O passado mês de Setembro era o prazo para a devolução do processo e como tal não aconteceu, parte-se do princípio de que o documento está em conformidade e pronto para ser analisado pelo Comité do Património Cultural Imaterial da Unesco.
Para dar maior consistência à candidatura da morna, cujo dossiê havia sido entregue na Unesco no mês de Março, o Parlamento aprovou um mês antes, por unanimidade, a instituição do dia 3 de Dezembro como Dia Nacional da Morna.
A proposta para a instituição do Dia da Morna na data em que nasceu Francisco Xavier da Cruz, mais conhecido por B.Léza (1905 – 1958), considerado um dos maiores compositores deste género musical, partiu do músico e compositor Vasco Martins como forma de homenagear todos os outros compositores, músicos e intérpretes e chamar atenção da sociedade cabo-verdiana para a necessidade de valorização da morna. Vasco Martins foi também um dos mentores da iniciativa para a criação do “Prémio B.Léza”, que foi entregue no dia 3 de Dezembro pela primeira vez, no evento “Orgulho Nacional – Mornas de B.Léza”, em Roterdão, na Holanda.
O prémio foi atribuido ao músico Morgadinho e destacada Titina como a pessoa que mais cantou B.Léza.
Na Praia, o Dia Nacional da Morna foi assinalado esta segunda-feira, com uma conferência comemorativa “Pensar B.Léza”, na Assembleia Nacional.
Promovido pelo Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, em parceria com a Assembleia Nacional e a Sociedade Cabo-Verdiana de Música (SCM), o evento foi seguido de uma exposição fotográfica sobre B.Léza, intitulada “Morna em Si” e antecedido no dia 30 de Novembro de uma tertúlia “A Morna ontem e hoje: tendência”, realizada na Livraria Pedro Cardoso. Ainda neste mês de Dezembro terão lugar várias actividades culturais, com o objectivo de exaltar e reconhecer a importância deste género musical, candidato a património mundial da humanidade.
O contributo de B.Léza
Para avaliar o contributo de B.Léza para a música cabo-verdiana o Expresso das Ilhas abeirou-se do próprio proponente do Dia Nacional da Morna, o compositor Vasco Martins e do professor e estudioso deste género musical, Henrique “Djick” Oliveira.
Como refere Vasco Martins, o legado de B.Léza é grande e original. “Não só no aspecto melódico, nas letras de sabor ‘existencialista’ (nas suas últimas mornas) mas no acréscimo de acordes de passagem que se chamam popularmente de ‘meio-tom’ e nos acordes modulativos que dão abertura a outras tonalidades. Tudo indica que foi beber na música popular do Brasil, talvez através ou com a cumplicidade do Luís Rendall. Eram amigos e colaboram juntos, inclusive na coautoria de uma admirável morna. B.Léza nunca se repetiu melodicamente. Há uma originalidade, um cunho pessoal, mas é tudo novo. Há que admirar essa veia. B.Léza indicou caminhos, foi e é uma referência para todos os compositores da Morna. É assim a viagem da Morna, sempre foi, espero que continue nessa senda maravilhosa e criativa. Foi escolhido o B.Léza pela sua dimensão, mas através dele celebra-se a Morna, todos os criadores, intérpretes e amantes. A meu ver é a Morna o epicentro”.
Por seu lado, Henrique “Djick” Oliveira considera B.Léza um genuíno poeta-músico e um inovador. “Para mim ele criou um padrão diferente da morna, a que poderemos chamar o padrão da Morna-B.Léza. Uma característica fundamental desse padrão tem a ver com o uso de um suporte de acordes que sustenta harmonicamente a melodia. A inovação introduzida por B.Léza é o uso que ele dá aos acordes com sétima que eram vulgarmente conhecidos por ‘meio-tom’. Esse meio-tom é um acorde com sétima que tem, na estrutura tradicional da morna e da música popular em geral, a função de estabelecer a transição ou passagem da tónica para a chamada terceira postura. B.Léza utilizou esses acordes com sétima não apenas com a função de transição, mas como acordes do corpo harmónico da melodia e como acordes de embelezamento da própria linha melódica das suas mornas. Um exemplo claro dos acordes com sétima e respectivas funções está na morna ‘Talvez’, mas também nas mornas ‘Dr. Adriano’, ‘Barca Sagres’, entre outras composições”.
Sem querer desmerecer o grande contributo de B.Léza para a música cabo-verdiana, Djick chama a atenção para uma ideia peregrina, à volta do famoso ‘meio-tom’ de B.Léza. “Ao contrário do que muitos acreditam, B.Léza não introduziu o meio-tom na música cabo-verdiana, portanto, o tal acorde de transição. O que B.Léza fez com o meio-tom é o uso que ele lhe dá, até porque os acordes de transição, portanto o meio-tom, já existia na morna muito antes de B.Léza nascer. Em 1924 no jornal “O Manduco” está publicado a letra da morna ‘Qu’importá-m lá’, de Eugénio Tavares, que contém o famoso meio-tom”.
Por isso o professor e investigador musical considera sem sentido afirmar que antes do B.Léza não existia o meio-tom na música de Cabo Verde. “O meio-tom, ou acorde de transição faz parte natural do ouvido musical humano e está fora de questão a sua existência na música de Cabo Verde muito cedo. Afirmar o contrário é tratar os nossos músicos com menoridade, porque além da morna existiam vários outros géneros comtemporâneos que utilizavam o meio-tom, valsas, mazurcas, polcas”.
Eclipse
Lua raiâ na azul di céu
Num nôte sereno di Abril
Sê luz ‘spejâ na mar
Má na rosto di nha q’retcheu
Nôte di luar di prata
Num céu bordado di ‘stréla
Nôte qui bejam nha mulata
E amim êl dixam
Só co sê recordação
Era um note di poesia
Na céu
Nôte di sonho e di amor
Celeste
Qui lua suma néba fria
Raia co esplendor
Na rosto di nha q’rêtcheu
Dipôs lua toda di nêba
Mundo perdê sê alegria
Nôte mergudjâ na tréba
Morna perdê se poesia
Só um brise lêbe di amor
Ficaâ tâ ondia na s’curo
Naquel silencio di dor
Que eclipse s’padja
Num note de luar tam puro
Nha q’retchêu
Perdê sorriso di sê rosto
E alegria de moça fagueira
Pamó lua nôs campanheira
Tem hora di alegria
E hora di disgôsto.
– B.Léza
DEUS, tem Caridade!
Morna
Letra e Música de Fernando Quejas
Num tárdi tristi di sol pôsto
Noba corrê – oi qui disgôsto!
E nôs poeta qui morrê!
Ê povo intêro ta sòfrê!
Refrain
Ó bento! Ó mar! Ó sol! Ó luar!
Nhôs gritâ Mundo nôs pêsár…
Nhôs rôgá Deus, tem caridade.
Pâ sê alma, na eternidade.
Sê rêsto d’homi ‘stâ na tchôn
“BRONZE”, co dôr, djâ perdê sôm.
Ôdjos môdjados di tristéza,
Tchorâ sòdádi di B. Léza
Lisboa, 26/11/960
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 888 de 05 de Dezembro de 2018.