vários poetas consagrados, e no fim disse “vi hoje no jornal um poema de um menino para o pai…”. Aquilo era a coisa pior que podia ter-me acontecido. Eu estava envergonhadíssimo. Ninguém sabia de quem era o poema mas, esse momento… foi um momento importante. Depois, voltei para casa e sentia que havia uma mistura grande, uma raiva. Mas ao mesmo tempo um certo orgulho… Alguém gostou do que fiz. Acho que aquilo me ajudou muito. Não há um momento em que digo “agora sim!”. Mas é um processo, em que eu fui tendo mais confiança em mim e percebendo que isso é um pilar das minhas múltiplas identidades.
Foi membro da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) em jovem. Desvinculou-se e hoje não pertence a nenhum partido. Sentiu que, como figura pública, não devia conotar-se politicamente ou houve um momento de desencantamento?
Foi um processo. Eu era muito jovem e logo a seguir à independência fui enviado à RDA (Alemanha Democrática) para fazer um curso de jornalismo. Fiquei ali seis meses e esse foi o primeiro choque. Porque, eu pensava que o socialismo era uma coisa alegre, colorida e igualitária, e ali havia um projecto que não era aquilo que eu sonhava… Com uma elite politica que tinha privilégios… Depois ainda arrumei o assunto de certa maneira, dizendo “mas nós não vamos fazer assim, vamos fazer diferente”. E, ao longo desse tempo em que fui jornalista, percebi que entre aquilo que era o projecto teórico, aquilo que era a nossa afirmação de intenção, e aquilo que era a prática, havia uma distância muito grande. Ainda antes de pedir para sair do partido (na altura a Frente já se tinha transformado em partido), pedi para sair de director do jornal (o jornal era o oficial do governo). Não foi aceite o primeiro pedido, pedi uma segunda vez e finalmente aceitaram. Eu percebi que o erro não era do projecto. Há muita gente dessa minha geração que ficou ressabiada, muito ressentida. Gente que acha que foi traída…Eu não. Aprendi muito. Tenho uma grande gratidão por esse momento, esse período em que estive nessa luta partidária, militante, mas continuar não seria verdade. Foi uma ruptura necessária.
Quando se pensa na literatura africana de língua portuguesa, nota-se esse fenómeno de, em cada um dos PALOP haver uma, ou duas figuras de destaque. Em Moçambique, é o seu caso. Obviamente, isso acontece pelo valor que a sua escrita tem. Mas sente que está numa posição de privilégio?
Um pouco, sim. No dia em que eu pensar “isso é natural. É resultado do meu mérito especial”… eu paro por aí. Acho que isso é resultado de um conjunto de acidentes, do meu percurso. Eu lembro-me que o meu primeiro livro, publicado fora de Moçambique, foi publicado por uma razão completamente acidental. Não foi uma escolha, ninguém me escolheu. Foi ainda durante a guerra, os livros eram muitos feios, cheios de manchas, a capa desse livro com um papel pobre… Esse livro estava no meio de vários outros, em cima de uma mesa, e passou por ali a critica literária brasileira Maria Lúcia Lepecki e aquele livro tão feinho chamou-lhe a atenção. E ela disse “olha que horror, esse livro”. E pegou nele, começou a ler e gostou. Publicou uma recensão crítica num jornal, que foi muito favorável, depois houve uma editora que pegou naquilo… Portanto, foi essa a razão. Às vezes pensa-se que tenho contactos especiais, que a literatura funciona assim…Porque tem lá um amigo. Não funciona assim. Agora, acho que realmente há em Moçambique – estou a falar só da minha geração, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa… São vozes tão ou mais importantes do que eu, e felizmente eles também têm espaço, são publicados fora de Moçambique e em várias línguas. E eu fico contente que assim seja. Eu odiaria que fosse o único.
Uma das imagens de marca da sua escrita são os neologismos. Faz uso destes neologismos no dia-a-dia, em conversas? E sente já uma certa obrigatoriedade de incluir nos seus textos os neologismos?
Eu falo de várias maneiras… Mas, em geral, no discurso verbal eu tenho outro registo. Há palavras que, se calhar, se estivesse a falar em Moçambique eu falava de outra maneira. Há palavras que são comuns em Moçambique e se eu percebo que outros não as percebem não as uso. Mas na escrita é uma outra coisa. É como se funcionasse uma outra parte de mim e apetecia-me que esse mundo da oralidade moçambicana, que é muito rico, que encontro na língua portuguesa uma fonte de enriquecimento também… quis abrir essa porta. A fronteira entre a escrita – com as suas normas, ”é preciso escrever bem e escrever bem significa usar um certo padrão de linguagem” – isso sim, era uma intenção, era um programa. Apeteceu-me abrir porta a essa oralidade que vem da poesia também. Aconteceu depois que fiquei preso a isso. Quer dizer, do ponto de vista da expectativa que um certo público tinha, e uma leitura muito redutora do que eu fazia. Porque eu quando ponho a palavra inventada (o neologismo) não é porque ela tenha muita graça em si mesma. Não é isso que eu quero. Eu quero mostrar esse outro mundo, que para falar dessa maneira sente que essa é a única linguagem que os fala assim. E portanto era para mostrar que há um outro mundo e esse mundo só se pode exprimir assim. Em Moçambique há onde não se diz “não consegui” e sim “desconsegui “. Não é uma construção literária, é assim que se fala ali. Eu então decidi que não queria ficar cativo, não queria ficar preso. Queria surpreender-me. Eu próprio já estava numa zona de conforto e há quatro ou cinco livros atrás, talvez mais, decidi mudar isso e ter mais relevo naquilo que eu fazia como construção poética do que linguística.
Escreve também poesia e contos mas acaba por estar mais conotado ao romance. Tem preferência por algum género?
Aquilo que emana de mim é a poesia. Quando quero começar a escrever, sento-me em frente ao papel ou ao computador e aquilo que me nasce é poesia. E eu já percebi que a poesia é para mim como uma chuva que vai limpar o céu para eu poder ver o que está ali. Se não, não consigo ver. É verdade que as editoras são muito mais favoráveis ao romance que ao conto e à poesia mas, eu nunca entendi que eu cedia tanto a isso. Eu escrevi os livros de poesia que eu quis.
Não acredita, portanto, em géneros maiores?
Eu não. Nem sequer acredito que se possam comparar. E no meu caso os géneros estão muito misturados. Quando faço prosa estou ainda na poesia. Decidi não dar grande importância a estas categorias.
O Mia Couto é presença frequente em encontros como este que agora inauguramos aqui em Cabo Verde mas que em Portugal, Brasil e outros países já acontecem há muitos anos. Li há tempos um artigo num jornal português em que se fazia uma crítica muito carregada a esse tipo de eventos, quase que sugerindo que se tornaram teatrais, com personagens e fórmulas repetidas… Consegue sempre marcar presença nestes encontros fugindo a guiões, manter-se genuíno?
Não se pode generalizar mas, é verdade que há alguns eventos que não souberam se renovar, e aquilo transformou-se num padrão… Ma eu aprendi a escolher o tipo de evento. Por exemplo, ontem o que aconteceu aqui... Qualquer que fosse o formato, sabíamos que íamos fazer uma conversa e o mais importante nessa conversa não era aquilo que ia acontecer no palco. Era com as pessoas. Então, se há espaço para isso o evento já não me comanda tanto assim. Eu sei que tenho um espaço que é meu, no sentido de ser aquilo que gosto de fazer, que é falar e ouvir. Muitas vezes esses encontros se destinam a falarmos e ser um discurso em sentido único. Mas sim, o público pode marcar toda a diferença.
Antes do Morabeza, tivemos em meados do ano passo um outro festival literário, com o tema à volta da literatura-mundo. Falou-se muito na necessidade de contornar o cânone e olhar para uma outra literatura, de outras geografias. Uma questão que me ficou é se não teríamos dentro da literatura lusófona, e mesmo dos PALOP, um cânone à escala.
Por definição, a literatura é uma rotura dos cânones. Cada voz é uma voz. E é até complicado falar de literaturas nacionais. Porque a literatura cabo-verdiana é composta de gente que tem vozes tao diversas, não é? O mundo do Germano Almeida é completamente diferente do mundo do Arménio Vieira, completamente diferente do mundo do Onésimo Silveira... Nós depois, por uma facilidade, pomos ali um chapéu que cobre todos, que é a literatura cabo-verdiana. O que tem importância na literatura é que ela é realmente uma proposta de descoberta da individualidade do leitor, e o escritor também perceber que ele é uma voz única, que aquela história só pode ser contada assim porque ele assumiu-se como mensageiro. Mas quem cria os cânones não são os escritores, são os organizadores de eventos, os académicos…
Deparei-me com vários trabalhos académicos com base na sua obra literária. Aqui em Cabo Verde não temos crítica literária – um pouco porque somos um meio muito pequeno, onde todos se conhecem (costumamos brincar que somos todos primos), e não se aceita bem uma crítica que não seja de elogios – contudo, já vamos tendo na universidade algum trabalho académico à volta da literatura nacional. Mas que pouco sai da esfera da academia. Como acha que poderíamos aproveitar melhor isso?
Essa é uma crise da academia no geral, e não só na componente literária. Os estudos que são feitos nas universidades circulam lá. A instituição universitária isolada, hoje mais do que nunca isso é um problema no geral. O que se faz de investigação nas universidades é muito pouco e esse pouco circula entre aquele pequeno grupo de elite e nas publicações universitárias. Não sei se temos que esperar que a universidade acorde e dê esse salto para fora de si mesma. Mas, por exemplo, as organizações desses eventos podiam chamar e obrigar a que essa agente que fez ali uma coisa, ali naquela zona obscura, venha para aqui e partilhe. Até porque o nascimento da crítica literária tem muito a ver com isso que são os estudos mais intensos, mais de especialidade.
Comunga dessa ideia de que, no âmbito dos PALOP e de outros países africanos, superada que foi a fase da luta anti-colonial e as independências – em que surgiram novos partidos e tudo o mais – hoje, não se consegue perceber uma grande diferença ideológica porque os interesses instalados são na verdade de uma elite, e que já não há uma defesa de ideais e valores de um colectivo maior?
Acho que isso é um processo histórico natural. Às vezes há quem pense que isso é resultado de uma maldade, de uma postura intencional. Acho que, por exemplo, na luta de libertação nos países africanos, em geral, esses que foram os libertadores (tenham eles feito a luta armada ou não) … Tornou-se para eles legítimo que o país era eles, o país se confunde com a sua organização política e há uma aprendizagem dura para essa gente. É preciso perceber que o país tem várias vontades. Há vários países dentro do país, desse ponto de vista. E essa aceitação tem que ser feita, obviamente. Não se pode esperar que essa elite inicial, que se criou e se sedimentou, tenha a percepção clara disso e aceite. Mas tem que acabar por aceitar e acho que isso está a acontecer, e é para bem do continente e dos nossos países.
Hoje, mesmo quem tenta manter uma visão optimista, não pode ficar indiferente ao que se passa no mundo; coisas que preocupam a qualquer pessoa. Como analisa o cenário actual?
Acho que passamos de uma situação em que o que estava em causa era um certo arranjo político, uma certa estrutura – os partidos, os sindicatos, as forças políticas tradicionais tinham uma crise de representatividade de legitimidade – as pessoas já não encontram nessas organizações alguma coisa que exprima aquilo que é a sua vontade profunda de mudança. E passou-se disso para uma coisa mais grave ainda, que é o descrédito na própria política. E isso é gravíssimo porque é um convite para que as pessoas se demitam da sua cidadania, da revindicação que têm que ter para que mundo seja melhor, e que se confie isso à solução de uma coisa que é apresentada de uma forma muito apocalíptica, muito empolada, e do ponto de vista negativo: um mundo sem solução. As crises eram passageiras – por definição, uma crise é um momento – agora a crise é para sempre. Não vemos fim à crise. E acho que há uma intenção em que é se apresente isto desta maneira para que entreguemos o nosso destino nas mãos de um “salvador” qualquer que venha, e o perigo… Estamos a ver o que acontece nos Estados Unidos, mas acho que isso não será só nos EUA. Pouco a pouco aparecem estas figuras que parecem, digamos assim, revestidas de todo o poder, não se lhes pede contas de coisa nenhuma, nem sequer representam o partido. Donald Trump já não representa o seu partido. Ele tem o seu próprio mecanismo de comunicação, ele sozinho com o Twitter é omnipotente. O que está em causa aqui é todo esse modelo de fazer política. Temos que inventar uma outra maneira. Surgiu muita coisa que mudou – as redes sociais, etc, trouxeram uma configuração nova. Temos que saber encontrar um caminho. Vamos saber.
Olhando para trás, houve sempre algumas figuras que inspiraram mudanças, ou pelo menos esperança – Martin Luther King, Gandhi, Mandela, etc. – Faltam-nos hoje líderes de que nos possamos orgulhar?
Sim, há uma ausência. Se lhe perguntar, diga-me o nome de cinco grandes líderes africanos em relação aos quais tenhamos um orgulho… Temos dificuldades em conseguir preencher este número…cinco! Quando digo África…é o mundo! Há sempre a ideia de que os africanos são piores…Não.
Fiz essa pergunta ao Boaventura Sousa Santos e ele só conseguia pensar no Papa Francisco.
É verdade que ele é um dos poucos que tem esta… Não vejo realmente outra figura que possa congregar essa esperança e a gente diga está aqui alguém que vá ficar como um exemplo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 846 de 13 de Fevereiro de 2018.